terça-feira, 11 de março de 2008

Rio das Flores

Desde que Dóris Graça Dias escreveu algo sobre o Rio das Flores do Miguel Sousa Tavares (MST) que passa por ser crítica literária, também eu me sinto habilitado a fazê-la. Ou, pelo menos, comentário literário.

Para se ler essa “crítica” de mais um “génio incompreendido”, que a direcção do Expresso “censurou” (vejam bem a injustiça!) e comentários que suscitou:
http://aeiou.expresso.pt/gen.pl?p=stories&op=view&fokey=ex.stories/233576

Quanto ao livro do MST, que li sem a expectativa de estar perante grande literatura, tem algum interesse, embora tenha encontrado dois problemas que me impediram de aderir verdadeiramente à obra. O primeiro, que já tinha sido salientado pelo Vasco Pulido Valente (Público, 24 Nov 07, P2: 6-9), são os erros históricos e o segundo, que ainda não vi referido, é a falta de respeito do autor por algumas personagens femininas secundárias.

Há erros históricos mais subjectivos que outros. Por exemplo o que é um regime democrático? Há quem defenda, sem se rir, que as repúblicas do Leste Europeu eram “democráticas”. Neste sentido se poderia dizer que a nossa 1ª República foi democrática, porque dominada pelo Partido Democrático, embora as liberdades fossem bem diminutas. Mas quando li “A República pusera fim legal aos morgadios” (p. 94) dei um salto na cadeira. Este é um erro do mais objectivo possível: os morgadios foram abolidos em 1863, com excepção da Casa de Bragança.

Isto não é um mero problema de data. Isto revela uma visão altamente distorcida da história, revela uma ideia de que a data charneira da nossa história é a passagem da monarquia constitucional para a república. Ora na divisão clássica da história em períodos a época em que vivemos actualmente designa-se por Idade Contemporânea e teve início simbólico em 1789, com a Revolução Francesa, sob o signo da “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Ou seja, a grande transição é entre a monarquia absoluta dum lado e a monarquia constitucional e as repúblicas do outro. E os morgadios, como instituto não da monarquia mas da monarquia absoluta, vão ser desmantelados pela monarquia constitucional. A igualdade de que aqui se fala é a igualdade perante a lei, que vai logicamente conduzir à extinção dos morgadios.

Há outra consequência lógica da igualdade, que é a da ascensão da burguesia ao longo de todo o século XIX, que vai alterar radicalmente a relação de forças (com o clero e a nobreza) própria da monarquia absoluta. Em Portugal esta transição dá-se com atraso mas, mesmo assim, de forma relevante:

“No que respeita à consciência de classe, a burguesia constitucional reforçou sem dúvida a sua na segunda metade do século XIX. (…) Dos trinta e sete governos que dirigiram Portugal entre 1870 e 1910, nenhum foi presidido por titular e só à frente de três ou quatro se encontraram nobres de boa linhagem. Nenhum dos grandes estadistas ou parlamentares do tempo recebeu qualquer título. A burguesia dera-se por fim conta do seu próprio valor e desdenhava de nobres e nobilitações.” in Marques, A. H. Oliveira (1972) História de Portugal, III vol., Palas Editores, 1986, 3ª edição, p. 121-122

Isto é para reforçar a ideia de que a transição essencial se dá da passagem da monarquia absoluta para a monarquia constitucional, com algum atraso, em 1820.

O problema deste grave erro histórico é que a partir daqui, cada informação histórica passa a ser vista com a maior das suspeições. E aquilo que poderia ser uma mais-valia da obra, o revisitar o período histórico de 1915-1945, acaba por não funcionar, pelo menos para mim.

Um outro exemplo de erro histórico, neste caso francamente menor, mas erro de toda a forma: “[a] ‘mais velha aliança do mundo’, que unia Portugal à Inglaterra, desde o século XIII.” Esta aliança, o Tratado de Windsor, data de 1386, logo do século XIV e não XIII. A propósito, na p. 609, há uma “Nota do autor”, onde se lê: “Aos leitores garanto a seriedade do relato histórico, aos caçadores de erros a inutilidade final do seu esforço.” Face ao exposto atrás, isto que tem que ser encarado como uma advertência divertida.

Quanto ao segundo problema, o respeito pelos personagens, na arte da representação existe a recomendação básica que o actor respeite os seus personagens, por piores que eles sejam. Como caso paradigmático atente-se ao Hitler criado pelo Bruno Ganz no filme A Queda (2004), dirigido por Oliver Hirschbiegel. Há aqui um pouco mais do que um mínimo de respeito por aquele que é um dos mais terríveis personagens da História.

Não sei se existe recomendação geral semelhante na literatura, mas eu assumo essa recomendação. MST revela falta de respeito por uma série de personagens femininas secundárias, uma falta de respeito que ultrapassa uma descrição de caricatura e chega a roçar o insulto. A mulher do sr. Ashiff “tão abundante de banhas” (p. 382). “Banhas” é uma palavra muito deselegante. Sobre a sra. Trindade: “o seu ridículo corte de cabelo de madame de Viseu, o seu berrante bâton vermelho contrastando com o sombreado negro do bigode.” (p. 383). De novo a caricatura e a falta de subtileza do “bigode”. Mais “uma cabecita loira e tonta que pertencia ao corpo de baile francês” (p. 390), um estereotipo insultuoso.

Noutro registo: “Diogo sentia no ar um cheiro a gado, a sardinhas e também a fêmea.” (p. 98) e “ancas largas de fêmea já parida” (p. 446). Para mim “fêmea” e “parida” são duas palavras de uma grosseria de cavador.

Estes exemplos, desagradáveis como são, poderiam passar sem sobressalto se aparecessem no discurso directo das personagens masculinas, num tempo histórico bem diferente do nosso. Na reflexão interior de um personagem já cabem com mais dificuldade, mas ainda se desculpam um pouco, como é segundo grupo de exemplos, que poderiam ser interpretadas como reflexão dos personagens, Diogo e depois Pedro. O problema neste caso é a distinção entre narrador e diálogo interior do personagem, nem sempre nítida, sobretudo porque este narrador é claramente omnisciente. Já no primeiro grupo de exemplos é claramente o narrador que usa aquela linguagem de falta de respeito e nestes casos já não há desculpas. Este misto de marialvismo e misoginia, não só não tem graça, como não é nada bonito de se ler.

Dois apontamentos finais. Uma surpresa a entediante e longa explicação das regras do jogo de cartas blackjack nas p. 387-389. Qual a utilidade de maçar o leitor com isto?

Uma embirração pessoal: por diversas vezes (p. 456, 502, 597) há a utilização do verbo “realizar” no sentido de “tomar consciência”, o que segundo o dicionário Houaiss (e eu estou 200% de acordo) “é um anglicismo semântico a evitar”.

2 comentários:

Francisco Braz Teixeira disse...

Olá Pedro

Também já li o livro e achei-o um folhetinzeco. Ás vezes muito chato, sobretudo quando se põe a explicar assuntos como a ditadura, Salazar, a guerra civil espanhola, etc... Obviamente que saltei as páginas, não será seguramente o MST a dar-me lições de história!

Outra coisa que achei, foi que os personagens foram sendo criados de forma muito desajeitada. Sobretudo as masculinas, pois que quanto às femininas, acho que o MST devia por começar por ler a Agostina, depois que dê palpites sobre o género.

Mas gostei muito do comentário.

Anónimo disse...

Ohhhhhhhhh Pedro, só tu é que me compreendes!
Quando aquele Saramago, exaltado por outros assuntos memoriáveis, deixa cair a Blimunda e a esquece, deixa para trás como uma cadela, eu ladro de indignação! Também havia um padre que fez uma passarola e andou a passear-se com ela pelos ares. O susto que não deve ter pregado a algum incauto que andava a plantar batatas por ali… (ai tu queres ver, tu queres ver que me precipitei e naquele tempo ainda só os índios é que as comiam?!)
A Blimunda... A Blimunda...
Sabes, eu não quero saber da politiquice que corrói os escritores com consciência. Da vergonha que inevitavelmente sentem pelo seu pais. E do escárnio que se lhes pega à pele.
E também acho que um escritor não deve maltratar a sua obra. Desmerecê-la por falta de rigor (histórico que seja, embora eu viva para lá da Faixa de Ganza) ou maltratando os seus personagens menores, como as mulheres, os padres e outros maricas.
Nós mulheres…, já estamos habituadas. Eu até tenho um certo respeito pelos homens das obras que descansam os olhos em mim e lhes sai um ou outro comentário desnecessário. Agora, quanto ao MST, não lhe exijo mais só por ser um burguês inteligente. Mas já não o acho tão giro! Maldito gordo com voz bonita!