sábado, 24 de outubro de 2015

Coligação PàF-BE

Pode ser surpreendente, mas uma coligação entre o PaF e o BE até pode ser duradoura

Acabaram-se os devaneios anti-democráticos e anti-parlamentares de todos aqueles que pretendiam que um mero trinta-e-um de boca de uma “maioria de esquerda” se substituísse ao parlamento na eventual demissão de um governo do PaF, algo que era visto como mera “perda de tempo”. Só faltou dizerem-nos que as próprias eleições também eram um desperdício, que eles é que sabiam muito bem o que o povo queria, como muitos dos seus correligionários o fizeram no passado e também em outras paragens.

Como era sua obrigação constitucional, o PR indigitou Passos Coelho para formar um novo governo.

Parece cada vez mais claro, que o PCP andou as últimas semanas apenas a “tourear” o PS e que nunca teve a mais leve intenção de integrar um eventual executivo de esquerda. A prova final disso foi a apresentação, pelos comunistas, em Bruxelas, de uma proposta de apoios para quem saia do euro. Se isto não é torpedear uma maioria de esquerda, é o quê? Ainda por cima, porque o PCP age sempre em “colectivo”, coordenado pelo Comité Central.

Assumindo que os comunistas não vão integrar um governo de esquerda, será totalmente ridículo o PS derrubar um executivo apoiado por 107 deputados (PaF) para o substituir por outro, que representa apenas 105 deputados (PS-BE).

Mas é também evidente que um governo do PaF, apenas com maioria relativa, corre o risco de ter a vida curta. É por isso que me parece interessante considerar uma eventual coligação destes partidos com o BE, por mais surpreendente que ela pareça à partida.

Há que reconhecer que o BE sofreu uma profunda transformação nos últimos meses, seguindo aliás as pisadas do Syriza. Em primeiro lugar, o BE passou de um partido de protesto para um partido de poder, em parte como resposta à concorrência das suas dissidências. Em segundo lugar e em consequência disso, passou a aceitar fazer cedências e compromissos, trabalho que já realizou nas negociações com o PS.

Do ponto de vista do PaF, parece mais interessante negociar com o BE do que com o PS. Podemos considerar estas negociações em três capítulos: ideológico, orçamental e de aparelho. Em termos ideológicos, o BE seria mais exigente, mas algumas destas reivindicações são tão folclóricas, que a cedência é quase irrelevante, para além de que os líderes do PaF não são muito rígidos. Do ponto de vista orçamental, está tudo tão condicionado por Bruxelas, que até o Syriza já cedeu a tudo. Do ponto de vista dos aparelhos, infelizmente muito mais importante do que seria desejável, o BE seria infinitamente menos exigente do que o PS, que não só é muito maior, como tem o hábito de ir “ao pote”, como se autodenunciou e como a acusação a Sócrates se deverá revelar muito instrutiva.

Do ponto de vista do BE, é preferível integrar um governo com o PaF do que com o PS, sendo que esta segunda hipótese talvez nem sequer se chegue a colocar. Um executivo PS-BE será sempre instável, por ser minoritário, podendo ser derrubado a qualquer altura, inclusive já na Primavera de 2016. Em contrapartida, uma coligação PaF-BE tem a maioria absoluta e a sua sobrevivência estará na mãos do BE que, assim, terá um substancial poder negocial.


Imagino o BE com a pasta da Segurança Social, a eliminar as injustiças sobre os precários dos recibos verdes, extremamente orgulhoso de melhorar as condições de vida de muitos dos seus eleitores. Este e outros sucessos deverão constituir um travão às exigências do BE, que também não deverá querer parar rapidamente esta sua experiência inaugural. Se este executivo durar a legislatura, o BE até se poderá transformar no partido charneira do regime. 

[Publicado no jornal “i”]

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Ir a jogo

António Costa e o PS devem pagar um elevado preço político por derrubarem um governo dos vencedores das eleições

O PR tem o dever de convidar Passos Coelho para formar governo, “ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais” (artº 187º da Constituição).

Há quem defenda que, dadas as movimentações à esquerda, Cavaco Silva deveria passar por cima desta fase e convidar já António Costa. Estou totalmente em desacordo. Em primeiro lugar, não é nada óbvio que o secretário-geral do PS esteja em condições de garantir a disciplina de voto dentro do seu próprio partido, tendo em atenção várias reacções que já foram tornadas públicas, a mais corajosa e responsável das quais da parte de Francisco Assis (mesmo estando fora da AR).

Em segundo lugar, Costa e o PS devem ser obrigados a pagar o preço político de chumbar um governo formado pelos vencedores das eleições, sobretudo tendo em atenção que a coligação já tinha anunciado que não levantaria obstáculos a um executivo minoritário socialista, como o PSD já tinha feito em 1995. Julgo que para os eleitores não será nada indiferente a diferença de atitude entre quem se mostra cooperante e quem não aceita o veredicto eleitoral ao ponto de o sabotar.

Em terceiro lugar, também se lhes deve exigir que paguem o preço político pelo tipo de argumentação com que justificarão o derrube do novo governo, sobretudo para se poder confrontar essa argumentação com aquela que venha a ser a acção futura dum eventual executivo que integre o PS. Seria verdadeiramente indesculpável perdoar o comportamento indigno de António Costa e evitar que pague as consequências dos seus actos.

Chumbado um governo do PàF, será a vez do líder do PS tentar a sua sorte. Nesse caso teríamos duas hipóteses: uma primeira, em que o PCP não aceita integrar o executivo, mas em que o BE aceita ou não; uma segunda, com uma coligação dos três partidos de esquerda no governo.

Se o parlamento não aceita que 107 deputados sustentem um executivo, parecerá muito estranho que aceitem um governo apenas socialista, com o apoio directo de apenas 86 deputados, ou mesmo uma coligação do PS com o BE, que teria apenas 105 deputados. Ou seja, se António Costa não conseguir levar tanto o BE como o PCP para o governo, perde a razão para ter derrubado o governo do PaF.

Na segunda hipótese, parece evidente que esse governo terá uma vida extremamente difícil, em que todos terão que engolir muito do que disseram nos últimos anos. O mais grave nem serão os ataques que receberão da oposição ou da rua, mas os conflitos internos dentro de cada partido e as divergências entre os parceiros governamentais. É impossível acreditar que esta aliança contra-natura tenha uma vida longa, se acrescentarmos a tudo isto, já mais do que suficiente, os variados sinais de deterioração das condições internacionais nos próximos tempos.

Na verdade, para o PS, o que faria mais sentido era fazer rapidamente eleições internas, substituir este líder que se revelou incapaz de ganhar as eleições mais fáceis desde 1995 e deixar a direita queimar-se com as consequências do enfraquecimento da conjuntura externa.

Há muitos políticos que colocam os interesses partidários acima do interesse nacional, mas o que António Costa está a fazer, como antes dele já Sócrates o fizera, é colocar os seus interesses pessoais acima do próprio partido.

Para o país, o que parece imprescindível é que se altere a Constituição, no seu artigo 172º, que proíbe a dissolução da AR com prazos absurdos, que deveriam ser totalmente eliminados. Tudo indica que o país vai perder seis meses por causa de – mais uma – norma constitucional disparatada.


[Publicado no jornal “i”]

sábado, 10 de outubro de 2015

Pasokização

Os resultados eleitorais foram desastrosos para o PS, que ainda está a agravar a situação com uma eventual aliança à esquerda

Até meados de Setembro, o PS ia à frente nas sondagens, o que permitia antecipar que teríamos um governo minoritário socialista, com possibilidade de alguma estabilidade, devido a, pelo menos, uma não oposição da actual coligação.

No entanto, devido à inacreditável sucessão de desastres protagonizados por António Costa, o PS conseguiu a proeza extraordinária de conseguir perder este sufrágio, depois de quatro anos de dura e nem sempre justa austeridade. Costa cometeu o erro de palmatória de virar à esquerda, quando há décadas que Mário Soares já tinha percebido que as eleições se ganham ao centro.

Na área do BE deu-se um fenómeno muito curioso, que estará simultaneamente na base do seu sucesso e do flagrante insucesso das suas dissidências. Já Joschka Fischer tinha dito que a sua mais difícil luta política, que durou vinte anos, foi conseguir transformar os Verdes alemães num partido de poder.

Em Portugal, há alguns anos que se gerou um forte debate interno dentro do BE, entre aqueles que o pretendiam manter como partido de protesto e aqueles que o queriam transformar em partido de poder. Este segundo grupo, incapaz de convencer os seus correligionários, acabou por sair do Bloco, mas não foi capaz de se manter unido, tendo-se dispersado em várias agremiações.

Entretanto, o BE, sentindo-se duplamente ameaçado, quer pelo facto de ter perdido metade dos deputados em 2011, quer pela emergência de partidos dos seus dissidentes, optou (não se sabe ainda se de forma genuína) por se apresentar como partido de poder. Este facto associado à viragem do PS à esquerda, também consubstanciada na estranhíssima escolha presidencial de Sampaio da Nóvoa, terá levado os eleitores a escolher o BE. Já que ambos são partidos de poder, mais vale escolher o artigo genuíno de esquerda do que o PS.

António Costa parece empenhado em prosseguir na senda da asneira, não se tendo demitido após a hecatombe eleitoral, em total contradição com o argumento com que atraiçoou Seguro e dividiu o PS. Para agravar os conflitos internos deste partido, Costa está a coreografar uma aliança com o BE e o PCP, que não é certo que se concretizará. Mas se isso acontecer, será algo votado ao fracasso e ao desastre nacional.

No meio da crise do euro, não podia haver pior altura para esta aliança contra-natura. O PS está a tentar aliar-se com dois Syrizas que, não estando na liderança, são muito menos domesticáveis. A partir de 1995, o PSD levou Guterres ao colo, para garantir a participação no euro e o PS agora faz isto.

Uma eventual grande coligação de esquerda deverá fazer bastante mal ao país, mas os seus estragos deverão ser limitados, não só porque ela deve durar pouco tempo antes de implodir devido às suas incoerências internas, quer porque o seu raio de acção está fortemente constrangido pelas condições do país e os nossos compromissos internacionais.

No entanto, essa eventual coligação tem todas as condições para destruir definitivamente o PS, sem qualquer hipótese de redenção. Como é que os socialistas poderiam sobreviver a terem desrespeitado o resultado eleitoral de 2015, onde claramente perderam, para além de aprovarem legislação de extrema-esquerda?

Muitos suspeitam que o PS dificilmente sobreviverá ao julgamento de Sócrates que, dada a sua personalidade, nunca aceitará cair sozinho. No entanto, parece que é António Costa que quer ficar como o principal responsável pela pasokização do seu partido.


[Publicado no jornal “i”]

domingo, 4 de outubro de 2015

Suspense americano

Muitos investidores em muitos países aguardam pela subida de taxas de juro nos EUA, a primeira desde o início da crise do subprime

Com o desencadear da crise do subprime, a partir de Agosto de 2007, a Reserva Federal dos EUA desceu sucessivamente as suas taxas de referência, tendo no final de 2008 sido fixadas no nível a que ainda hoje estão, entre 0% e 0,25%, sem precedente histórico. Esgotado este instrumento de reanimação da economia, o banco central americano viu-se forçado a recorrer a medidas não convencionais, de “expansão quantitativa”, em três pacotes sucessivos.

Com a recuperação subsequente da economia americana, o Fed começou a diminuir o montante de compras mensais de títulos que vinha realizando, como parte das tais medidas convencionais, cujo mero anúncio, alguns meses antes, provocou bastantes solavancos nos mercados financeiros. A segunda etapa ocorreu no final de Outubro de 2014, com a interrupção de quaisquer compras adicionais de títulos.

Estamos agora na terceira etapa, esperada com grande ansiedade e incerteza, em que a Reserva Federal deverá finalmente voltar a medidas convencionais, subindo a sua taxa de juro de referência do mínimo histórico em que se encontra.

Antes de prosseguir, gostava só de contrastar a experiência dos EUA com a da zona do euro. Naquele país, o banco central agiu com grande agilidade e criatividade, com nítidos sucessos económicos, tendo o PIB já recuperado totalmente da recessão e o desemprego já descido para pouco mais de 5%.

Já na zona do euro, o BCE não podia ter sido mais lento a descer as taxas de juro, tendo tido duas falsas partidas, uma em 2008 e outra em 2011, quando as subiu, como se a economia já estivesse a recuperar. Só em 2013 é que baixou as taxas para os níveis em que já estavam no final de 2008 nos EUA, tendo realizado mais umas descidas cosméticas em 2014. Quanto à “expansão quantitativa”, o BCE também se atrasou, tendo tido um programa inicial em 2009 e um mais alargado, só no início de 2015. Não surpreende, assim, que os resultados económicos europeus sejam claramente inferiores aos americanos, em que o PIB da zona do euro ainda não voltou aos níveis anteriores à crise e o desemprego, apesar de estar a descer, se mantêm ainda nos 11%, claramente acima dos 7% registados no início da crise.

Pode-se dizer que o mandato do BCE, unicamente sobre a inflação, é mais restrito do que o da Reserva Federal, quer sobre a inflação quer sobre o desemprego, pelo que não se deve comparar directamente os resultados económicos que, para além disso, dependem também de outros factores, como a subsequente e específica crise do euro. No entanto, não deixa de ser extremamente curioso constatar que, havendo nos EUA dois objectivos potencialmente em conflito, os valores alcançados hoje estão muito mais próximos das metas, do que acontece no caso do BCE, que só tem uma meta.

Regressando agora a um dos maiores suspenses americanos, sobre a data e a trajectória de subida das taxas de juro de referência, pode-se aceitar que os dados económicos se têm apresentado com alguma ambivalência, com o desemprego numa clara trajectória descendente, mas sem qualquer sinal de aceleração de preços nem salários.

Infelizmente, parece-me que esta discussão, nos próprios EUA, está muito inquinada por condicionamentos ideológicos, que podem impedir a tomada da melhor decisão.

No entanto, entendo que existe uma brutal e esclarecedora assimetria entre correr o risco de subir as taxas tarde demais ou cedo demais. Se se incorrer no erro do atraso, a consequência será uma inflação um pouco acima dos 2% de referência, um problema insignificante, para o qual existe um instrumento, que é a subida das taxas de juro, para o qual não há limite.

Já o erro da antecipação pode fazer soçobrar a economia americana, arrastando muitas outras consigo, e o instrumento disponível ficaria com uma margem mínima. Enquanto o primeiro erro é insignificante e fácil de resolver, o segundo é grave e de difícil resolução. A escolha deveria ser óbvia, mas veremos o que se passará nos próximos tempos, em que da China também já chegam nuvens ao horizonte.


[Publicado no jornal “i”]