segunda-feira, 25 de março de 2019

Oito soluções para a habitação


As soluções para o problema da habitação passam, quase todas, por um – brutal – aumento da oferta.

Na primeira parte desta série, vimos que havia um enorme desfasamento entre o valor das rendas e os salários praticados em Portugal. Na segunda parte, fiz o diagnóstico do problema, que decorre do triplo aumento da procura de habitação, a par de uma – incompreensível – estagnação da oferta.

Nesta terceira parte, com título autónomo, passo às propostas de terapia, que passam, quase todas, por um – brutal – aumento da oferta, envolvendo sete recomendações.

1) Via verde do licenciamento de habitação. Os tempos de espera destes licenciamentos são absurdamente longos, especialmente em Lisboa, sem nenhuma boa razão que o justifique, basta falar com qualquer arquitecto para se ter uma noção do mundo desvairadamente kafkiano (a descrição mais prudente). Recomendo que as câmaras passem a ser obrigadas a revelar, trimestralmente (para enfatizar a urgência de resolver este problema), o número de habitações, novas ou a recuperar, que aguardam autorização municipal, bem como os tempos médios de espera. Espera-se que a obrigatoriedade de divulgação pública deste descalabro force as câmaras a curar este cancro.

2) Urbanizar os “baldios”. Mesmo em Lisboa, ainda há imensos terrenos abandonadas, que nem espaços verdes são, em particular na zona oriental da cidade. Em Londres e Paris não há nenhum espaço livre na cidade, o que tem empurrado as pessoas para a periferia. Não é esse o caso de Lisboa, em que a população foi, desde há cerca de 50 anos, inexplicavelmente forçada a ir morar longe do local de trabalho. Há, assim, amplo espaço livre onde se pode construir muita nova habitação, para além de tudo o resto que complementa o espaço urbano, incluindo jardins.

3) Reabilitar ruínas e espaços vazios. Peço desculpa por insistir no caso lisboeta, mas não é só o que conheço melhor, como foi, em simultâneo com o Porto, a cidade que sofreu a maior destruição de património com o congelamento das rendas de 1974. É extraordinário que, ainda hoje, haja tantos prédios em ruínas e espaços vazios onde já houve prédios, mesmo em zonas cobiçadíssimas. É urgente acabar com este absurdo e reconstruir aí os alojamentos que já existiram.

4) Realojar quarteis. Os quarteis no centro de Lisboa (peço desculpa pela repetição) não exercem aí nenhuma função militar e poderiam, com enorme vantagem, ser deslocalizados para longe ou mesmo trocados por investimento em material militar. A sua urbanização, aproveitando os casos (não muitos) em que existe valor arquitectónico, permitiria também ajudar muito a aumentar a oferta de habitação. 

5) Realojar serviços públicos. Aqui, o caso da capital é inevitável, porque é consequência do nosso malfadado centralismo. Concordo, em tese, com a saída de ministérios de Lisboa, mas, para começar por alterações que provoquem menos disrupção nas vidas dos funcionários públicos, sugiro apenas que se mudem para outras localizações na área metropolitana de Lisboa, bem servidas por transportes públicos.

É importante sublinhar que, até aqui, propus medidas que, ou não custam nada ao Estado (as três primeiras), ou até geram novas receitas (as outras duas). No entanto, com elevada probabilidade, estas medidas não serão suficientes para garantir que se consegue ter um número elevado de habitações a preços acessíveis. Serão, assim, necessárias medidas adicionais, que passo a descrever:

6) Promoção da construção de habitações de renda limitada pelos privados. Tem que se ir para lá da habitação social e assumir a necessidade da criação de rendas limitadas, como já existiram no passado. Há muitas formas de conseguir isto, desde cedência de terrenos públicos, até muito generosas isenções e benefícios fiscais.

7) O Estado e as autarquias construírem um número significativo de habitações de renda limitada. Esta solução só difere da anterior no sentido em que não necessita de qualquer alteração legislativa, basta a vontade política e o desvio de verbas de outras tarefas menos importantes para esta.

8) O Estado e as autarquias assumirem o subsídio de rendas, de modo que os inquilinos paguem em função dos seus rendimentos. Como é evidente, não poderão ser habitações nem muito espaçosas, nem muito luxuosas, nem muito bem localizadas, mas deverão ser muito numerosas, para fazer face à procura.

Há muitos fundos imobiliários que estão desejosos, há décadas, de construir milhares de fogos e os alugarem ao sector público, para que não fiquem com o risco de não pagamento das rendas, um risco caríssimo, dada a inoperância da “justiça” portuguesa.

A Câmara de Lisboa, em particular, tem-se especializado em espatifar rios de dinheiro em obras incompreensíveis, quando esses fundos deveriam, com muito mais óbvia utilidade, ser utilizados na construção de novas habitações a preços módicos, em terrenos de que o município já é hoje proprietário.

Estas propostas geram a pergunta óbvia: como é que se financia isto? Em primeiro lugar, eliminando as duas medidas mais disparatadas do actual governo: reverter a descida do IVA na restauração (custa cerca de 400 milhões de euros por ano) e reverter a semana das 35 horas na administração pública que, como já expliquei aqui, são um luxo de países ricos, só sendo aplicadas em poucos dos países muito mais ricos do que Portugal.

Considerando apenas os 400 milhões do IVA da restauração, estes poderiam, com muitíssimo maior utilidade, servir para dar um subsídio de 100€ mensais (tem que se começar por algum lado e é preferível um subsídio limitado a muitas pessoas do que um apoio generoso a muito menos famílias) a 333 mil rendas, o que abrangeria um número ainda maior de indivíduos.

As poupanças geradas com as recomendações 4 e 5 também podem ser encaminhadas para esta tarefa.

(continua)

[Publicado na Capital Magazine]

segunda-feira, 18 de março de 2019

Tornar a habitação acessível (2)


Para uma boa terapia é necessário um bom diagnóstico. A – forte – subida do valor das rendas não é fruto de nenhum movimento especulativo, mas sim da velhinha lei da oferta e da procura, que se ensina na 1ª aula do 1º ano do curso de Economia.

Na primeira parte desta série, vimos que havia um enorme desfasamento entre o valor das rendas e os salários praticados em Portugal. Antes de avançar com as propostas de soluções, nos próximos textos, veremos agora as causas para a – forte – subida das rendas nos últimos anos, porque não pode haver uma boa terapia sem um bom diagnóstico.

O que explica então o aumento das rendas? Em primeiro lugar, a evolução do ciclo económico, que permitiu reduzir a taxa de desemprego de 17% em 2013 para menos de 7% actualmente. A austeridade tornou-se necessária em resultado dos governos de Sócrates, que colocaram o défice público em 10% do PIB em 2010 e levaram a uma explosão das dívidas pública (de 62% do PIB em 2004 para 96% do PIB em 2010) e externa (de 67% do PIB para 104% do PIB).

A austeridade, cujos principais e inexplicavelmente esquecidos responsáveis foram os governos socialistas, provocou uma recessão e fez subir fortemente o desemprego. Sem emprego, muitas famílias foram obrigadas a desfazer-se das suas casas, entregando-as aos bancos, que, por sua vez, tentaram vendê-las o mais rápido possível, provocando uma sensível queda nos valores das habitações e das rendas.

A descida da taxa de desemprego fez que muitas famílias pudessem voltar a ter casa autónoma, aumentando a procura de habitação.

Nos últimos anos, de forma quase fortuita, assistimos também a uma expansão extraordinária do turismo, incluindo o alojamento local, que ditou a segunda forte razão da expansão da procura de habitação, mais sensível em Lisboa e no Porto.

A terceira razão reside em políticas públicas, de promoção de vistos Gold e residentes não habituais. O mais extraordinário é que, com tanto aumento da procura, parte dele fruto de acção do Estado, não tenha sido feito praticamente nada para expandir a oferta.

A subida dos preços das rendas não é, assim, fruto da acção de especuladores, na explicação do “pensamento” mágico, mas antes resultado de algo que se aprende na 1ª aula do 1º ano do curso de Economia: a “lei da oferta e da procura”. Diz esta lei, que a intuição de todos confirma, que num mercado onde se verifica um aumento da procura e a oferta se mantém, os preços sobem.

Ou seja, a solução para fazer baixar os preços das rendas é promover um aumento da oferta, pelo menos de magnitude semelhante ao do aumento da procura.

Já a explicação para o aumento do valor dos imóveis inclui, para além das razões atrás referidas do aumento das rendas, uma outra, a da forte baixa das taxas de juro. Desde a crise de 2008, que estas taxas baixaram para níveis historicamente baixíssimos, sendo hoje vulgar que depósitos a prazo paguem apenas 0,05% de juro ao ano, o que tem levado à procura de aplicações alternativas.

Vou dar um exemplo com números redondos, meramente ilustrativos, e sem considerar impostos ou outros custos.

Imaginemos que, anteriormente, uma determinação habitação pagava 500€ de renda e os investidores exigiam uma taxa de rentabilidade de 6%, pelo que este andar valeria 100 mil€. Entretanto, as rendas subiram 50% para 750€, o que subiu a valorização deste activo imobiliário para 150 mil€.

Mas agora os investidores, por falta de alternativa, já só exigem um rendimento de 3%, metade do anterior, o que significa que o andar passaria a valer o dobro, 300 mil€ (3% de 300 mil€ são o mesmo que 6% de 150 mil€).

Entre o problema do aumento das rendas e o do aumento do valor das casas, é evidente que o primeiro é muitíssimo mais grave do que o segundo, pelo que é naquele que se devem concentrar as atenções.

De qualquer forma, se se resolver o primeiro problema, o segundo fica grandemente solucionado. A parte que resta já nem sequer requer grande solução, porque a descida das taxas de juro que provocou a valorização dos imóveis, também diminuiu o custo do financiamento da aquisição de habitação.  

(continua)

[Publicado na Capital Magazine]

segunda-feira, 11 de março de 2019

Tornar a habitação acessível (1)


É inaceitável que quem ganha o salário mínimo (ou pouco mais) não tenha acesso a habitação a preços razoáveis. Neste momento, o valor das rendas está totalmente desfasado dos salários.

Há décadas que o Estado ou intervém mal ou se abstém de intervir no mercado de habitação, ainda que o direito à habitação esteja na Constituição (artigo 65º), desde 1976. O número 3 deste artigo diz: “O Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.”
Este preceito nunca foi respeitado, mas hoje estamos hoje particularmente longe do seu cumprimento. Aliás, mesmo que não estivesse na Constituição, é do mais elementar bom senso que os governos se preocupem com que haja habitação acessível para todos.

Em 1974, o congelamento das rendas matou o mercado de arrendamento, gerando uma crise brutal. As reformas posteriores e a descida das taxas de juro permitiram resolver (parcialmente) o problema, promovendo a compra de habitação própria, em que o país se passou a destacar. Diria que a intervenção pública nesta área se tem caracterizado por um misto de intervenção desastrada com demissão.

O problema regressou com a recente forte subida da procura de habitação, sobretudo em Lisboa e no Porto, por via da recuperação da economia, da expansão do turismo, em particular do alojamento local, e por políticas públicas de atracção de residentes não habituais, com elevados rendimentos. É, aliás, um grande contra-senso, que o Estado tenha promovido o aumento da procura e não tenha feito absolutamente nada para estimular a expansão da oferta.

Para se ter a noção da gravidade da questão, dei-me ao trabalho de coligir alguns exemplos de oferta da habitação para arrendamento, no site idealista, que agrega variados outros portais. Fiz pesquisa por concelhos da área metropolitana de Lisboa e do Porto, não colocando qualquer restrição ao tipo de habitação, ordenei pelos mais baratos e escolhi os casos 5º, 10º e 20º, uma forma de diminuir a sensibilidade ao mais barato de todos, que pode ser demasiado invulgar e pouco representativo.

Rendas nos concelhos da área metropolitana de Lisboa

Concelho
Total
5ª mais barata
10ª mais barata
20ª mais barata
Alcochete
11
1 700€
2 500€
-
Almada
106
550€
600€
650€
Amadora
50
630€
700€
780€
Barreiro
18
530€
620€
-
Cascais
1 126
650€
750€
800€
LISBOA
2 603
600€
625€
700€
Loures
59
700€
750€
900€
Mafra
39
800€
950€
1 200€
Moita
9
550€
-
-
Montijo
27
650€
700€
900€
Oeiras
300
600€
700€
800€
Odivelas
39
650€
800€
950€
Seixal
27
600€
675€
1 250€

Para quem não tem andado à procura, isto pode constituir um profundo choque. É quase impossível encontrar habitações por menos de 500€ por mês, quando o salário mínimo é de 600€ e o salário mediano (o máximo que a metade de menores rendimentos consegue auferir) está abaixo dos 1000€. Não tirem ilações erradas, de pensar, por exemplo, que o Seixal é mais caro do que Lisboa. O que se passa é que, havendo apenas 27 habitações disponíveis naquele concelho da margem Sul, a 20ª é das mais caras.

Rendas nos concelhos da zona do Porto

Concelho
Total
5ª mais barata
10ª mais barata
20ª mais barata
Gondomar
20
550€
600€
2 500€
Maia
25
750€
1 000€
1 650€
Matosinhos
115
600€
685€
750€
PORTO
556
500€
550€
600€
Valongo
14
600€
650€
-
Vila Nova de Gaia
155
500€
550€
600€

No caso da zona do Porto, a situação é ligeiramente menos grave, mais continua a ser muito preocupante.

Considero que não faz sentido que se tenha que gastar mais de 50% do ordenado em habitação (até acho que deveria ser menos, mas por agora teremos que ter este objectivo mais realista), pelo que o Estado deveria assumir o compromisso de assegurar um número muito alargado de habitações entre 300€ e 500€ de renda mensal (metade dos salários da metade mais pobre).

Há muitas formas de lá chegar, sendo que a pior e a garantia de fracasso seria o tabelamento das rendas.

(continua)

[Publicado na CapitalMagazine]

quarta-feira, 6 de março de 2019

Da ignorância de alguns juízes


É inaceitável que, num país que aboliu a pena de morte há tanto tempo, haja juízes que, por pura ignorância, estejam a condenar tantas pessoas à morte. Nos casos de violência doméstica, alguns juízes desconhecem noções básicas de psicologia, mas, inconscientes da sua própria ignorância, tomam decisões absurdas, injustas e mortais.

Há alguns anos atrás, fui contactado, indirectamente, para ser perito num tribunal num caso de litígio entre um banco e um cliente. Fiquei espantadíssimo com o dossier que recebi: a) omisso em relação à acusação ou queixa; b) o documento da defesa era especialmente confuso, mal escrito, e sem a menor proposta de solução, dos piores exemplos de litigância, com uma péssima atitude, só protesto, sem o menor vestígio de tentativa de resolver o assunto; c) omisso também em relação às questões concretas em que o juiz gostaria que eu, na qualidade de perito, desse a minha opinião.

Presumi que o juiz estava tão baralhado com o caso, que esperava que fosse o perito a explicá-lo. Decidi recusar o caso, porque me pareceu que, pelo menos o juiz e o advogado de defesa, ou não parecia que tivessem ideias claras sobre o assunto ou não tinham uma atitude minimamente razoável. O inacreditável dossier que recebi também revelava uma grande incompetência por parte do juiz.

Neste caso, o juiz era ignorante de questões financeiras e bancárias, mas tinha consciência da sua própria ignorância, tendo tido o bom senso de pedir um perito, embora depois não tivesse a capacidade suficiente para sequer saber que perguntas lhe colocar.

Nos casos de violência doméstica temos tido, com maior frequência do que seria desejável e com consequências muito mais graves (mortais por vezes) do que meras dívidas, juízes que: a) são ignorantes de teoria psicológica básica sobre violência doméstica; b) ignoram que são ignorantes destas matérias e não pedem qualquer tipo de auxílio técnico externo. É esta dupla ignorância que é letal, por vezes literalmente.

Tem-se visto vários juízes partirem da premissa falsa “uma mulher autónoma e moderna não se sujeita a violência doméstica” para não aceitarem como verdadeiras as declarações de uma mulher com estas características. Pode ser muito difícil para um juiz perceber como esta situação possa ocorrer, mas a sua ignorância da complexidade psicológica desta matéria não o pode levar a negar a realidade.

Há uma outra situação muito preocupante, de desvalorização de uma denúncia de violência quando esta decorre há muitos anos. Se, só ao fim de tanto tempo, há uma queixa, é altamente provável que o agressor tenha atravessado uma linha vermelha e que a violência tenha passado para um patamar muito mais perigoso.

Em relação à pergunta (psicologicamente ignorante) “porque não se queixou antes?”, desejo contar mais um caso pessoal, que não demonstra nada, mas ilustra como as coisas se passam, mesmo em Lisboa. Há tempos, roubaram-me o carro e fui reportar o caso à polícia. Fui tão mal recebido que fiquei com a nítida sensação que, se fosse uma mulher a queixar-me de violência doméstica, o polícia me tinha expulsado da esquadra, sem anotar a queixa. Quantas pessoas tentaram apresentar queixa e esta tentativa nem sequer ficou registada?

Para tentar colmatar o problema expostos, sugiro que a Ordem dos Psicólogos crie uma bolsa de voluntários para assessorar juízes em casos de violência doméstica, para que se torne um hábito. Posteriormente, deixará de ser necessário trabalharem “pro bono”, porque os juízes terão interiorizado a necessidade de assessoria técnica na área da psicologia.

O que se impõe é mudar o actual estado de coisas. É inaceitável que, num país que aboliu a pena de morte há tanto tempo, haja juízes que, por pura ignorância, estejam a condenar tantas pessoas à morte.

[Publicado na CapitalMagazine]