segunda-feira, 29 de abril de 2019

O dolo da obsolescência programada


A obsolescência programada não só prejudica milhares de milhões de consumidores, como tem um impacto brutal em termos ambientais. Se permitirmos a continuação da actual tendência, corremos o elevado risco de nos transformarmos numa gigantesca ilha da Páscoa.

A obsolescência programada (OP) consiste em os produtores de bens e serviços agirem no sentido de os seus produtos terem uma vida útil propositadamente curta. Pode-se falar em OP de dois tipos: físico e virtual.

No caso da OP física, os produtos são feitos com material de desgaste rápido que assegura que o equipamento se deteriora num período relativamente curto. Este fenómeno não é novo e muitos se lembrarão de electrodomésticos de pais e avós que duravam muito mais tempo do que os actuais. Com os progressos tecnológicos das últimas décadas, esta evolução seria paradoxal, sobretudo explicada pela OP. Na verdade, há ainda outra explicação: com a descida do preço dos bens em termos de horas de trabalho, compensa cada vez menos fazer arranjos e é preferível substituir por um novo produto.

As empresas têm um óbvio interesse nisto, porque lhes garante muito mais vendas, mas os consumidores são claros perdedores, sobretudo nos produtos com tecnologia muito estabilizada, como é o caso da maioria dos electrodomésticos.

Há quem tenha o descaramento de argumentar que isto é bom para a economia como um todo, porque geraria produção e emprego, que de outro modo não existiria. Isto é absurdo, porque é evidente que produtos mais duradouros jamais se traduziriam em aumentos brutais da taxa de poupança das famílias. Se as famílias pudessem gastar muito menos do seu rendimento em produtos que hoje são objecto de OP é óbvio que escolheriam outros bens e serviços onde gastar essas “poupanças”. Mesmo que, no limite, isso se traduzisse em menor consumo, haveria sempre a possibilidade de recorrer a políticas macroeconómicas de estímulo da procura que, ainda por cima, são, em termos políticos, extremamente atractivas.

Mas o mais grave da OP é a sua pegada ambiental. Apesar de todos os esforços, o nível de reciclagem ainda é demasiado baixo, sendo que o ideal nem é reciclar, mas usar menos. Ou seja, estamos a dar cabo do planeta e a prejudicar os consumidores só para algumas empresas terem lucros maiores, sendo que algumas delas, como já vimos, têm já lucros excessivos devido ao seu poder de mercado.

Do ponto de vista civilizacional, isto é de loucos. Estamos a prejudicar milhares de milhões de consumidores, para benefício de uns poucos. Estamos a permitir a destruição do único planeta que temos, com prejuízo da esmagadora maioria dos habitantes da terra no curto prazo e maiores prejuízos a longo prazo. Se permitirmos a continuação da actual tendência, corremos o elevado risco de nos transformarmos numa gigantesca ilha da Páscoa.

A nossa mais básica liberdade, a de viver, está ameaçada e não podemos assistir a isto de braços cruzados.

Qualquer genuíno liberal tem que responder a isto exigindo uma forte e urgente intervenção dos Estados, de preferência de forma concertada. Desde logo, a nível europeu.

Haverá muitas formas de intervenção útil e proponho uma muito simples: aumentar o prazo padrão de garantia de bens e serviços.

[Publicado na Capital Magazine]

terça-feira, 23 de abril de 2019

Um pedido ao INE


Peço ao INE para dar uma clara centralidade ao tema da distribuição dos salários e rendimentos, criando uma publicação anual dedicada ao tema.

Já se percebeu que os sindicatos tradicionais estão em declínio acelerado e que novas formas de luta laboral vão emergir. Por isso, torna-se cada vez mais importante conhecer a distribuição dos salários em Portugal, para perceber melhor a razoabilidade das reivindicações que irão surgir.

Aliás, o tema da (re)distribuição é tão central no debate político que é essencial que haja fácil acesso a informação detalhada sobre a distribuição dos salários e dos rendimentos.

Tanto quanto é do meu (limitado) conhecimento, o INE apenas publica, num quadro quase escondido, informação sobre salários, em intervalos tão alargados, que os dados acabam por ser pouco úteis.

Trata-se do “Quadro 30a: Trabalhadores por conta de outrem segundo a região de residência NUTS II (NUTS-2013), por setor de atividade principal (CAE-Rev. 3) e escalão de rendimento salarial mensal líquido”, das Estatísticas do Emprego. Em relação a 2018, os dados apresentados são (meus cálculos):

Distribuição dos salários, 2018

Salário mensal
% do total
% acumulada
Menos de 310 euros
3,1%
3,1%
De 310 a menos de 600 euros
23,7%
26,7%
De 600 a menos de 900 euros
38,2%
64,9%
De 900 a menos de 1 200 euros
14,9%
79,8%
De 1 200 a menos de 1 800 euros
14,4%
94,2%
De 1 800 a menos de 2 500 euros
3,9%
98,1%
De 2 500 a menos de 3 000 euros
0,8%
99,0%
3 000 euros e mais euros
1,0%
100,0%

Um dos aspectos mais chocantes desta forma de apresentar os dados, é que ela não permite identificar uma das estatísticas mais elementares, a mediana, o salário do trabalhador que está exactamente nos 50% da distribuição. Deverá andar próximo dos 780€, o valor interpolado, mas não faz sentido este dado não ser divulgado explicitamente.

Segundo a ANTRAM, os motoristas de matérias perigosas, ganham cerca de 1440€ mensais. Olhando para a tabela acima, ficamos a saber que mais de 80% dos trabalhadores ganham menos do que isso, mas não conseguimos ter a certeza se também é verdade para 90%. Se tivéssemos a distribuição dos salários por qualificação profissional iríamos certamente chegar a valores ainda mais extremos.

Por tudo isto, faço um pedido ao INE: dê uma clara centralidade ao tema da distribuição dos salários e rendimentos, criando uma publicação anual dedicada ao tema.

Precisamos de conhecer todos os limites dos decis da distribuição de salários, ou seja, quanto ganha o trabalhador no escalão dos 10%, 20%, 30%, etc. A partir dos 80%, será útil conhecer os dados de forma mais detalhada, por exemplo, dos 85%, 90%, 92%, …, 99%, 99,5%, 99,9%.

Também queremos saber a distribuição por sexo e por nível de formação, para termos informação clara sobre a diferença salarial entre homens e mulheres. Como é evidente, também as diferenças a nível geográfico e etário, entre outras, em apresentação matricial.

Já que interpelei o INE por este motivo, permito-me fazer outros pedidos, de muito menos monta. Era muito bom padronizar as suas publicações, sobretudo os ficheiros excel, que parecem feitos por um conjunto de departamentos que não comunicam entre si.

Por exemplo, os indicadores de confiança apresentam sempre, e muito bem, as suas séries cronológicas completas. Os dados do comércio internacional apresentam apenas o último ano e as estatísticas do emprego nem isso. Basta olhar para o Boletim Estatístico do Banco de Portugal para perceber como se padroniza a apresentação dos dados mais diversos.

Também poderia fazer inúmeras sugestões de como melhorar o site do INE e a apresentação da “Base de dados”, se tiverem interesse nisso.

[Publicado no jornal online ECO]

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Desmantelar os gigantes tecnológicos


A intervenção do Estado a limitar os abusos monopolistas é extremamente necessária e bem-vinda, para que o mercado que interessa, o concorrencial, possa florescer.

Há um equívoco comum, nos defensores do liberalismo, de que a intervenção do Estado, é (quase) sempre de evitar.

No entanto, já o próprio Adam Smith, na sua seminal Riqueza das Nações (1776), alertava que “É raro que pessoas que exercem a mesma actividade se encontrem, mesmo numa festa ou diversão, sem que a conversa acabe numa conspiração contra o público, ou numa maquinação para elevar os preços.” (vol. I, tradução de Teodora Cardoso, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição, 1987, p. 280). Ou seja, o mercado deixado a si próprio pode afastar-se muito dos benefícios da “mão invisível”.

É muito importante distinguir entre as diferentes estruturas de mercado, desde o modelo ideal da concorrência perfeita até ao indesejável oligopólio e ao – péssimo – monopólio.
Há muitas situações em que o mercado, deixado a si próprio, vai evoluindo para cada vez menor concorrência, o que não é nada bom. Nestes casos, é evidente que é necessária a intervenção do Estado, através do organismo responsável pela concorrência, em Portugal a Autoridade da Concorrência, que, inexplicavelmente, está afastada de um conjunto de sectores importantes, que têm reguladores específicos, facilmente capturáveis pelas empresas reguladas.

Neste caso, é mesmo difícil identificar contra-indicações para a intervenção do Estado.

Insisto que alguns liberais (ou assim se julgam eles) entendem que o mercado deve ser sempre deixado em paz, o que é um equívoco, porque um mercado distorcido, como é aquele onde existe falta de concorrência, precisa de ser corrigido. Aliás, dado que a concorrência diminui o lucro das empresas, é mesmo natural esperar que elas, quando isso é viável, façam todo o possível para diminuir a concorrência.

Gostaria de sublinhar que não estou a falar de nenhum vago problema abstracto, mas de situações que afectam o nosso quotidiano.

O Facebook, a Google, a Amazon, etc., são quase monopolistas, não a nível nacional, mas a nível global, o que agrava muito o problema.

Por tudo isto, as propostas da senadora Elizabeth Warren, uma das candidatas democratas às próximas eleições presidenciais americanas, de obrigar ao desmantelamento destes gigantes tecnológicos, são altamente bem vindas e é muito estranho a Comissão Europeia, ao que tenho conhecimento (posso estar mal informado) não ter tomado ainda uma posição forte sobre o tema.

Entendo que qualquer candidato ao Parlamento Europeu, com um mínimo de simpatia liberal, deve abraçar esta causa.

Sem concorrência efectiva, a liberdade, o valor mais importante que um liberal defende, fica diminuída.

Dou só um exemplo do abuso anti-concorrencial de um deles. O Facebook comprou o Instagram, uma rede social rival, reduzindo drasticamente a concorrência. É evidente que isto é altamente prejudicial para os consumidores, que só têm a ganhar com haver concorrentes significativos a competir com o Facebook. Elizabeth Warren quer obrigar o Facebook a vender o Instagram, o que faz todo o sentido.

É interessante o apontamento histórico de que foram os Estados Unidos que, em 1890, publicaram as primeiras leis anti-monopólio e parece estarem a preparar-se para serem pioneiros de novo.

Regressando à actualidade, tem que se acrescentar que, como se o (quase) monopólio não fosse já mau que bastasse, há a acrescentar a descarada fuga à tributação (não me venham com eufemismos sobre elisão fiscal…) destes gigantes tecnológicos.

[Publicado na Capital Magazine]

terça-feira, 9 de abril de 2019

Equívocos nas eleições europeias


O equívoco mais perigoso de todos é Rui Rio convencer-se que o bom resultado (relativo) do PSD é a prova acabada de que a sua estratégia de oposição está certíssima e que não é preciso mudar nem ajustar nada.

Tudo indica que os resultados das eleições europeias, a 26 de Maio, vão dar azo a vários equívocos.

O primeiro equívoco, e o mais fácil de resolver, será o de pensar que os novos partidos não são capazes de eleger deputados, por não o conseguirem fazer neste sufrágio. Um exercício fácil será calcular quantos deputados estas novas agremiações conseguiriam se as eleições fossem legislativas.

É provável que a Aliança e a Iniciativa Liberal (IL) conseguissem alguns deputados e, pelo que temos visto da capacidade de agitação do PAN, com um único deputado, isso poderá mudar muito o novo parlamento. Em relação ao Chega, ainda é incerto se vai conseguir sequer apresentar-se às eleições de Maio.

Há mudanças que se esperam destes resultados: i) a IL terá de ser incluída nas sondagens; ii) as ideias dos novos partidos deverão passar a receber maior atenção da comunicação social.

A IL tem sido, de longe, o partido (incluindo os instalados) que tem exibido maior vitalidade e originalidade, em termos de ideias – e da sua comunicação. É deveras estranho que, quanto mais não seja por curiosidade pela novidade, não receba mais atenção.

Mas será, sobretudo, as votações no PS e no PSD que poderão gerar os maiores e mais graves equívocos.

O PS começa por apresentar um péssimo candidato como cabeça de lista, a quem, há muito tempo, pelas razões mais misteriosas, foi prognosticado uma brilhante carreira política. Na verdade, Pedro Marques nunca apresentou nenhuma ideia digna desse nome, gera pouca empatia e não fala de forma minimamente cativante. A não ser que o seu “valor” político resida na sua capacidade de enganar e mentir descaradamente, com a maior cara de pau, não se compreende a razão da sua “promoção” (?), um ministro que não fez nada, para além, como se disse, de mentir com quantos dentes tem.

A lista socialista prossegue com a ex-ministra Maria Manuel Leitão Marques, que nesta reencarnação foi uma pálida imagem do passado (teria sido uma muito melhor cabeça de lista), passando para um escandaloso 3º lugar (promovido do 7º lugar nas últimas europeias) de Pedro Silva Pereira, o alter ego de Sócrates, o primeiro-ministro responsável pela quase-bancarrota e austeridade da “troika”.

Com isto tudo, é muito provável que o PS tenha um fraco resultado (relativo), que isso assuste os socialistas e os leve a aumento o populismo e eleitoralismo da sua governação até às legislativas.

À direita, também haverá equívocos. O mais perigoso de todos é Rui Rio convencer-se que o bom resultado (relativo) do PSD é a prova acabada de que a sua estratégia de oposição está certíssima e que não é preciso mudar nem ajustar nada.

Nada de mais errado, Rio tem sido um péssimo líder da oposição e a complacência perante estes resultados só pode agravar isso.

É provável que o CDS tenha um desempenho decepcionante e é possível que este partido atribua uma importância excessiva a isso e se lance numa campanha anti-PSD. É de temer que, esquecendo que as eleições se ganham ao centro, o PSD desvie as suas atenções para a direita, desguarnecendo o que é vital. 

Em resumo, as votações de Maio dificilmente serão extrapoláveis para Outubro, até porque a conjuntura externa está em claríssima deterioração e, mais grave do que isso, na zona euro, os instrumentos para contrariar isto são quase inexistentes. Para já não falar no Brexit. Com economia mais fraca, as cativações em Portugal só poderão acentuar-se e as queixas daí resultantes também, o que não ajudará nada o governo.

[Publicado na Capital Magazine]

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Mais sobre as soluções para a habitação


Aumentar a oferta de forma maciça só se poderá fazer – com sucesso – através da iniciativa privada. Ou seja, os senhorios têm que ser bem tratados ou, pelo menos, não podem ser maltratados.

Na sequência do artigo da semana passada, desenvolvo um pouco mais as soluções para o problema da habitação, com o objectivo de disponibilizar muitos milhares de habitações com rendas entre 300€ e 500€, de modo a torna-las acessíveis à metade de trabalhadores mais pobres do país.

É evidente que um objectivo tão ambicioso como baixar as rendas para as pessoas de menor rendimento não pode ser conseguido no curto prazo, mas há que dar passos consistentes e com custo limitado para o alcançar.

Uma coisa parece certa: o compromisso político de inundar o mercado de casas com rendas baixas será a melhor forma de rebentar qualquer bolha especulativa que possa existir no mercado de habitação.

Há um outro aspecto que importa realçar: aumentar a oferta de forma maciça só se poderá fazer – com sucesso – através da iniciativa privada. Ou seja, os senhorios têm que ser bem tratados ou, pelo menos, não podem ser maltratados. Os (potenciais) senhorios não podem ser obrigados a ter custos que não teriam se, simplesmente, deixassem o seu património em depósitos a prazo. Também em termos fiscais.

Toda e qualquer política social na habitação deve ser suportada pelo Estado e pelas autarquias e não despejada em cima dos senhorios. Porque já sabemos o que resulta daqui: a morte do mercado de arrendamento e a subida em flecha, ainda mais do que já há hoje, das rendas.

Gostava de recordar um episódio passado comigo (mas poderia ser com qualquer outra pessoa) no final dos anos oitenta. Para se poder visitar casas que se poderiam alugar, tinha que se pagar primeiro um valor que se aproximava da primeira renda. Como não havia internet, não se fazia ideia das condições da casa. As raríssimas que vi não tinham sequer um mínimo de condições e acabei por perder o dinheiro que entreguei. Quem acha que o mercado de arrendamento está difícil hoje não sabe, ou não se lembra, do pesadelo que já foi. Se quiserem piorar as coisas já sabem o caminho ideal: infernizem a vida dos senhorios.

As propostas anteriormente avançadas levantam duas questões importantes, que tentarei responder: 1) como compatibilizar a intervenção nas zonas com maiores problemas de habitação, Lisboa e Porto, com o resto do país? 2) como fazer a transição entre pessoas com direito a apoio de renda e as que não o terão?

Em relação às zonas em que se consegue, já hoje, habitações aos preços aqui recomendados, julgo que todos compreenderão que nos locais onde não é necessário subsídio, este não deverá ter lugar.

Pode-se pensar em outro tipo de apoios, que hoje, em parte, já existem, mas que se justificará serem reforçados. Só para dar um exemplo, em Lisboa ou no Porto, consegue-se ir a um hospital público por um preço mínimo de transporte, enquanto no interior este custo é muito mais elevado. Faz sentido subsidiar estas deslocações, mas com cautelas, para não se estimular um recurso exagerado aos serviços de saúde, preocupação que esteve na base da criação das taxas moderadoras na saúde.

A segunda questão é mais delicada, mas é óbvio que não se pode cair no erro crasso de fazer que famílias com um rendimento um pouco acima do mínimo fiquem em situação pior do que as de menores rendimentos. Têm que se criar escalões onde este efeito não se faça sentir.

[Publicado na Capital Magazine]