quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

(Des)união bancária

Se um banco da Califórnia entrar em graves problemas isso não afecta as contas do Estado da Califórnia, porque tudo é tratado a nível federal. Na zona do euro, não há nada de semelhante e os problemas bancários já afectaram de forma muito grave as contas públicas da Irlanda, Chipre e Espanha. O problema maior é o ciclo vicioso que se cria, porque o agravamento da dívida pública acaba, por seu lado, por afectar os bancos que ainda estejam sãos, cuja necessidade de ajuda volta a deteriorar as contas públicas, numa espiral terrível.

Após reconhecerem esta evidência, os países da zona do euro decidiram avançar para a criação de uma união bancária, baseada em três pilares: uma supervisão única, um mecanismo de resolução das crises bancárias e um mecanismo único de garantia de depósitos.

Em relação ao primeiro pilar, já foi aprovado, mas apenas incidirá sobre os maiores bancos, que representam cerca de 80% do sector, entrando em vigor em 2014.

O segundo pilar foi aprovado na passada semana e os resultados não poderiam ser mais decepcionantes. Começará, timidamente, em 2015, para só estar plenamente em vigor em 2025. Se já é duvidoso que o euro ainda esteja em vigor em 2015, a probabilidade de ainda circular em 2025 é do mais remoto que há.
O montante envolvido neste mecanismo é ridículo e existe uma forte condicionalidade na sua aplicação. Por tudo isto, o mecanismo de resolução de crises não tem nenhuma das condições necessárias para evitar o contágio entre crise bancária e crise soberana.

O que quer que venha a ser decidido pelo terceiro pilar da união bancária vai interessar muito pouco, não só porque o segundo pilar era o mais importante, como já ficou aqui demonstrado que será sempre insuficiente.
É verdade que muito do que ficou assim decidido o foi por pressão da Alemanha, mas também é preciso sublinhar que é no sector bancário que este país tem mais problemas e em que um sistema solidário os poderia também beneficiar. Ou seja, se nem neste caso a Alemanha está disposta a abrir os cordões à bolsa, então nunca o fará.

Este pífio acordo sobre “união” bancária vem assim, mais uma vez, demonstrar a incapacidade de construir soluções estruturais para a crise do euro. Por isso, é impossível acreditar na sobrevivência a longo prazo desta moeda.

A dúvida é sobretudo sobre o porquê e o quando do seu fim. O braço de ferro orçamental na Grécia, entre o governo e a troika, as eleições europeias de Maio de 2014, com o maior grupo parlamentar contra o euro de que há memória, poderão ser importantes condimentos de perturbações. Em Portugal, o recente chumbo do Tribunal Constitucional coloca-nos mais perto da necessidade de um segundo resgate e deverão aumentar o horror do eleitorado alemão sobre o desenrolar da crise do euro.

Peço desculpa por este fraco presente de Natal que aqui vos deixo, que, apesar de tudo, tenta ser uma forma de ajudar a tomar consciência do que o futuro (próximo?) nos trará.


[Publicado no Jornal de Negócios]

Contra a lei da gravidade

A decisão do TC é profundamente injusta e contra a lei da gravidade

A decisão do Tribunal Constitucional (TC) de vetar uma proposta do governo de convergência de pensões entre o sector público e o sector privado é triplamente injusta e contra a lei da gravidade.

As pensões em causa são triplamente injustas. Em primeiro lugar, por, na generalidade dos casos, não dependerem do conjunto da carreira contributiva, tendo assim uma relação muito fraca com a efectiva contribuição dos pensionistas para o sistema. Em segundo lugar, não só são, na esmagadora maioria dos casos, claramente acima das contribuições, como esta diferença vai subindo à medida que a pensão sobe. Este sistema é altamente regressivo, em flagrante desrespeito pelo princípio constitucional da progressividade. Não é escandaloso que os maiores benefícios ocorram nas maiores pensões?

Em terceiro lugar, estas pensões são injustas, porque são um privilégio que nunca foi nem poderia ter sido alargado ao sector privado e porque jamais poderão continuar a ser atribuídas nestes montantes no futuro.
Mas, pelos vistos, corrigir uma fortíssima injustiça é, de acordo com a leitura que estes juízes fazem da actual constituição, inconstitucional.

Fica-se com uma dúvida profunda: que peso atribuiu o TC ao preceito constitucional de ter as contas públicas equilibradas, em contraponto com o corte nas pensões? Isto para já não falar na gravidade do desequilíbrio das nossas finanças públicas, que nos tem mantido em estado de protectorado desde 2011. Fica-se com a sensação que o TC colocou extremamente mal o problema. Para o TC parece que a dúvida é cortar ou não as pensões, em vez de ser cortar as pensões para equilibrar as contas públicas ou não cortar as pensões e correr o risco de precisarmos de um segundo resgate, com mais vários anos de desrespeito pelo preceito constitucional sobre contas públicas, para além do prolongamento do período de soberania diminuída, que também contraria a constituição.

Como venho defendendo há vários anos, parece evidente a necessidade de uma revisão constitucional que atribua uma importância acrescida ao equilíbrio das contas públicas e submeta todos os direitos adquiridos à sustentabilidade das finanças públicas. Os direitos adquiridos deveriam passar a estar explicitamente previstos na Constituição, o que, por mais estranho que pareça, não é o caso, para também passarem a estar subordinados ao respeito pelo equilíbrio orçamental.

Para além de profundamente injusta, a decisão do TC é também contra a lei da gravidade. Há mais de três décadas que Portugal tem uma taxa de natalidade inferior ao necessário para a sustentabilidade da população e há mais de uma década que a economia praticamente não cresce. Para além destas condições altamente precárias de sustentar qualquer sistema de pensões, acresce que Portugal tem também, no sector público, pensionistas a beneficiar de um dos sistemas mais louca e impossivelmente generosos que é possível de imaginar. Como é que pode passar pela cabeça de alguém que este estado de coisas pode continuar como está?

Como ainda não chegámos à fase em que o Estado legisla o número de filhos que cada pessoa deve ter, nem ainda podemos decretar qual a taxa de crescimento potencial da economia, a única alternativa possível parece ser cortar nas pensões, sobretudo nas mais injustas.

Para além disso, estamos já a sofrer de uma forte sangria de emigração e, se tivermos mais impostos, em substituição dos cortes das pensões, teremos mais desemprego e mais emigração. Tudo isso deverá corroer ainda mais a capacidade da nossa economia suportar as actuais pensões.

Se não for com este governo, será com outro. Se não for com este TC, será com outro. Se não for com esta constituição, será com outra. Se não for dentro do euro, será fora do euro. Mas uma coisa vos garanto: as pensões vão cair, e muitíssimo mais do que o corte modesto que este governo pretendia aplicar. A “lei da gravidade” económica assim o forçará.


[Publicado no jornal “i”]

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

As rendas do euro

Os sectores que mais beneficiaram com o euro, banca, construção e energia, deverão ser os mais sofrerão com o seu fim

Em economia, uma renda económica é um rendimento fruto de um défice de competição, que tanto pode ser natural como artificial. O euro criou muitas rendas, sobretudo nos sectores da banca, construção e energia, que não poderiam ter ocorrido se tivéssemos mantido o escudo.

A bem dizer, não é inteiramente correcto dizer que o euro criou estas rendas. Na verdade, foi um défice de compreensão dos mecanismos económicos do euro que levaram muitos, com particular destaque para Vítor Constâncio, a ignorar a necessidade de continuar a respeitar a restrição externa e a declarar que o défice externo tinha deixado de ser relevante.

Partindo desta erradíssima premissa, que nos haveria de levar directamente para os braços da troika, os sucessivos governos, desde 1995, estimularam fortemente a procura interna. Este estímulo criou uma profunda distorção na economia, gerando uma abundância totalmente artificial nos sectores dedicados à economia portuguesa e um sufoco nos sectores que competiam no exterior, esmagados por uma escalada de custos, quer nos serviços quer nos salários, que aquele estímulo gerou e que seria impossível de acompanhar.

Com os sinais – totalmente errados – criados pela política económica, os sectores não transaccionáveis (dependentes da procura interna) expandiram-se enquanto os sectores expostos à concorrência internacional definharam quase todos.

Vejamos, em particular, três sectores, que foram dos maiores beneficiários com o euro: a banca, a construção e a energia.

Ainda antes da entrada no euro, a descida drástica e estrutural das taxas de juro para os níveis que iriam vigorar na nova moeda provocou uma explosão na concessão de crédito. Se o aumento do crédito era inevitável, já a distribuição sectorial deste não tinha que ser o disparate que foi, com a esmagadora fatia a ir para a habitação e construção, o que jamais permitira pagar a brutal dívida externa criada em contrapartida da explosão do crédito bancário. No entanto, enquanto a bonança durou, o sector bancário pôde inchar em pessoal, regalias aos trabalhadores e sobretudo administradores, bem como lucros aos accionistas.

É importante salientar que a euforia que se apoderou do sector bancário jamais poderia ter tido lugar com o escudo. Entretanto, o euro ainda não acabou, mas o sector bancário já está a pagar, muito parcialmente, os erros que cometeu. Quando o euro chegar ao fim, o sector bancário passará a pagar uma fatia muito maior dos seus erros.

O sector da construção foi outro enormemente beneficiado com o euro, não só pelo sector privado, mas também pelo sector público, em que a orgia de obras públicas, tantas vezes da mais duvidosa utilidade (sobretudo se submetidas a uma análise custo-benefício), expandiu o sector de forma totalmente insustentável. Deixando uma forte dúvida, como salientava um empresário: porquê criar tantos empregos num sector onde os portugueses não querem trabalhar? Será que isto teve alguma coisa a ver com financiamento partidário?

No caso da construção, o fim da insustentabilidade é ainda muito mais evidente do que na banca, sendo a actividade no exterior a única alternativa à falência dentro de portas. Pode ser difícil de acreditar, mas o fim do euro ainda deve trazer mais más notícias, sendo provável que se vejam à venda casas novas abaixo do preço de construir uma nova.

Finalmente, temos o caso da energia, onde se criaram as maiores alcavalas, para subsidiar as energias renováveis, mas não só. Estes excessos foram criados pelo euro, num duplo sentido. Por um lado, a ilusão de a restrição externa ter desaparecido permitiu que se subisse enormemente os custos de energia às empresas, destruindo a sua competitividade. Com o escudo, este disparate teria conhecido um forte travão e nunca poderia ter ido tão longe. Por outro lado, as baixas taxas de juro do euro permitiram a negociação de contratos leoninos, contra o Estado e os consumidores, que com as taxas de juro do escudo seriam proibitivos.

Neste momento, já há tímidas medidas de reversão destas asneiras, mas quando voltarmos ao escudo, a pressão será muito mais brutal e o sector da energia perderá muitas das rendas de que hoje beneficia (de forma muito pouco razoável).


[Publicado no jornal “i”]

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

“Crise de regime”

O PS no governo não vai conseguir diferenciar-se do actual executivo e isso irá criar uma profunda crise de regime

Medeiros Ferreira, uma das vozes com maior independência de espírito da área do PS, afirmou numa entrevista publicada neste jornal no Sábado passado que o “PS, no fundo, tem seis meses a um ano para demonstrar que governa de outra maneira.” Se falhar neste desafio, teremos “uma crise de regime”. Julgo que a intenção desta frase é a de lançar um aviso sobre a necessidade de o PS preparar uma verdadeira alternativa, mas temo que isto caia em saco roto.

Aquele professor recomenda também que haja eleições antecipadas, em Maio de 2014, em simultâneo com as europeias, o que até poderá ser considerado optimista, tendo em atenção as dificuldades com que o governo se vem defrontando, desde logo pelas fissuras internas.

Seja qual for o momento em que o PS volte ao poder, parece-me que tem todas as condições para falhar o repto de governar de forma diferente, por várias razões. Antes de mais, é preciso recordar que entre 1995, início do descalabro das contas externas e 2011, o pedido de ajuda à troika, in extremis, o PS esteve no governo mais de 80% do tempo.

Nesse período, o PS ignorou a globalização, destruiu a competitividade e o potencial de crescimento da economia portuguesa, colocando em causa o financiamento do Estado social. Possivelmente por razões ideológicas, ignorou a defesa da família, e assistiu impávido a uma queda desastrosa da natalidade, colocando de novo em risco a sustentabilidade do Estado social.

Para além disso, para o PS, o Estado “social” parece ser muito mais um Estado “clientelar”, no qual as maiores corporações do sector público se sentam à mesa, onde as maiores negociatas públicas têm lugar (quem assinou a maioria dos contratos das PPP, dos swaps, etc.?), para além de mais umas quantas prebendas avulsas (a que propósito é que o Grande Moralista Baptista Bastos vive numa casa da C.M. Lisboa?).

Para os socialistas, a verdadeira alternativa seria reviver o passado no tempo em que Bruxelas estava cega para as asneiras que os países periféricos iam perpetrando e no tempo em que o crédito era quase à borla. Mas, quer já tenham tomado consciência disso, quer não, bem podem cantar para o tempo voltar para trás, que ele não vos ouvirá.

Sendo assim, que alternativas se colocam ao PS? O primeiro obstáculo a divisar alternativas prende-se com o facto de este partido se ter tornado numa associação “clientelar”, muito mais do que ideológica. Se o norte do PS fosse a preocupação pelos mais pobres e desfavorecidos, isso permitir-lhe-ia uma agenda muito mais clara e desimpedida.

No entanto, como está prisioneiro das clientelas que favoreceu até aqui, está numa camisa-de-onze-varas. Como é evidente, a consolidação orçamental terá que ser conseguida justamente pela eliminação das generosidades concedidas às corporações públicas, quer no trabalho, quer na reforma. Como é que o PS pode sobreviver a atacar a sua base eleitoral por excelência?

O estado lastimoso das contas públicas, bem como o estado de urgência que deverá forçar a desrespeitar inúmeros contratos financeiros públicos, deverão colocar um fortíssimo travão a qualquer grande contrato público nos próximos tempos. Dado a péssima utilização que foi dada a estes contratos, isto só pode ser encarado como uma excelente para os contribuintes. No entanto, mais uma vez, isto é uma terrível notícia para o PS, que se tem habituado a beneficiar um conjunto alargado de “empresários”, cuja vantagem competitiva é o acesso aos corredores do poder. Sem o apoio desta “elite”, como é que o PS (se) irá governar?

Em resumo, a menos de um golpe de asa, de que nem o actual líder do PS, nem as alternativas parecem ser remotamente capazes, os socialistas deverão ser obrigados a repetir as medidas do actual governo, com a agravante de o fazerem contra a sua natural base de apoio. Como bem prevê Medeiros Ferreira, isto tem todas as condições para criar uma “crise de regime”. Mas não haja a menor ilusão que a queda do PS poderá beneficiar o centro-direita.

Atrevo-me a antecipar que isto deverá levar à implosão dos actuais partidos tradicionais e abrir espaço para verdadeiras alternativas, possivelmente no quadro de uma 4ª República, então embrionária.


[Publicado no jornal “i”]

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Pressão sobre o TC

Corre por aí a ideia de que analisar e criticar as decisões passadas e futuras do Tribunal Constitucional (TC) seria não só uma forma de o pressionar, como constituiria algo de ilegítimo.

Este preconceito é próprio de quem se julga dono da constituição e do regime, uma atitude muito pouco democrática, reflexo da constituição de 1976, ainda em vigor. Insisto numa ideia que já aqui referi: quem quer usar a constituição como um documento de facção e a impede de ser um diploma de âmbito genuinamente nacional, está a contribuir para assinar a certidão de óbito desta legislação. Por enquanto, podem retirar alguns benefícios disso mas, em última instância, estão a minar a credibilidade daquele texto constitucional.

Na verdade, é inteiramente legítimo criticar o TC em, pelo menos, três linhas principais. A primeira reside na profunda assimetria das suas decisões. No passado, todo e qualquer privilégio que foi atribuído – em exclusividade – ao sector público, jamais foi submetido à mais leve suspeita de inconstitucionalidade, por violação grosseira do princípio da equidade. Hoje, qualquer tentativa de repor uma equidade violada no passado encontra os mais intransponíveis obstáculos.

O segundo tipo de problemas diz respeito ao tipo de argumentação a que o TC vem recorrendo, invocando os mais latos princípios, como a confiança, a equidade, a proporcionalidade, entre outros. Ao usar este tipo de argumentação, vaguíssima, está a usurpar poder político à Assembleia da República. Está a entrar claramente no domínio das escolhas políticas, que devem ser feitas em eleições legislativas, com a agravante de estar a ignorar as condições económicas excepcionais que vivemos. Ao invocar aqueles princípios está também a entrar num caminho de arbitrariedade, destruindo previsibilidade e entrando numa autêntica lotaria jurídica. 

O terceiro problema diz respeito à condição de que as medidas de contenção são aceitáveis, desde que sejam "temporárias". Esta é a mais delirante das fantasias, que tem vindo a ser alimentada por governos em estado de necessidade, que fingem que as medidas são temporárias, com o único fito de obter o acordo do TC, sabendo perfeitamente que são permanentes. 

A dúvida que nos fica é: será que a constituição de 1976 prevê a descoberta de petróleo no Beato? Há um século, Afonso Costa queixava-se de que os portugueses faziam pedidos ao Estado como se este possuísse uma mina de ouro. Passado este tempo todo, parece que não só os portugueses pouco aprenderam, como os juízes do TC também ainda vivem num conto de fadas. 

A 3ª República está num momento crucial, a tentar salvar-se da terceira quase bancarrota em menos de quatro décadas. Só isso, já é extremamente negativo para o regime. Para agravar a situação, tem havido dificuldades excepcionais em resolver o problema, persistindo a fantasia de que o excesso de despesa que nos conduziu aos braços da "troika" é algo a que poderemos regressar dentro em breve. 

Em resumo, as instituições da 3ª República parecem empenhadíssimas em fazer tudo e mais um par de botas para destruir toda e qualquer réstia de credibilidade que ainda lhes sobre.

[Publicado no Jornal de Negócios]

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O regime no banco dos réus

O verdadeiro responsável pelas agruras do presente não é o actual governo, mas os anteriores executivos que acumularam uma gigantesca factura que agora é preciso pagar


Uma das questões mais inquietantes do momento em que vivemos é verificar que demasiada gente – com responsabilidades – pensa que as medidas aplicadas pelo actual governo são da exclusiva responsabilidade deste executivo e da troika.

O que se passou nas últimas décadas até sermos empurrados para a troika parece que entrou num buraco negro de memória. É verdade que a profunda inépcia deste governo, e também a sua megalomania (“vamos para além da troika”), ajudou a criar aquela imagem, mas não é por isso que ela passa a ser verdadeira.

Há um grupo de privilegiados do regime que pretende que o povo se rebele, não para impor justiça, mas para que o actual governo caia na rua, em total contradição com os princípios da 3ª República.

Uma rebelião da turba tem todas as condições para agravar todos os males presentes. Sem um governo capaz de cumprir as condições dos nossos credores, terá que haver uma redução drástica do défice público, por manifesta incapacidade de financiamento. Poderemos mesmo ser expulsos do euro ou ser forçados a sair, sem qualquer garantia de ajuda, e então é que entraríamos num inferno.

Em termos económicos, seria uma desgraça; em termos políticos, teríamos o caminho aberto para todos os desmandos e injustiças e é bom não esquecer como as revoluções comem os seus próprios filhos; em termos de ordem pública, seria uma calamidade.

Mas temos uma alternativa, em moldes semelhantes aos da Islândia: colocar o regime no banco dos réus ou, no mínimo, colocar os últimos governos em tribunal. Porque, mais do que qualquer outra coisa, precisamos de uma tomada de consciência, para não voltarmos a repetir todos os erros do passado.

No entanto, começamos com um grave problema: o descrédito da justiça portuguesa. O risco de assistirmos a um descarado branqueamento dos últimos executivos é elevado.

Para escolhermos os acusados, temos que fazer um inquérito sobre os problemas mais graves.

Quais foram os governos que tomaram medidas de destruição da nossa competitividade e, com isso, deram uma machadada brutal no nosso potencial de crescimento? É importante recordar que até final dos anos 90 a economia portuguesa crescia a 3% ao ano, mas que na década seguinte não conseguiu nem um terço disso. Não há nada que mais tenha destruído a capacidade de Portugal ter um estado social forte do que isto.

Que governos estiveram omissos na degradação da nossa natalidade, outra valente causa do enfraquecimento do estado social?

Quais os governos que conduziram ao descalabro das contas públicas e explosão da dívida pública? Quais foram os governos que assinaram contratos de PPP, que são dívida pública escondida (só para enganar Bruxelas), com o dobro do custo? Em particular, quais os governos que se comprometeram com PPP, com cláusulas frontalmente contrárias ao interesse do Estado e dos contribuintes?

Que governos tomaram medidas eficazes para enfrentarmos a globalização e que governos assobiaram para o lado? Quais os governos que assistiram impávidos à explosão da dívida externa?

Mário Soares, no seu apelo a uma rebelião, esquece duas coisas. A primeira é que aquilo que o actual tem sido forçado a fazer é aquilo que, grosso modo, qualquer governo no momento presente teria que fazer, como consequência dos desmandos das últimas décadas.

A segunda coisa que Soares esquece é que a linha que separa o país não é entre a esquerda, que se continua a julgar dona do regime, por obséquio da constituição não democrática de 1976, e a direita; a linha que divide profundamente o país é a que separa a classe política da 3ª República, que se auto-atribuiu as mais luxuosas mordomias, e o resto do país.

Por isso, Soares está do lado errado e, se apelar muito à violência (que desaprovo completamente), corre bem o risco de ser uma das principais vítimas.

 


[Publicado no jornal “i”]

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Excedente alemão (2)

As críticas ao excedente alemão só podem aumentar o sentimento anti-euro na Alemanha

Retomo o tema da semana passada, por duas razões: para o explicar com mais detalhe; para olhá-lo do lado da Alemanha e para as suas implicações políticas.

O saldo das contas externas depende, essencialmente, de três factores: da competitividade, da procura interna e da procura externa. Há ideia de que só a competitividade contaria, mas essa visão é incompleta. Para percebermos melhor a importância da procura interna darei dois exemplos. A Alemanha teve sempre tendência para ter excedentes externos, mas a seguir à reunificação passou a ter défices externos. Isso deveu-se ao facto de se ter lançado num enorme programa de investimento na Alemanha de Leste, para colocar as infra-estruturas nessa zona do país ao nível do que se verificava no resto. Foi esse forte estímulo da procura interna que conduziu esta economia competitiva a ter défices externos durante uma década.

Um outro exemplo é o actual caso português. Apesar de termos tendência para ter défices externos, estamos agora com um excedente externo. Neste caso, a alteração também não é fruto de uma recuperação da competitividade, mas sim de uma queda drástica da procura interna, em resultado das medidas de austeridade.

Em relação à procura externa, ela também afecta as contas externas, embora de forma menos diferenciada do que os outros dois efeitos, por ser mais genérico.

Vejamos agora porque a Alemanha tem um excedente sem paralelo nos pós-guerra e porque isso é grave. A razão porque a Alemanha tem um excedente externo tão elevado deve-se a dois factores. Por um lado, a uma procura interna insuficiente; por outro, devido a uma taxa de câmbio demasiado baixa para este país.

Se a Alemanha mantivesse o marco, este já se teria apreciado muitíssimo e este país não conseguiria ter um excedente tão elevado. Já que a Alemanha está a beneficiar de uma taxa de câmbio tão favorável, por estar no euro, deveria “compensar” os seus parceiros por isso.

A razão porque este excedente é grave é porque quer a Europa, quer o mundo estão a passar por um período de escassez de procura, agravada pela política alemã.

Passemos agora a analisar esta questão na perspectiva do eleitorado germânico. Para ele, esta reivindicação é absurda e inédita. Mais uma vez, é necessário assinalar que este é mais um conflito político criado unicamente pelo euro e que jamais existiria sem o euro. Com o marco alemão, este moeda apreciar-se-ia muito mais e não haveria tantas razões de queixa, até porque o excedente nunca seria tão elevado.

Para o eleitorado alemão, desconhecedor da análise económica que expus hoje e na semana passada, esta queixa inédita dos parceiros europeus e EUA não faz sentido. Para a opinião pública germânica, um excedente externo é um sinal de saúde e de robustez, uma óbvia qualidade, que é absurdo criticar. Imaginem uma pessoa inteligente ser acusada de ser inteligente, uma pessoa simpática ser insultada por ser simpática.

É natural que protestem, indignados, que a Alemanha não faz dumping (venda abaixo de custo) social nem ambiental, como a China, mas isso não deverá desarmar as críticas internacionais.  

Os alemães já estavam bastante desagradados com o facto de o euro estar a desrespeitar aquilo que lhes tinha sido prometido em Maastricht, de que nunca teriam que pagar pelos erros dos outros. Agora, a somar a este descontentamento, vem esta crítica que, para eles, é incompreensível. O resultado final só pode ser uma ainda maior deterioração da imagem desta moeda.

Se as críticas ao excedente alemão se prolongarem e intensificarem não é difícil prever um crescimento eleitoral do partido Alternativa para a Alemanha, que defende a saída do euro, nas eleições europeias, de Maio de 2014. Por seu turno, este crescimento do sentimento anti-euro tem todas as condições para acelerar o fim da moeda única.


[Publicado no jornal “i”]

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Excedente alemão

O excedente externo alemão é mau não só para a zona do euro, como para o mundo como um todo

Políticos demagogos e irresponsáveis, demasiadas vezes o espelho do eleitorado, têm tendência para criar défices públicos e défices externos. Os défices públicos surgem de despesas públicas imparáveis, para satisfazer inúmeras clientelas, a par de impostos insuficientes, devido à sua impopularidade.

As políticas que gerem défices públicos têm tendência para gerar défices externos (por isso, muitas vezes designados como défices gémeos), a que muitas vezes se adiciona outra, uma taxa de câmbio artificialmente elevada, que os agrava. Uma taxa de câmbio elevada diminui o preço dos bens importados, o que no caso dos bens alimentares e combustíveis é muito popular e atraente para políticos de todas as cores.

Em 1978 e 1983, foi exactamente o problema de um défice externo elevado a razão porque tivemos que pedir ajuda ao FMI. Em 2011, embora não fosse essa a face visível, foi também esse o motivo porque tivemos de pedir ajuda à troika. Com moeda própria, os défices públicos não são um problema porque podemos sempre imprimir moeda para os financiarmos. Mas como não podemos imprimir dólares, temos mesmo que eliminar o défice externo. Dentro do euro, é o défice público que tem que ser corrigido, porque imprimir moeda deixou de ser uma opção.

Há, no entanto, uma diferença muitíssimo importante entre um défice público e um défice externo. Se um país tem um défice público elevado, isso não tem implicações sobre o saldo orçamental dos outros, que tanto pode ser positivo, como negativo.

Com as contas externas já não se passa o mesmo. Se um determinado país tem um défice externo, então há algures no mundo um correspondente excedente externo de igual montante. Tudo isto porque a soma de todos os saldos externos de todos os países é zero.

Por isso, se um grande país, como a Alemanha ou a China, têm um elevado excedente externo, eles estão – necessariamente – a gerar, algures no mundo, défices externos elevados.

O problema é que existe uma brutal assimetria nos desvios ao equilíbrio externo. Se os desvios a um saldo nulo forem negativos (défices), o país terá rapidamente que encontrar forma de os reduzir, sob pena de ficar sem financiamento externo. Já se os desvios forem positivos (excedentes), o país não é forçado a fazer nada, podendo limitar-se a acumular reservas em divisas, ir emprestando dinheiros aos países deficitários ou comprar activos no exterior.

Se os desvios do equilíbrio externo produzissem, naturalmente, uma pressão idêntica de ambos os lados, o trabalho dos países deficitários ficava muito mais facilitado. Por isso é que faz sentido que, para corrigir esta imperfeição natural, se introduzam medidas de política que forcem os países excedentários a reduzir o seu excedente.

Segundo as actuais regras europeias, ao ultrapassar um superavit de 6% do PIB (entre 2012 e 2015), a Alemanha comete uma infracção, embora seja muito duvidoso que seja alvo de alguma sanção.

No entanto, defendo que o limite para o superavit seja reduzido, como seja introduzido um outro limite nominal, porque aqui é isso que conta. Um excedente de 1% do PIB na Alemanha é muitíssimo mais importante do que um excedente de 10% do PIB no Luxemburgo.

Ao ter um excedente elevado, a Alemanha está a prejudicar a periferia da Europa de duas formas. Em primeiro lugar, por lhes dificultar reduzir os défices externos e, em segundo, por estar a conduzir a uma apreciação do euro, que também aumenta aquela dificuldade.

Mas a Alemanha também está a dificultar a recuperação da economia mundial. Um excedente externo ocorre quando um país gasta menos do que o que produz. Como a economia mundial se depara, neste momento, com um défice de procura, a Alemanha, está a agravar este défice e a reduzir o crescimento da economia mundial.


Por tudo isto, os países periféricos deveriam estar a fazer pressão para a Alemanha reduzir o seu excedente externo. Qualquer que seja a política usada para isso, subida dos salários alemães ou aumento da sua despesa pública, ela ajudaria os outros países. Para além disso, este tema também deveria fazer parte do debate do G20. 

[Publicado no jornal i]

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Anti-europeísmo

O facto de a UE ter ido longe demais provocou esta revolta anti-europeia

As próximas eleições para o Parlamento Europeu, em Maio de 2014, preparam-se para ter o maior contingente de deputados anti-europeus de que há memória.

Para os mais europeístas, isto é uma tal heresia, que alguns até se indignam com o facto de eles se candidatarem a lugares numa instituição que os próprios consideram que nem deveria existir. A esses convém lembrar os deputados da Ala Liberal do tempo do marcelismo, que tentaram mudar o Estado Novo por dentro. Infelizmente, não tiveram sucesso e foi necessário o uso das armas a 25 de Abril de 1974 para mudar o regime. Se a Ala Liberal tivesse conseguido os seus intentos, poderíamos ter tido uma transição pacífica para a democracia, como em Espanha, sem as loucuras do PREC, que tanto nos custaram e custam, ainda hoje, sob a forma de uma Constituição deplorável.

Concedendo o direito dos anti-europeístas a candidatarem-se, permanece, para muitos, um ferrete de menoridade moral, como se a sua existência fosse um erro.

A excessiva moralização da política não é boa conselheira, parecendo mais útil tentar perceber qual a razão porque estes partidos anti-europeus estão a ter um crescimento eleitoral tão importante. Será que a UE não terá responsabilidades nesta expansão? Julgo que foi o facto de a UE ter ido longe demais que provocou esta revolta anti-europeia.

Convém recordar o voluntarismo da construção europeia, em que demasiados líderes políticos quiseram ir muito mais depressa do que aquilo para o qual os seus próprios eleitorados estavam preparados.
A vitória de vários “não” em referendo parecia que tinha trazido uma tomada de consciência em relação aos excessos “europeus”. Houve algum acto de contricção com o reforço do princípio da subsidiariedade. Infelizmente, a pulsão burocratizadora da UE é demasiado forte e ainda agora tivemos notícia do projecto de regulamentação de autoclismos. Parece uma ficção cómica, mas é verdade.

Outro passo muito maior do que a perna foi a criação do euro, cheio de falhas estruturais. Desde o início da crise desta moeda, há quase quatro anos, até agora nenhum dos problemas estruturais foi resolvido e não se vislumbra a resolução de nenhum em prazo útil.

O euro permitiu a acumulação de desequilíbrios externos brutais, que jamais seriam possíveis com as moedas nacionais (o FMI teria chegado a Portugal uma década antes) e rouba-nos um instrumento precioso de correcção: a desvalorização. Por isso, a correcção tem sido especialmente dolorosa em todos os países que registaram aqueles desequilíbrios, com recessões graves, desemprego galopante e muito sofrimento.
Como se os problemas económicos não fossem suficientes, o euro trouxe graves conflitos políticos entre os diferentes países, trazendo à superfície os fantasmas da II Guerra Mundial, que se pensava estarem já enterrados.

O actual nível de animosidade entre países e dentro dos países contra o projecto europeu é, assim, da responsabilidade dos “visionários” que quiseram ir muito mais longe do que havia condições para ir. Por isso, eles são os grandes responsáveis pelo sucesso eleitoral dos partidos anti-europeus.
Há aqui um aspecto que merece reflexão: apesar de serem os países do Sul que mais têm sofrido com a crise do euro, tem sido nos países do Norte onde os partidos anti-europeus mais têm crescido. Os países do Sul, apesar do sofrimento, continuam a sentir que permanecer na UE e no euro é preferível a sair. Nos países do Norte, as contribuições para o euro já estão a pesar e ainda estão a um nível muito limitado. Isto também reforça a ideia da dificuldade política em construir uma solução para o euro.

A solução ideal para a crise do euro seria o seu fim combinado num fim-de-semana entre a França e a Alemanha, para minimizar os sentimentos anti-germânicos. Ironicamente, o sucesso de Marine Le Pen em França poderá empurrar Hollande para se entender com Merkel sobre isto, quando o processo estiver um pouco mais maduro.


Uma outra razão da força eleitoral dos partidos anti-UE reside no seu ataque às políticas de imigração. Aqui também é demasiado atraente rasgar as vestes de indignação, em vez de tentar perceber as razões deste sentimento. Mas este tema terá que ficar para um próximo artigo.

[Publicado no jornal i]

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Nova Constituição

A Constituição de 1976 é um documento lamentável, a vários títulos. Tal como as duas anteriores constituições portuguesas, é uma constituição de facção, em que uma parte do país se impõe ao restante.

A Constituição de 1911, republicana e anti-clerical, foi mesmo das mais minoritárias, imposta a um país em que 80% vivia no campo, uma percentagem superior era católica e tendencialmente monárquica.

A Constituição de 1933 também não se recomenda, embora não deixe de ser irónico que o regime corporativo em que aquela se baseava só tenha sido verdadeiramente concretizado no actual regime. Nos nossos dias é que as corporações tomaram o Estado de assalto, sobretudo as do sector público.

A Constituição de 1976, tal como as anteriores, é também um diploma de facção, em particular na versão original, que previa a irreversibilidade das nacionalizações, entre outras pérolas.

Apesar da limpeza realizada pelas sucessivas revisões constitucionais, a actual Constituição continuar a ser um texto deplorável e anti-democrático, em particular no seu preâmbulo onde se continua a querer “abrir caminho para uma sociedade socialista”.

O problema não está apenas na Constituição, mas na jurisprudência que se tem gerado a partir dela, demasiado politizada e declarando inconstitucionalidades baseadas em argumentação tão pobre e vaga como a violação do princípio da confiança. Aliás, pergunto-me se entrar em bancarrota não violará também esse princípio, tendo em atenção que a última vez que isso aconteceu foi em 1892 e que tanto esforço foi feito posteriormente para não o repetir.

Os deputados que impedem a limpeza do texto constitucional de toda a sua canga de facção e os juízes do Tribunal Constitucional que têm uma leitura extremamente rígida da Constituição julgam que a estão a defender. Não percebem que é exactamente o oposto que estão a provocar.

O caracter de facção da Constituição é uma vergonha e quem o defende só contribui para o desprestígio daquela legislação.

Por tudo isto, estou cada vez mais convicto que já não basta uma revisão constitucional, é mesmo necessária uma nova constituição. Não podemos continuar com uma constituição de facção, queremos uma constituição que seja verdadeiramente para o todo nacional, como deveria ser sempre.

Se para termos uma nova constituição precisamos de uma mudança de regime, então que venha ela, até porque este regime já está muito podre e é improvável que resista a todas as dificuldades que se avizinham, no plano orçamental, económico e político, mesmo sem o fim do euro. 

[Publicado no Jornal de Negócios]

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Impunidades e mudança de regime

Quando se iniciar a quarta república, muita impunidade chegará ao fim

Há em Portugal um grupo de pessoas que se sente no coração do regime, quer na política quer na economia, entre as quais, aliás, há grande transumância, e que, por isso, se sente impune. Podem protagonizar as mais escandalosas e descaradas corrupções, que nem sentem necessidade de disfarçar.

O que mais choca é – justamente – esse descaramento e esse não sentir a necessidade de disfarçar. A impunidade é tão total e tão segura, que se pode fazer tudo na praça pública de forma escancarada.

É evidente que para que esta impunidade funcione há dois elementos essenciais. Por um lado, uma legislação feita para proteger os delinquentes. Pode-se roubar descaradamente, mas não se pode chamar “ladrão” a quem roubou. Quem roubou, se acaso chegar a ser alvo de um simulacro de investigação, será ilibado porque a acusação se esqueceu de preencher em triplicado o impresso X, mas quem chama o boi pelos nomes será muito prontamente condenado por difamação e assassínio de carácter.

Este pendor da legislação para proteger os prevaricadores parece ser propositado, para deixar os legisladores e os seus amigos longe de qualquer problema.

O segundo elemento essencial da impunidade é a cumplicidade até às mais altas esferas da justiça.

Sem qualquer pudor, a triste trupe que tem desgovernado os destinos nacionais nas últimas décadas continua a exibir um descaramento inaudito, julgando que o infeliz estado de coisas se manterá e o regime resistirá a tudo. No entanto, ou muito me engano, ou a 3ª República estará a viver os seus últimos tempos.
Antecipam-se as maiores dificuldades em dois cenários distintos, qualquer dos quais com o potencial para destruir mais do que o governo, o próprio regime.

Ainda antes do fim do euro, é bem provável que haja eleições antecipadas e o PS demonstre finalmente que não tem nenhuma alternativa para mostrar. A obrigação de aplicar medidas a contragosto pode bem destruir politicamente este partido, se os conflitos internos não o conduzirem primeiro à implosão. Dentro do euro, teríamos mais duas décadas de austeridade, sem luz ao fundo do túnel. Estas são as condições ideais para trucidar governos a grande velocidade e, com eles, muito pessoal político. Seria impossível o regime não rebentar em algum momento.

Com o fim do euro, e as eleições europeias de Maio de 2014 serão um foco de grande instabilidade, tudo se precipitará, porque as condições económicas se agravarão muitíssimo e a falência da 3ª república se tornará muito mais evidente, tornando ainda mais provável o seu fim e substituição por um novo regime.
A seguir ao 25 de Abril, a anterior elite política teve que se exilar, a principal elite económica foi presa e despojada do seu património, mas a elite judicial foi deixada intacta. Na nova mudança de regime a que iremos assistir, parece-me que todas estas três elites sofrerão pelas suas responsabilidades na situação actual, que ainda vai piorar antes de melhorar.

A corrupção num período de prosperidade é desagradável, mas será tolerável. No entanto, em condições de adversidade extrema, a corrupção torna-se revoltante e insuportável.

Vêem-se já hoje, movimentos ainda inorgânicos de tentativa de organização de alternativas. Por enquanto, são ainda demasiado amadores e inexperientes e, como não seria de estranhar, fortemente demagógicos. No entanto, com o passar do tempo e o agravamento das condições económicas, podem bem ganhar uma outra dimensão.

[Publicado no jornal "i"]

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Orçamentos alternativos

Quem está a pedir o perdão da dívida pode bem estar a pedir o fim do euro.

A esmagadora maioria das críticas à proposta de orçamento para 2014 é profundamente irrealista ou insincera. Não por o documento ser um poço de virtudes, mas por as críticas serem uma fantasia, que nunca explica as alternativas.

Por isso mesmo, vou listar algumas alternativas a este orçamento, por grau decrescente de radicalidade. O orçamento mais radicalmente diferente deste seria aquele que seria feito após a saída do euro. Quando sairmos do euro, dar-se-á uma alteração profunda sobre o foco do que é urgente. Neste momento, as atenções estão focadas no défice público, mas nessa altura o tema mais quente vai passar a ser as contas externas. Elas serão tanto mais importantes, quanto mais desordenado for o fim do euro e quanto maiores dificuldades Portugal tiver nos financiamentos externos.

De volta ao escudo, não será necessário cortar salários e pensões nominais, porque a inflação, o imposto inflação, se encarregará de produzir cortes muito mais fundos. Ou seja, os que defendem (eu não defendo, apenas prevejo) a alternativa da retirada do euro têm tido o cuidado de escamotear as graves consequências que ela trará em termos de redução do poder de compra.

Uma segunda alternativa é negociar um perdão de dívida, mantendo-nos no euro. Este perdão, para fazer sentido, tem que envolver, necessariamente, os credores oficiais. Se envolvesse apenas os credores privados, como no caso do primeiro perdão grego, arriscava-se a levar à falência os bancos portugueses, que depois teriam que pedir mais ajuda ao Estado, que seria forçado a emitir mais dívida, o que seria absurdo.

Já o perdão dos credores oficiais arrisca-se a atravessar várias linhas vermelhas. A perda de fundos por parte do FMI pode ditar a sua retirada da troika e tornar os resgates mais pesados para a Europa. No caso do BCE, pode levar à sua falência, um acontecimento gravíssimo do ponto de vista simbólico. Seria o mundo virado do avesso: o Estado americano em risco de não pagar a sua dívida e a zona do euro, a segunda maior do mundo, com o banco central falido.

Para além disto, o perdão da dívida por parte dos Estados seria desrespeitar a promessa que, há mais de vinte anos, foi feita em Maastricht, de que os contribuintes (em particular os alemães) não pagariam as facturas dos outros. Isso pode soltar todos os diabos, que poderão mesmo conduzir à retirada da Alemanha do euro.

Nem sei o que seria pior: a) Portugal dar início a este processo (no primeiro caso grego não houve perdão aos credores oficiais); b) Portugal só pedir perdão da dívida depois do segundo perdão grego, que terá necessariamente que envolver credores oficiais. Nesta segunda hipótese, caso o novo perdão helénico não fosse suficientemente catastrófico, provocaria o sentimento expresso no ditado alemão: “é melhor um fim com horror do que um horror sem fim”. Em resumo, quem está a pedir o perdão da dívida pode bem estar a pedir o fim do euro.

Um terceiro orçamento alternativo decorreria da renegociação das metas orçamentais com a troika. Mas como é que se chegaria lá? Teria que ser um novo governo, após eleições antecipadas, devido à queda deste governo pela incapacidade de respeitar as condições impostas pelos nossos financiadores. Se o novo governo poderia obter algum alívio nas metas, seria duramente castigado pelos mercados, porque isso demonstraria a incapacidade portuguesa em fazer a consolidação orçamental. Os eventuais benefícios da suavização dos objectivos para as contas públicas seriam destruídos pelos mercados. E não seria apenas o orçamento a sofrer com isso, mas também os bancos e as empresas, que ficariam com custos de financiamento mais elevados.

Finalmente, o quarto orçamento alternativo seria aquele que respeitasse a actual meta com a troika, mas chegasse lá de forma diferente. Aqui não vou entrar em detalhes, justamente para expor o vazio das críticas que se têm ouvido. As sugestões são irrealidades do tipo “não se devia cortar aqui”, sem qualquer corte substituto ou, no melhor dos casos, devia-se cortar 10 aqui em vez de 1000 ali, como se isso fosse uma solução admissível.

Insisto que não estou a afirmar que este orçamento é maravilhoso, nem que não haja alternativas, mas apenas que quem está contra tem que ser mais realista e honesto nas soluções que defende.

[Publicado no jornal "i"]

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Eleições antecipadas

A vitória do PS em eleições antecipadas tornará todos os cortes de pensões e salários constitucionais

1. Ainda sem conhecer muitos detalhes sobre a proposta de orçamento para 2014, arrisco-me a prever que teremos eleições antecipadas num futuro não muito distante. A quase cisão da coligação, aquando a demissão “irrevogável” de Portas, em Julho, não foi resolvida de nenhuma forma credível.

O novo vice-primeiro-ministro recebeu vários presentes envenenados, mas não me parece que esteja disponível para beber o veneno até ao fim. Parece-me razoável prever o fracasso da reforma do Estado, bem como da própria proposta de orçamento. O momento da ruptura final poderá ocorrer fruto de quaisquer novas exigências da troika, que, ainda assim, está muito benevolente, porque já tomou consciência da necessidade de um segundo resgate. No entanto, também poderá ocorrer por outro qualquer pretexto, dada a fragilidade da coligação.

Das eleições antecipadas poderá resultar um governo de coligação do PS, por um lado, com o PSD ou o CDS. Dados os malabarismos que Paulo Portas já fez, parece mesmo que a segunda hipótese tem alguma probabilidade de se concretizar, desde que os resultados eleitorais permitam gerar um governo maioritário dessa forma.

Tenho mesmo que confessar que essa solução me parece a ideal, já que um novo Bloco Central reduz a possibilidade de desenho de alternativas.

O novo governo, espero que não tenham ilusões sobre isso, será obrigado a ter uma política muito semelhante ao actual, até por estar muito condicionado pelo acordo com a troika (seja ele o primeiro ou o segundo). Haverá certamente uma outra roupagem no anúncio das medidas, mas estas serão, no essencial, as mesmas.

Nem sequer é de esperar mais competência, antes pelo contrário.

Espero que então os portugueses percebam que muitas das políticas actuais não são escolhas do actual executivo, mas medidas ditadas pela necessidade de pagar as facturas das últimas décadas de desvarios.

A parte que antecipo com maior divertimento é a expectável alteração radical na posição do Tribunal Constitucional (TC). O que antes era obviamente inconstitucional vai passar a ser claramente constitucional. Tem sido sempre assim: o TC tem um enviesamento partidário anti-direita, independente das questões concretas em análise. Assim, todos os cortes em pensões e salários, toda a “destruição do Estado social” passará a estar conforme com a constituição.

O eleitorado é que é capaz de se rebelar contra os partidos do arco da governação, que nos trouxeram até aqui, que não têm competência para resolver os problemas criados e, ainda por cima, nem falam verdade. Pode bem ser a certidão de óbito de todos eles, embora seja hoje ainda incerto o que os poderá substituir.

2. Em França, em Brignoles, a Frente Nacional de Marine Le Pen ganhou as eleições intercalares. De acordo com uma sondagem a nível nacional, este partido estaria à frente dos dois principais partidos do regime, uma situação inédita. Mais importante ainda, ela está a ganhar votos em antigos bastiões socialistas.
Marine não é tão extremista como o pai e já não é encarada como um atentado à democracia. No entanto, ela pretende referendar a permanência do país na UE e, sobretudo, defende a saída do euro.

As próximas eleições europeias, a disputar em Maio de 2014, prometem, assim, ser muito interessantes. Em França deve ganhar o partido que defende uma retirada rápida e concertada do euro; na Alemanha, o partido Alternativa para a Alemanha também deverá conquistar alguns lugares, sendo a sua bandeira principal a saída do euro; em outros países, como a Holanda, também se antecipa a conquista de assentos parlamentares por parte de partidos com idêntica orientação.


Teremos então um grupo parlamentar europeu significativo, mesmo que não formal, a tornar este tema incontornável. As consequências disto só podem ser acelerar o fim do euro.

[Publicado no jornal "i"]

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Orçamento de 2014

Teme-se que a proposta de orçamento para 2014 seja simultaneamente muito dolorosa e insuficiente

Na próxima semana teremos a divulgação da proposta de orçamento para 2014, um documento dificílimo e que, teme-se, será muito decepcionante.

Tive sempre a sensação que, apesar de o governo ter tentado aliviar a meta do défice para o próximo ano, de 4,0% para 4,5% do PIB, o executivo não estava preparado para alcançar a sua proposta, quanto mais a exigência da troika.

No entanto, devido à crise política criada por Paulo Portas, que quase destruiu dois anos de trabalho, em que ele esteve intimamente envolvido, os nossos financiadores mantiveram-se inflexíveis.

O documento disponível de avaliação da 8ª e 9ª avaliação da troika é demasiado sucinto para permitir uma apreciação conclusiva. No entanto, apesar de termos tido nota positiva é essencial avisar que os nossos avaliadores não tinham inteira liberdade para escrever o que verdadeiramente pensavam. Neste momento, na crise do euro, temos dois casos perdidos, a Grécia e Chipre, um caso de sucesso, a Irlanda, e várias dúvidas, entre as quais Portugal.

Para os mercados financeiros, não há qualquer dúvida: Portugal está muito mais próximo de ser uma segunda Grécia do que uma segunda Irlanda. Por isso é que a troika não lhes pode dar grandes hipóteses de confirmação daquilo que eles já hoje pensam. Será extremamente grave que a Irlanda fique isolada como único caso de sucesso, até porque este país teve problemas por razões sui generis, devido ao facto de o seu sistema bancário ter crescido desmesuradamente.

Com a Irlanda como único país a ser bem-sucedido agravar-se-ão as já actualmente fortes suspeitas de que estamos perante um problema sistémico do euro. E isso pode ser a fonte de novos problemas, de mais contágio a países frágeis, como Espanha e Itália.

Julgo que existe actualmente um outro obstáculo, que se prende com a dificuldade em gerar um novo executivo na Alemanha, pelo que a troika não tem o menor interesse em deixar transparecer dificuldades.

Apesar da benevolência com que a troika tem avaliado Portugal, tenho sérias dificuldades em acreditar que consiga “engolir” uma proposta de orçamento para 2014 cheia de boas intenções, mas com números não credíveis.

Dado o passado do personagem, também não acredito que a reforma do Estado, sobre a qual continua a não se saber nada, tenha qualquer coisa de verdadeiramente substancial e consequente.

Em relação ao corte nas pensões, que muitos criticam como não sendo reforma “do” Estado, tenho que discordar no aspecto em que as prestações sociais são uma das maiores componentes da despesa pública, pelo que é inevitável que sejam afectadas. Em relação ao corte nas “pensões das viúvas” devo confessar que foi mais dos extraordinários erros de comunicação deste governo, uma qualidade em que, aliás, se tem especializado. Se ainda não sabiam os moldes concretos em que iam fazer os cortes, estivessem caladinhos. Assim, o que fizeram foi assustar desnecessariamente pessoas em situação muito frágil, quando aparentemente 97% das pensões não serão afectadas pela medida prevista.

Ainda por cima, esta medida, apesar de ser tomada devido a uma urgência financeira, é de elementar justiça. As pensões de viuvez justificavam-se quando a esmagadora maioria das mulheres não trabalhavam. Hoje em dia, quando esse já não é o caso, já não fazem sentido nos moldes em que existiram no passado. Tem algum sentido uma pessoa que já recebe uma pensão de 3000 euros ainda receber mais uma pensão de viuvez? É evidente que se terão que salvaguardar alguns casos, de existência de órfãos dependentes ou de a pensão de viuvez ser muito superior à pensão base, caso em que se deveria dar o direito de opção.


O resto que ainda falta saber sobre o próximo orçamento tem todas as condições para ser tão ou mais doloroso. Só se espera que da próxima vez o governo não cause sofrimento inútil por pura inépcia comunicacional. Sugiro que tomem, de uma vez por todas, consciência de que não sabem comunicar e contactem um psicólogo ou algum especialista em inteligência emocional para os ajudar. 

[Publicado no jornal "i"]

domingo, 6 de outubro de 2013

Itália e o euro

A Itália tem um elevado potencial de destruir o euro, por ser demasiado grande para ser ajudada

Nos finais de 2011, a subida das taxas de juro em Itália e Espanha colocaram o euro muito próximo do abismo.

Sabe-se hoje que o primeiro-ministro italiano na altura, Silvio Berlusconi, estava a ponderar a saída de Itália do euro. Circulam rumores que isso terá levado Angela Merkel a pressionar a demissão do seu homólogo transalpino, embora haja alguma dificuldade em imaginar Berlusconi a ceder a tais pressões. No entanto, dado o passado altamente obscuro deste ex-governante também não é inteiramente inverosímil uma tal ideia.
Sejam quais forem as razões (também tinha perdido a maioria no parlamento), o que é factual é que o político-empresário se demitiu em Novembro de 2011 e foi substituído por um governo tecnocrático liderado por Mario Monti, que durou até Abril deste ano.

Em Fevereiro de 2013, tiveram finalmente lugar eleições legislativas, que deram lugar a um parlamento e um senado com uma composição muito ingrata, com o partido do comediante Beppe Grilo a conquistar uns impressionantes 25,6% dos votos e dificultando a formação de um novo governo.

O então líder do Partido Democrático (de esquerda), Pier Luigi Bersani, convidado para formar governo, desiste de o fazer ao fim de quase dois meses de tentativas frustradas. O seu sucessor, Enrico Letta, consegue finalmente, no final de Abril, formar um governo de grande coligação, com os partidos de Berlusconi e de Monti.

A Itália do pós-guerra caracterizou-se sempre pela dificuldade em manter governos estáveis, mas essa faceta parecia que tinha regredido nos últimos anos. Eis que ela regressa em todo o seu esplendor, justamente agora que a estabilidade é mais necessária.

Como se houvesse falta de problemas, Berlusconi rasgou o acordo de governo no passado fim-de-semana. Também é verdade que por serem necessárias medidas difíceis é que é muito complicado manter a coesão de um governo de coligação e são os mais demagogos que roem em corda, como também temos visto em Portugal. Para tornar tudo ainda mais confuso, uma cisão do próprio partido de Berlusconi está em cima da mesa.

Hoje, terá lugar uma votação de confiança no parlamento italiano, cujo resultado é incerto, mas que poderá levar este país para eleições antecipadas, pouco mais de seis meses depois de terem tido lugar as últimas.
Uma Itália com uma dívida pública gigantesca, ingovernável e irreformável é uma profunda dor de cabeça para os investidores, que não deverão perder tempo a desfazerem-se dos seus investimentos. As ameaças de corte de rating bem poderão agravar todo este processo.

O que distingue – de forma profunda – Itália dos outros países resgatados até agora é a sua dimensão, não só em termos de economia, como em termos de dívida pública. É impossível ajudar Itália, em dois planos, no económico e político. O peso de ajudar este país é tão grande, que poderia contaminar as contas públicas de vários países. Mas o problema principal é político. A eventualidade de ter que auxiliar o Estado italiano deve levar a uma mudança qualitativa na forma como os eleitorados de diversos países olham para a crise do euro.

É como se ficássemos em presença de dois fins do euro. Ou não há ajuda a Itália e este país é forçado a sair do euro, conduzindo a muitas outras saídas posteriores; ou são os países contribuintes que desistem de permanecer num sistema para eles inaceitável, e saem eles do euro. Em qualquer dos casos, parece evidente que isso levaria ao fim do euro, embora a segunda forma seja a menos penosa.


Como vemos, um agravar da crise política italiana pode bem acelerar o fim da moeda única europeia.

[Publicado no jornal "i"]

sábado, 28 de setembro de 2013

Demissão cívica

Chegámos ao buraco em que estamos também devido a uma gigantesca demissão cívica, individual e colectiva

Se é verdade que chegámos ao buraco em que estamos devido a péssimas decisões dos políticos que nos governaram nas últimas décadas, também temos que reconhecer que permitimos que isso acontecesse.

Em primeiro lugar, porque fomos nós que elegemos esses políticos. Em segundo lugar porque, pior ainda, fomos nós que pressionámos os políticos a fazer algumas das asneiras. O despesismo populista funciona em Portugal, porque faz ganhar votos. Ainda agora, temos inúmeras câmaras a fazer despesa mesmo em cima das eleições autárquicas, para ganharem mais uns votos. Já repararam como isto é absurdo? Políticos a gastarem o nosso dinheiro, que tanto nos custa ter de entregar ao Estado, para nos enganarem.

Em terceiro lugar, nós, colectivamente, não fiscalizámos os nossos políticos para lá das eleições. Os raros que levantaram a voz, com sabedoria e coragem, como o falecido Ernâni Lopes e Medina Carreira, não receberam da nossa parte o apoio que mereciam e que lhes devíamos ter dado para nosso próprio bem, para não nos encontrarmos agora no estado lastimoso em que estamos.

Na verdade, chegámos aqui devido a uma dose gigantesca de demissão cívica, quer a nível individual, quer sobretudo a nível colectivo. Olhámos para o Estado como para o Pai Natal, a quem nós, quais crianças, pedimos tudo e mais um par de botas.

Há reformados a dizer que os cortes nas pensões que estão a ser actualmente aplicados são uma enorme surpresa e que desrespeitam as suas expectativas. Sei perfeitamente que se trata de algo extremamente desagradável por, em muitos casos, não haver oportunidade corrigir isso por outras vias.

Mas não é razoável argumentar que as suas expectativas eram realistas. Há mais de três décadas que a taxa de natalidade desceu abaixo do nível de sustentabilidade e tem-se deteriorado sempre desde então. Este problema até surgiu em Portugal mais tarde do que em muitos outros países europeus, com a diferença que em muitos deles já foram tomadas medidas – com resultados positivos. Como é que alguém pode ter pensado que o problema da queda da natalidade não iria ter – fatalmente – um impacto sobre as pensões? Há décadas que se fala, na Europa e em Portugal, no problema da bomba-relógio da segurança social e os nossos actuais reformados nunca tinham ouvido falar em tal coisa?

Quando é que nos levantámos, colectivamente, para exigir aos políticos que tratassem do problema da natalidade?

Ainda em relação aos reformados, sobretudo no sector público, como é que se pode considerar realista a expectativa de ter uma pensão que ignora – por completo – a totalidade da carreira contributiva e se baseia apenas no último vencimento? Pensar que as expectativas vão ser cumpridas só porque um político assinou uma lei para comprar votos, sem procurar garantir as condições materiais de cumprimento das promessas é também uma forma de demissão cívica.

O colapso do comunismo na Europa de Leste fez chegar a globalização muito perto da nossa porta, com países com forças de trabalho muito mais qualificadas do que a nossa e salários muito inferiores. Como é que respondemos a este desafio brutal? Construindo auto-estradas que ficaram quase vazias e estádios de futebol.

Quando é que, colectivamente, confrontámos os nossos políticos com a pura irresponsabilidade das suas escolhas? Por acaso, um dos raros momentos em que isso aconteceu, foi ao impedir a construção de um aeroporto na Ota. Mas em relação ao desafio da globalização, demitimo-nos colectivamente.

Se queremos, verdadeiramente, mudar de vida, a primeira coisa que temos que fazer, individual e colectivamente, é assumir a nossa quota-parte de responsabilidade pelo estado a que chegámos. Assumir responsabilidade é a primeira forma de deixarmos esta demissão cívica e não assumir responsabilidade é a continuação da demissão cívica.


PS. A facilidade com que Rui Machete, depois de mentir aos nossos representantes, fica (?) como ministro será mais um sinal da nossa demissão cívica. Vamos continuar a tolerar isto?

[Publicado no jornal i]

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Lições por aprender

Ainda não foram aprendidas todas as lições da grande crise, agravada pela falência do Lehman Brothers há cinco anos

Há cinco anos, a 15 de Setembro de 2008, quando o banco de investimento Lehman Brothers declarou falência, teve início a mais grave crise económica dos últimos 80 anos. Comparada com a anterior, esta crise tem produzido transformações demasiado curtas.

Em 1929, teve início a Grande Depressão, que só terminou mesmo, nos EUA, com a escalada de armamento provocada pela II Guerra Mundial (1939-1945).

Mas a Grande Depressão trouxe como resposta uma mudança da agulha na política económica, que se afastou do liberalismo e se aproximou claramente do intervencionismo, mutação essa que perdurou até aos anos 80. No caso da banca, esse intervencionismo traduziu-se, nos EUA, na lei Glass-Steagall (1933), que separou, de forma muito clara, as actividades da banca comercial e a de investimento.

A vitória liberal, protagonizada por Thatcher e Reagan, no início dos anos 80, fez recuar o intervencionismo estatal, em particular no sector financeiro. A desregulamentação financeira está, aliás, na origem de dois graves problemas actuais. Em primeiro lugar, a absurda financeirização das economias que se lhe seguiu levou este sector a absorver uma proporção muito para lá do razoável dos recursos económicos. Em segundo lugar, realizou, de forma camuflada, gigantescas transferências de riscos que, quando foram desvendadas, provocaram o caos.

Este segundo aspecto relaciona-se com um dos mais graves problemas encontrados no sector financeiro: um abaixamento generalizado dos padrões éticos, com honrosas excepções.

Foi enganando este mundo e o outro que os grandes bancos americanos nos  trouxeram à crise do suprime, em 2007, que resultaria na falência do Lehman Brothers, a partir do qual todos os problemas se aceleraram. Em Portugal, também fomos vítimas de outro tipo de comportamentos menos correctos, como se tem vindo a verificar no grau de exotismo dos contractos de swaps, supostamente feitos para minimizar riscos e cujo resultado é o oposto.

O antigo presidente da Estradas de Portugal (EP) afirmou recentemente que sem o contrato swap celebrado em 2010 a empresa não teria conseguido obter financiamento nem na banca nacional nem internacional. Parece querer ele dizer com isto, que era imperioso que aquele contrato tivesse sido realizado. Pois eu fico com uma dúvida: se o contrato de swap é que permitia o acesso a crédito, que cláusulas leoninas conteria ele?

Apesar dos problemas descritos, a crise actual tem tido um impacto estranhamente limitado nas escolhas políticas dos principais países. Não sou propriamente partidário de um recuo genérico na liberalização económica, mas é um pouco estranho que não haja sequer mais tentativas nesse sentido.

Para além disso, esperar-se-ia uma forte reforma do sistema financeiro, para impedir a repetição dos problemas actuais. Em particular, esperar-se-ia uma qualquer versão actualizada da lei de separação entre a banca de investimento e a banca comercial, para impedir que jogadas de alto risco feitas no segmento de investimento contaminassem o sector mais tradicional e mais essencial à economia.

Isto não foi feito nos EUA, nem em Portugal, apesar de, no nosso país, a banca estar a beneficiar de montantes muito significativos de ajuda pública, em alguns casos para tapar buracos deixados pelas mais imprudentes apostas financeiras. Na verdade, a crítica da extrema esquerda, de “economia de casino”, acaba por ter uma razoável aderência à realidade, no sector da banca de investimento.

O que será necessário para que verdadeiras reformas sejam introduzidas? Mais uma catástrofe, como o fim do euro? Talvez, embora se deva acrescentar que, quando isso acontecer (e insisto em afirmar “quando” e não “se”), a falência do Lehman Brothers parecerá uma ligeira indisposição. 

[Publicado no jornal i]

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Salário mínimo europeu

Um salário mínimo europeu criaria inflação galopante nos países fora do euro e milhões de desempregados dentro do euro


O primeiro-ministro francês, Jean-Marc Ayrault, defendeu a introdução de um salário mínimo europeu. A primeira dúvida que se coloca é: ele sabe quais são hoje os salários mínimos nos diversos Estados-membros da UE? Fará ideia que os salários mínimos nacionais variam entre os 135 euros na Roménia e os 1606 euros no Luxemburgo (valores adaptados para serem directamente comparados com os 485 euros em Portugal)? Existe uma relação de 1 para 12 entre o valor mais baixo e o mais elevado e há a fantasia de querer uniformizar isto? Como é possível ignorar as brutais diferenças de custo de vida que existem entre os diversos países?

Saberá ele que em sete países da UE não existe sequer um salário mínimo nacional?

Actualmente, o salário mínimo em França é de 1226 euros, o 5º mais elevado. Quererá ele baixar este valor no seu país? Quererá que todos os países passem a ter o salário mínimo francês?

Imaginem que o salário mínimo na Roménia era praticamente multiplicado por dez. Haveria uma explosão de preços brutal que obrigaria a doses maciças de depreciação cambial, que baixariam o salário mínimo em euros. Este país ficaria assim em situação ilegal e seria forçado a voltar a aumentar o salário mínimo, entrando numa espiral inflacionista delirante e inútil, porque jamais seria respeitada a regra de ter o mesmo salário mínimo (em euros) do que os outros países europeus.

Em Portugal, um salário mínimo de 1226 euros, com a impossibilidade de correcção cambial, haveria despedimentos em massa de centenas de milhar de trabalhadores, com a quase aniquilação de toda e qualquer actividade exportadora. A este propósito é importantíssimo recordar que a ligeira queda registada no desemprego se deve a empregos precários com salários inferiores ao salário mínimo.

De acordo com o INE, em relação aos trabalhadores por conta de outrem, apenas 17% ganham mais de 1200 euros mensais líquidos. Na agricultura esta percentagem é muito inferior, apenas 2%, na indústria um pouco maior (9%) e é nos serviços que ela é mais significativa (20%). Estes dados reforçam a ideia de que as actividades transaccionáveis, sobretudo agricultura e indústria, seriam devastadas com aquela hipotética subida do salário mínimo.

Em resumo, esta medida iria provocar inflação galopante em países fora do euro e milhões de desempregados dentro da zona do euro.

A questão que se segue é a de saber se esta ideia resulta de algum estudo mínimo. Parece-me evidente que é impossível que tenha havido sequer dois minutos de reflexão sobre a exequibilidade desta medida.

Isto é aterrador, chegar à conclusão que um primeiro-ministro de um país desenvolvido e até com enorme apreço pela cultura, como é a França, se permite anunciar ao mundo a primeira excentricidade que lhe passa ela cabeça, sem que tenha sido objecto da mais ínfima análise. É gente deste calibre que vai decidir lançar um ataque militar à Síria? Tenham medo, mas muito medo, porque eles não fazem ideia nenhuma das consequências do que propõem e parece que não têm ninguém ao seu lado que os aconselhe com um mínimo de sensatez.

Há aqui, ainda, uma outra fonte de perplexidade. Há cerca de uma década que tem surgido um sentimento anti-UE, com vários "não" em referendos, um dos mais importantes na própria França. Uma das razões principais pelo desafecto reside no excesso de poder que Bruxelas retirou aos governos nacionais, o que já levou a algum recuo pelas instâncias europeias e à valorização do princípio da subsidiariedade.

Assim sendo, qual o sentido de forçar mais uma uniformização? O objectivo é de maximizar o sentimento anti-europeu? Querem mesmo destruir a UE? Acham que as instituições europeias ainda não estão suficientemente fragilizadas e que ainda precisam de mais uma cacetada?

[Publicado no jornal i]

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Problemas constitucionais

A constituição precisa de mais uma revisão, antes da bancarrota


A mais recente derrota do governo às mãos do Tribunal Constitucional (TC) parece revelar três problemas. O primeiro problema reside no próprio texto constitucional, do qual está ausente uma preocupação clara com a sustentabilidade das finanças públicas, o que já permitiu que em menos de 40 anos Portugal se tenha confrontado com três situações de quase bancarrota.

Ainda hoje, parece que o TC acha que não se passa nada de grave nas finanças públicas e que uma promessa feita em 2008 não pode ser colocada em causa, mesmo que a alternativa seja a bancarrota.

É necessário criar  na Constituição uma norma de sustentabilidade das contas públicas hierarquicamente superior aos direitos adquiridos e a muitas outras fontes de despesa pública, que os governos possam invocar para corrigir situações de excepção como a que vivemos.

Deve-se, aliás, acrescentar, que já não estamos sob o risco da insustentabilidade, já entrámos decididamente neste território e não deve faltar muito tempo até que tenhamos de assumir uma forma, ainda que mitigada, de bancarrota. Com a economia que temos, que não cresce há mais de uma década, é impossível conviver com uma dívida pública que já ultrapassou os 130% do PIB.

O segundo problema consiste na duplicidade de critérios com que o TC tem vindo a tratar o sector público e o sector privado. Quando ao sector público foram atribuídos privilégios impossíveis de estender ao sector privado, nunca foi invocada qualquer inconstitucionalidade por falta de equidade. Quando aos eleitorados foi garantido que não haveria subida de impostos, nunca houve nenhum problema de “confiança” em relação a expectativas. Teria sido muito engraçado que nessa altura o TC tivesse declarado que os aumentos de impostos eram inconstitucionais e obrigasse os diferentes governos a cortar a despesa.

Finalmente, o terceiro problema reside na falta de competência jurídica e política do governo em lidar com estas questões. No último chumbo, uma das questões foi derrotada por unanimidade e a outra com apenas um voto contra. O executivo achava mesmo que esta proposta seria aprovada?

O governo deveria munir-se sempre de um parecer de um constitucionalista, não só para garantir qualidade jurídica, mas também como forma de protecção política. Nos casos mais importantes deveria pedir mesmo vários pareceres.

Para evitar que estes pareceres se transformassem em meros fretes, feitos por encomenda, o seu pagamento deveria ser função do seu grau de sucesso. O pagamento integral só deveria ocorrer nos casos em que o TC aprovasse os diplomas legais com uma margem confortável. Nos casos de aprovação por apenas um voto haveria um desconto e quando a proposta legislativa fosse chumbada por unanimidade não haveria lugar a qualquer pagamento.

Imagino desde já a dificuldade em contratar constitucionalistas que aceitassem estas condições e, inclusive, uma inflação nas remunerações requeridas. Mas isto seria também uma forma de mudar mentalidades, com um maior foco nos resultados.

Há uma outra questão que merecia ser considerada: a possibilidade de o TC prestar um serviço de consultadoria aos legisladores, na definição prévia do que é aceitável e do que não o é. Andamos a perder um tempo precioso e a criar transtornos terríveis e – sobretudo – caríssimos, que poderiam ser evitados se existisse esta possibilidade de consulta prévia.

[Publicado no Jornal i]