terça-feira, 30 de dezembro de 2014

2015

É muito provável que a justiça continue a fazer estragos sobre a classe política durante o próximo ano, porque tudo indica que a remoção de elementos corruptos nas mais altas instâncias estão a permitir que deixe de haver “vacas sagradas”. É aliás muito provável que processos emperrados ganhem outro alento, passe o estranhíssimo final do processo dos submarinos.

Todos os partidos são potenciais vítimas disto, o que pode arrastar dúvidas sobre os resultados eleitorais até muito próximo das eleições. Apesar disto, o mais provável é o surgimento de um governo de bloco central, tão instável como a sua versão original, cujo fim poderá ser decretado pelo parceiro menor.

De resto, em termos económicos, os problemas maiores parecem ser externos. Desde o Verão que se assiste a uma sucessiva revisão em baixa das previsões de crescimento da zona do euro e tudo indica que deverão continuar.

Estamos a aproximarmo-nos perigosamente da armadilha da deflação, na qual, uma vez entrada, é muito difícil de escapar. É verdadeiramente chocante como, sendo os riscos de deflação muito mais fortes na zona do euro, seja aqui que a acção das autoridades seja menor. Não são só os riscos económicos, já suficientemente graves, mas os próprios riscos políticos. As economias mais frágeis desta zona são as mais endividadas e a deflação iria aumentar estas dívidas em termos reais. É altamente improvável que, dada a sua actual fragilidade, a zona do euro consiga sobreviver intacta a uma provação tão devastadora como uma deflação generalizada e persistente. Por seu turno, o fim do euro tem o potencial de destruir o mais importante legado do pós-guerra europeu.

Aliás, na Grécia, tem hoje lugar a terceira volta das eleições presidenciais que, se for inconclusiva, deverá conduzir a eleições antecipadas. Aí, a extrema-esquerda está a frente nas sondagens e aquilo que tem prometido indica um braço-de-ferro completamente provocador com os parceiros europeus. É demasiado temerário fazer previsões, mas é evidente que isto nos afectará.

Outro braço-de-ferro em curso, diz respeito à compra de dívida soberana pelo BCE, onde já se fala em serem os bancos centrais nacionais a comprarem (e ficarem com o risco) a dívida dos Estados respectivos, como forma de ultrapassar o actual impasse. Tudo isto equivale a estar a discutir como se deve prosseguir a operação no meio de uma cirurgia de coração aberto. É difícil ficar optimista sobre a zona do euro, no meio disto.

Para agravar o cenário, a actual queda dos preços do petróleo prepara-se para fazer mais mal do que bem, tendo todas as condições para iniciar um período de deflação na Europa. A grande dúvida é saber se poderá ser combatida antes de se tornar verdadeiramente perigosa. Isto sem falar no urso ferido em que a Rússia se transformará. Toda esta incerteza política pode bem agravar um cenário económico em degradação.


[Publicado no DiárioEconómico]

domingo, 21 de dezembro de 2014

Armadilha da deflação

Os países que podem usar política orçamental não querem e os que querem não podem

Esta quarta-feira teve lugar a primeira votação antecipada para a presidência da Grécia, em que Stavros Dimas não conseguiu a maioria qualificada necessária. A 29 de Dezembro terá lugar a terceira e última votação que, se não for bem-sucedida, levará a eleições legislativas antecipadas já em Janeiro.

As sondagens indicam que o Syriza, de extrema esquerda, lidera as preferências do eleitorado, à frente do conservadores actualmente no governo, em coligação com os socialistas. O discurso radical do Syriza tem assustado os mercados, registando-se algum contágio a Portugal. Mesmo que este partido modere os seus intentos quando chegar ao poder, tudo indica que, mesmo assim, conseguirá introduzir alguma incerteza, até porque se nota nele um gosto pela provocação.

Noutra frente, tem-se assistido a uma fortíssima queda do preço do petróleo, o que poderia ser encarado como uma boa notícia. Infelizmente, não é o caso. Em primeiro lugar, esta diminuição de preço é já ela, em si mesma, em parte, sintoma da debilidade da economia mundial. Por outro lado, porque ela vem reforçar, de forma poderosa, os já muito elevados riscos de deflação nas principais economias desenvolvidas.

Há uma assimetria muito importante entre inflação elevada e deflação (inflação negativa), quer em termos dos instrumentos de cura, quer em termos de persistência, que me parece útil sublinhar e explicar.

Quando a inflação está elevada, os bancos centrais podem subir as taxas de juro (sem haver nenhum limite superior) para a baixarem. Quando estamos sob a ameaça de deflação os bancos centrais deveriam baixar as taxas de juro, mas existe um limite inferior para isto, que é o zero, e a generalidade dos bancos centrais dos países mais avançados já atingiram este limite há muito tempo. Podem tentar as chamadas “medidas não convencionais”, de “expansão quantitativa”, mas estas têm tido um impacto limitado.

Para além disso, no caso do BCE, há razoáveis dúvidas sobre a legalidade de compra de dívida soberana, única forma de estas medidas terem um impacto sensível. O BCE começou tardíssimo a tomar estas medidas, embora a zona do euro seja aquela onde os riscos de deflação são maiores. Devido aos referidos receios sobre essa legalidade, o BCE tem comprado apenas obrigações privadas, num montante muito limitado (porque também não há muito mais disponível), o que dificilmente poderá ajudar a combater, quer a deflação, quer o abrandamento económico na zona do euro.

Mas a segunda assimetria entre inflação elevada e deflação é ainda mais perigosa. Inflação elevada é, geralmente, sinónimo de excesso de procura, que é corrigido pela subida das taxas de juro. Já a deflação é, também em geral, sintoma de défice de procura, muito difícil de combater, como vimos, e que se reforça a si própria. Quando se entra em ambiente de deflação há tendência a adiar despesa, porque quanto mais tarde se comprar, mais baratos são os bens. Por outro lado, as dívidas vão aumentando em termos reais, podendo também isso fazer as famílias e empresas gastar menos, por se sentirem mais pobres. Por isso é que a deflação é considerada uma armadilha, em que, uma vez caídos, é muitíssimo difícil escapar.

Convém repetir que a recente descida dos preços do petróleo acontece no momento em que já se registavam fortes riscos de deflação, agravando um cenário já difícil, sobretudo na zona do euro.

É verdade que há um instrumento para escapar a isto, a política orçamental, mas cuja utilização está fortemente limitada, não tanto por razões económicas, mas ideológicas. Aliás, muito curiosamente, nos países onde a política orçamental não está limitada por razões ideológicas, nomeadamente na periferia da Europa, ela está fortemente restringida por razões económicas. Os que podem não querem e os que querem não podem.

Quer nos EUA, quer na Alemanha, faria todo o sentido usar pacotes orçamentais expansionistas, ainda por cima quando as taxas de juro reais são nulas em termos reais (quase nulas no caso dos EUA).

[Publicado no jornal “i”]

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Culpado

As declarações de Ricardo Salgado na Comissão Parlamentar de Inquérito são uma tentativa – bastante ridícula – de fugir a assumir responsabilidades, que não são senão suas.

Ao longo dos anos, o que Ricardo Salgado fez inclui-se, geralmente, em dois tipos: erros e aldrabices.

Construir um grupo sem qualidades de monta, como o GES, excessivamente endividado, foi um erro. Não ter vendido activos para reduzir o endividamento, quando a crise de 2007-2008 chegou, foi outro erro. Ter escondido parte das dívidas do GES foi uma aldrabice, que nenhum contabilista faria por sua alta recreação.

Ter permitido que o BESA tivesse o dobro de empréstimos do que tinha em depósitos foi um erro estratégico de proporções bíblicas. Ter financiado este buraco gigantesco com fundos do BES foi já do domínio da pura loucura. Qual é a lógica de um país exportador de petróleo e de capitais, como Angola, importar capitais? Qual é a lógica – por amor de Deus! – de um dos países mais endividados do mundo (importador de capitais), Portugal, exportar capitais?

Não ter pedido ajuda ao Estado, quando todos os outros bancos o fizeram, foi um erro, destinado a esconder a desonestidade da contabilidade.

Ter pressionado Granadeiro (alguém imagina o contrário?) a comprar dívida da Rioforte, foi simultaneamente um erro (ia desvalorizar a PT, um activo importante do BES) e um acto sem lisura.

Ter feito triangulações de operações duvidosas com sucursais estrangeiras, hoje sob investigação ou já falidas, nem necessita de qualificação.

Ter colocado doses maciças de dívida de empresas falidas do GES junto de clientes do BES como é que deverá ser avaliado?

Já na recta final, desobedecer às ordens expressas pelo Banco de Portugal, foi o quê?

O GES e o BES foram escandalosamente mal geridos, com muita incompetência e desonestidade. Dizer que o seu desmantelamento é uma perda para o país é uma piada de mau gosto.

Com tudo o que se sabe hoje, é evidente e difícil de explicar o atraso na intervenção do Banco de Portugal. Mas esta intervenção nunca teria sido necessária se não fosse a gigantesca galeria de horrores que se acumulou no BES.

Há quem defenda que havia alternativas ao mecanismo de resolução adoptado, mas esta opção, com as deficiências que se foram detectando, foi também ela fruto das circunstâncias.

Ricardo Salgado deixou o BES em tão mau estado e, pior ainda, num estado tão nebuloso, que era impossível conseguir, rapidamente, qualquer investidor disponível para entrar num buraco negro. Houve tão pouco tempo para preparar uma solução, que era praticamente impossível que ela não apresentasse falhas.

Como nota final, é de lamentar a coincidência entre Ricardo Salgado, José Sócrates e António Costa, a tentarem desresponsabilizar-se. Mas quem é que quer “líderes” destes?

[Publicado no Diário Económico]

sábado, 13 de dezembro de 2014

Responsabilidades

Com a informação disponível, diria que 80% da responsabilidade pelo desastre no GES/BES é de Ricardo Salgado

A “narrativa” de Ricardo Salgado não passa de um delírio em que ele tenta descartar-se de responsabilidade quando é, sem sombra de dúvida, o principal responsável. Acho extraordinário que haja comentadores que falem na existência de contradições entre o discurso do ex-presidente do BES e o do Banco de Portugal, como se, de alguma maneira, fosse possível atribuir a mesma credibilidade a ambos os discursos, quando Ricardo Salgado não só já foi apanhado a mentir em inúmeras ocasiões, como esteve envolvido num conjunto extraordinário de malfeitorias, como o caso Monte Branco, entre tantos outros.

Soube-se, aliás, recentemente, que quatro dos cinco ramos da família estiveram muito próximos de exonerar o chefe do outro ramo, em Outubro de 2013. Infelizmente, foram convencidos a desistir, do que devem estar hoje terrivelmente arrependidos.

Se a família Espírito Santo não tivesse cometido a quantidade de erros, imprudências e desonestidades (sobretudo Ricardo Salgado) e omissões (o resto da família), nunca os outros intervenientes teriam sequer que ser chamados, pelo que a responsabilidade destes só pode ser minoritária.

Dentro da família, parece evidente que a distribuição de responsabilidades tem que cair desproporcionadamente sobre Ricardo Salgado, que liderou tudo e, sabemos agora, sonegou imensa informação ao resto da família, até os problemas terem atingido níveis insustentáveis.

Dentro da lista de erros de Ricardo Salgado, destaquem-se toda a gestão do BESA e não ter pedido ajuda ao Estado, quando todos os outros bancos o fizeram.

Dentro da lista de imprudências, saliente-se o excesso de endividamento do GES e não vender activos quando a crise de 2007-2008 eclodiu.

Do rol de desonestidades, quase sem fim, escolho apenas duas: esconder dívida do GES a partir de 2008 (só isso mais do que suficiente para lhe retirar a idoneidade) e ter colocado doses maciças de dívida de empresas falidas do GES junto de clientes do BES.

Com a informação disponível, diria que 80% da responsabilidade pelo desastre no GES/BES é de Ricardo Salgado, 10% do resto da família, 8% do Banco de Portugal e 2% do governo.

Com o que já se sabe, é evidente que o banco central deveria ter sido muito mais assertivo nas exigências que foi colocando sobre o BES e o GES, que Salgado ia desrespeitando, sem consequências de maior. O incumprimento deste em relação às ordens no Banco de Portugal, em particular nas suas últimas semanas, foi mesmo o cúmulo e é estranhíssimo que não esteja preso só por essas acções, a que se deveria somar tudo o resto.

Quanto ao governo, manteve uma atitude muito defensiva que, por enquanto, se tem que aprovar. É mil vezes preferível ter todos os bancos a suportar o custo da resolução e a ter um enorme interesse num processo rápido e eficaz, do que os custos passarem logo para o Estado. Lembremo-nos dos disparates que ocorreram a seguir à nacionalização do BPN, que se arrastou inexplicavelmente e em que chegou a haver a ideia peregrina de usar esta marca completamente queimada como banco de PMEs.

É evidente que ainda não sabemos qual vai ser a factura final para os contribuintes, que suponho que terá três elementos. Dado que é improvável que a venda do Novo Banco consiga cobrir os custos iniciais, o Estado irá perder com a participação da CGD no mecanismo de resolução, bem como com os prejuízos adicionais da banca, perdendo com isso receitas fiscais.

Mas o terceiro elemento poderá vir a ser o mais significativo. Como já foi salientado, para haver compradores do Novo Banco é essencial que este não fique responsável por qualquer litígio futuro relativo à sua criação. Assim, é de esperar que o Estado (leia-se, os contribuintes) venha a ter que arcar com, pelo menos parte, desta terceira factura.


[Publicado no jornal “i”]

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Omissões

A omissão do Banco de Portugal assenta também numa cultura jurídica que tem que ser erradicada

No sector público, existe uma terrível assimetria entre uma omissão e um acto que venha a ser considerado incorrecto. Uma decisão não tomada, adiada, nunca suscita a mais leve sanção. Já uma decisão que, com razão ou por capricho superior, venha a ser reprovada, merece um castigo claro, qualquer que seja a forma com que este se concretize.

Com este sistema de incentivos, perante uma escolha com algum grau de ambiguidade, mesmo não elevado, qualquer funcionário ou responsável tenderá a optar pela alternativa menos arriscada: adiar a decisão ou nada fazer.

Por isso, temos um Estado que demora uma eternidade a deferir a menor bagatela. Em consequência desta forma de funcionar, os cidadãos desesperam e os empresários vêem-se confrontados com uma administração que parece ter recebido ordens superiores para colocar os maiores obstáculos possíveis – e sobretudo imaginários – à criação de emprego.

Acresce aqui uma outra assimetria. No sector público, parece que proibir de forma abusiva não tem custos, enquanto autorizar poderá tê-los. Talvez neste caso a assimetria possa ser explicada, quando não por corrupção (quem não paga “luvas” não recebe autorização), por um síndroma de “porteiro de discoteca”, que só sente verdadeiramente o seu poder, quando o usa da forma mais caprichosa e irracional possível.

Todo este intróito para comentar a assessoria jurídica do Banco de Portugal, que o conduziu à omissão, em vez da acção, mesma que essa viesse posteriormente a ser criticada.

Segundo Carlos Costa revelou na comissão de inquérito parlamentar, o Banco de Portugal, apesar de toda a informação entretanto recolhida contra Ricardo Salgado, não lhe retirou o estatuto de idoneidade devido a pareceres jurídicos recebidos a atestar do bom comportamento daquele então banqueiro.

É profundamente chocante que, tendo o banco central acesso a um conjunto de informação incomparavelmente superior ao dos autores dos pareceres, estes tenham conseguido paralisar o supervisor.

Antes de mais convém relembrar que os pareceres jurídicos funcionam na base do princípio de “escolha uma doutrina que eu provo-lhe a contrária”, só estando menos desacreditados do que os estudos de viabilidade económica da generalidade dos investimentos públicos “estratégicos” (que ainda ninguém percebeu porque é que as suas previsões delirantes nunca foram sistematicamente confrontadas com os resultados).

Para além disso, um dos pareceres invocados por Carlos Costa alegava que a transferência feita pelo construtor Guilherme Moreira para Ricardo Salgado, “não afeta [a] idoneidade deste último (…) por não ter dado lugar a condenação pela prática seja de que crime for”. Esta argumentação é ridícula em termos jurídicos e absurda em termos lógicos. O que o parecer tinha que demonstrar é que o presente aceite pelo banqueiro nunca seria passível de condenação de qualquer crime e não que não tinha – ainda – havido qualquer condenação. Já se imagina um homem a matar a sogra à socapa e a pedir um parecer a ilibá-lo, porque ainda não tinha sido condenado.

O departamento jurídico do Banco de Portugal preferiu, assim, não correr o risco de ser contrariado pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA), em vez de defender os depositantes e credores do BES, bem como a estabilidade do sector bancário português, que é para isso que a supervisão existe.

Uma escolha tanto mais incompreensível quanto o proverbial atraso na justiça faria com que a decisão daquele tribunal superior só surgiria quando já seriam mais do que óbvias as malfeitorias de Ricardo Salgado. Então, o STA teria que escolher entre dar razão ao banco central ou passar pela maior humilhação de que há memória.

O que todo este caso revela é que a preferência pela omissão, tão prevalecente no sector público, incluindo no Banco de Portugal, deu os piores resultados na supervisão bancária e exige que haja uma reformulação completa do gabinete jurídico desta instituição, pelo menos ao nível das chefias. Juristas que não percebem o que é mais importante na supervisão não podem permanecer nesta área.

[Publicado no jornal “i”]

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Incompetência e corrupção

A III República tem-se distinguido pela sua excepcional incompetência e corrupção. Em termos de incompetência, conseguiu uma estagnação económica nos últimos 15 anos, para além de ter atingido a quase bancarrota por três vezes em menos de 40 anos.

Em termos de corrupção, certamente ajudada pela mais vergonhosa das associações secretas, a Maçonaria, conseguiu um conluio extractivo entre empresários do regime, partidos políticos e sistema judicial, que foram conseguindo disfarçar o seu comportamento de sanguessugas, com a ajuda do endividamento ao exterior, sobretudo a partir de 1995.

A crise internacional, a partir de 2008, e a crise do euro, a partir do final de 2009, vieram colocar um ponto final num sistema económico insustentável e com fraquíssimos resultados.

Os erros do GES, BES e PT expuseram-se a si próprios, com uma modesta ajuda do Banco de Portugal. Quanto ao resto, parece que foram necessárias algumas mudanças no topo do sistema judicial para que começassem a ser conhecidas e verdadeiramente investigadas.

Para além de casos sortidos, como os de dois ex-ministros socialistas condenados, tivemos o caso dos vistos Gold, que vieram revelar o topo de uma administração pública escandalosamente corrupta.

O PS, partido que se tem confundido com o regime e que mais tempo esteve no poder nas últimas duas décadas, teria necessariamente que surgir como responsável da maioria dos casos. Não é uma questão de má vontade, mas, em primeiro lugar, uma probabilidade estatística e, em segundo lugar, uma especial apetência deste partido pela expansão do Estado e dos seus negócios.

A sombra que paira sobre a justiça tem esquecido outras figuras, do PSD e outros partidos (em particular, os submarinos e Paulo Portas), que deveriam estar a ser investigados.

Por isso, queremos saber quem foram as instâncias judiciais (incluindo as mais altas) que atrasaram e/ou impediram os processos envolvendo Sócrates que só agora vêm a luz do dia. Passaram-se tantos anos e só agora é que há provas?

Fizeram tudo para impedir inúmeros processos de avançarem e, ao instalarem um sentimento de impunidade, deixaram a corrupção aprofundar-se muito mais. A corrupção na justiça está hoje a custar-nos muitos milhares de milhões de euros em contratos absurdos e leoninos, contra os interesses do Estado e dos contribuintes.

É importante recordar que o 25 de Abril varreu de cena a esmagadora maioria da classe política e deu uma valente machadada na elite económica, embora tenha deixado intacto o poder judicial, apesar de parte deste ter sido cúmplice da repressão do Estado Novo.

O que me parece para lá de evidente é que a IV República, que não deverá demorar muito tempo a chegar, terá que fazer uma profunda purga ao poder judicial e colocar na cadeia todos os cúmplices dos políticos corruptos e empresários corruptores.


[Publicado no DiárioEconómico]

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Potência relutante?

A Alemanha encontra-se na situação paradoxal de pretender uma Europa alemã e ser uma potência relutante

A queda do muro de Berlim, há 25 anos, abriu caminho para a reunificação alemã, que teve lugar no ano seguinte. Esta reunificação teve várias consequências, que interessa analisar. Em primeiro lugar, foi sentido pelos alemães como uma normalização do seu estatuto, colocando um fim à menorização e culpabilização que sentiam pelo seu papel na II Guerra Mundial. Até aí, a Alemanha pagava, sem exigir muito em troca, umas “reparações de guerra” voluntárias. O poder político deste país cresceu, assim, por duas vias: porque passou a ser maior e porque deixou de ter vergonha de assumir a sua força natural.

Em segundo lugar, esta normalização e o elevado custo que teve que suportar com a reunificação tornou-a também duplamente menos disponível para contribuir para os outros. Por um lado, porque sentia que o castigo já tinha chegado ao fim e, por outro, porque tinha já uma enorme despesa com a Alemanha de Leste.

Em terceiro lugar, houve uma certa apreensão de alguns parceiros comunitários em relação a este Estado reunificado e (santa ingenuidade!) exigiram-lhe a participação na moeda única. A esmagadora maioria do eleitorado alemão, bem como o Bundesbank, não queria, de forma alguma, ceder o Deutsche Mark. Com base nessa relutância, o chanceler Helmut Kohl impôs condições duríssimas para participar no que viria a ser o euro, na expectativa de elas serem rejeitadas e toda essa ideia abandonada. Para seu grande espanto, as condições germânicas foram aceites e a nova moeda europeia foi criada à imagem e semelhança do marco.

Isto é tão extraordinário e espantoso que tem que ser sublinhado: o euro deu um poder desmedido à Alemanha, de mandar sobre os orçamentos dos outros países, que nunca teria se se tivessem mantido as moedas nacionais. No entanto, a Alemanha foi forçada a adoptar o euro, para que o seu poder fosse contido. Pior era impossível.

Hoje em dia, a Alemanha é acusada, em simultâneo, de querer uma Europa alemã e, contraditoriamente, de ser uma potência relutante.

O que seria uma Europa alemã? Podemos encarar duas respostas: i) uma Europa subjugada aos interesses alemães; ii) uma Europa forçada a imitar os valores alemães.

Ambas estas vertentes fazem sentido. Ao exportar para o Sul da Europa e o resto do mundo, com um euro mais fraco do que seria o marco alemão, a Alemanha teria beneficiado com o euro (se ignorarmos que o Sul pode não vir a pagar as suas dívidas).

Por outro lado, o desejo alemão de cumprimento de estritas regras orçamentais poderá ser encarado como a forma mais evidente de pretender transformar toda a Europa numa ampliação da Alemanha. No entanto, se analisarmos bem este “desejo” o que está verdadeiramente na sua base é uma enorme relutância em pagar qualquer tipo de consequência da falta de rectidão orçamental dos outros países. E é impossível não associar esta relutância ao cansaço de contribuição para o alargamento da Alemanha.

Há aqui outra questão, que tem a ver com o facto de a palavra germânica para “dívida” (Schuld) ser a mesma para “culpa”. Ou seja, há uma identificação profunda entre indisciplina orçamental e erros moralmente muito reprováveis. Daí também uma dificuldade germânica em ter uma visão racional sobre a política económica na zona do euro, esmagada pela avaliação ética, ainda por cima agravada por uma rigidez moral de raiz protestante, dominante no Norte da Europa.

Também se pode dizer que há um elemento de potência relutante no facto de a Alemanha não ter nem se preocupar em ter uma genuína solução para a zona do euro, que vai andando sem grande rumo, até aquilo que presumo venha a ser a implosão final, aquando da próxima crise internacional. A relutância em liderar é tão grande que a Alemanha nem sequer aproveita a circunstância de ser o único Estado europeu que poderia liderar um pacote orçamental expansionista. Isto quando há queixas generalizadas sobre o estado das infra-estruturas neste país, inclusive algumas essenciais para a exportação de mercadorias, e este Estado conseguir financiar-se a uma taxa de juro real nula (!) a dez anos.


 [Publicado no jornal“i”]

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Teimosias

Em política, e não só, há teimosias fatais

 

Em política, e não só, é essencial distinguir entre firmeza de propósito e uma mera teimosia irracional e contraproducente.

Goste-se ou não da personagem e das suas políticas, tem que se reconhecer que Margaret Thatcher foi uma das personagens marcantes do final do século XX. Foi uma das re-introdutoras do liberalismo na acção política, de forma muito mais coerente do que Reagan, e actuou com uma notável eficácia e clareza. Se há algo de que não pode ser acusada é de ser cinzenta, sem ideias, troca-tintas, igual aos outros, não trazer nada de novo, etc. Repito: pode-se não gostar dela, mas é impossível considerar o seu consulado uma irrelevância.

Vou aproveitar dois momentos do seu governo para ilustrar a distinção entre firmeza de propósito e teimosia.

Quando foi eleita primeira-ministra, em Maio de 1979, herdou uma economia debilitada, excessivamente regulamentada por sucessivos governos trabalhistas, que, entre outras coisas, tinham feito enormes concessões aos sindicatos, que tinham um papel preponderante neste partido.

Partidária de uma política económica totalmente diferente, Thatcher lançou um vastíssimo programa de liberalização da economia, que incluía privatizações e desregulamentação dos mais variados sectores.

Uma das mais fortes oposições a estas reformas era corporizada pelo sindicato dos mineiros de carvão, cujo poder era considerado inexpugnável, e que faziam com que a indústria britânica tivesse que suportar custos de energia muito superiores aos seus competidores, colocando graves problemas de competitividade e limites ao crescimento económico.

Em absoluta coerência com o programa eleitoral que já lhe tinha assegurado duas vitórias nas urnas e aproveitando um momento propício em que as reservas de carvão do país eram substanciais, a primeira-ministra do Reino Unido atacou de forma decisiva o poder dos sindicatos mineiros, anunciando o fecho das minas que tinham deixado de ser competitivas.

Seguiu-se a mais extraordinária greve, com um longuíssimo braço de ferro entre o governo e os mineiros, que durou um ano.

É extremamente curioso como a teimosia dos mineiros, que não aceitavam qualquer tipo de compromisso, acabou por ajudar Thatcher a desmantelar de forma muito mais drástica as regulamentações do sector.

Esta greve, que certamente ajudou a cimentar a ideia de “Lady de Ferro”, derrotou também um dos principais pilares do partido trabalhista (os sindicatos), que teve que se reinventar à conta disso.

É evidente que o que estava em jogo nesta greve era muitíssimo mais do que os trabalhadores do carvão e é, por isso, inteiramente compreensível a firmeza de propósito que Thatcher mostrou em todo o processo, que poderia ter decorrido de forma muito diferente se outro fosse o chefe do governo.

Ainda que possa parecer, não se está aqui a fazer a apologia desta forma brutal de agir, embora, em alguns sentidos, Thatcher seja uma inspiração para Passos Coelho.

Já no final do mandato, para além de outras fontes de contestação, a chefe do governo britânico tentou mudar a tributação local, que passaria a ser independente do rendimento/património. Apesar da fortíssima oposição popular, ela insistia na mudança. Os deputados conservadores, vendo o seu lugar crescentemente em risco, acabaram por promover sucessivas eleições internas, que acabaram por retirar o poder a Thatcher.

Reparem na diferença: no Reino Unido, os deputados sentem o poder de destronar o seu líder, mesmo que chefe do executivo, quando este está em queda nas sondagens; em Portugal, os deputados são paus-mandados, que cometeram as loucuras de, no PSD, levar Santana Lopes às urnas em 2005 e, não tão delirante, no PS, propor a reeleição de Sócrates em 2009.

É evidente que, no final de mandato, Thatcher estava a agir por pura teimosia, ignorando as consequências políticas da sua insistência, ao contrário do que tinha feito no caso dos mineiros.

No caso de Passos Coelho e da manutenção de Nuno Crato e Paula Teixeira da Cruz no governo, qual das duas atitudes de Thatcher estará ele a imitar?


[Publicado no jornal “i”]

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Desresponsabilização

A moção de António Costa ao Congresso do PS inicia-se mal, dizendo que o partido “não aceita a perspetiva de que as dificuldades que enfrentamos sejam responsabilidade de Portugal e dos portugueses”. Isto ainda se poderia aceitar se em seguida assumisse que as responsabilidades são, no essencial, dos governos do PS, liderados por António Guterres e José Sócrates. Mas, como é evidente, não o faz.

Prossegue com muito pouco rigor, remetendo os nossos problemas de fraco crescimento (que nem tem a coragem de explicitar) desde 2000, como três choques externos (para quê complicar com “exógenos”?): “a integração da China no comércio internacional; o alargamento da União Europeia a Leste e a criação da moeda única”.

Antes de mais, convém esclarecer que um choque externo nunca é apenas um choque externo: há sempre um conjunto de políticas públicas que o precedem, que podem tornar o país mais robusto ou mais frágil no momento do choque e há as políticas de resposta ao choque, que o podem minimizar ou maximizar.

Comecemos por precisar as datas daqueles choques, para se perceber quão forçada é a sua alegação. O euro iniciou-se em 1999, o alargamento a Leste ocorreu em 2004 e a China registava crescimento de dois dígitos das exportações desde o início dos anos 90.

Para além disso, convém salientar que estes três choques foram anunciados com uma enorme antecedência. A criação do euro foi estabelecida no Tratado de Maastricht, em 1992; o alargamento da UE ao Leste europeu foi o culminar de um processo, iniciado com a queda do muro de Berlim em 1989; a adesão da China à globalização começou com as reformas conduzidas por Deng Xiaoping, desde 1978.

É mais do que evidente que nenhum governo português pode alegar que, de repente, no ano 2000, o país foi confrontado com mudanças inesperadas, para as quais era impossível estar preparado.

Nem sequer têm a desculpa de que não havia dinheiro para tomar medidas, porque os anos anteriores à adesão ao euro foram de vacas gordíssimas, cujo leite foi derramado sem a menor estratégia sobre auto-estradas (quase) sem tráfego, estádios de futebol, aumento do emprego público com baixas qualificações, etc.

Se António Costa acha que não se podia ter feito nada antes dos choques externos, quando havia tempo e dinheiro, o que é que tem agora para oferecer?

Em relação à crise de 2008-2009, culpa-se a paragem dos fluxos de capitais externos, como se fosse possível algum país viver permanentemente com défices externos elevadíssimos e uma dívida externa galopante, de cerca de 8% do PIB em 1995 para 110% em 2009. Vivíamos num “modelo” de não-crescimento insustentável, que teria sempre de ser interrompido.

Ao não assumir responsabilidades pelo passado, o PS só pode repetir os erros dos seus governos anteriores e preparar-se para um segundo pedido de resgate à troika.

[Publicado no Diário Económico]

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Podemos em Portugal?

A transformação do panorama partidário europeu acabará por chegar a Portugal e impedir uma maioria absoluta do PS

Os sistemas partidários europeus estão a passar por sérias convulsões e transformações. No Reino Unido, temos um governo de coligação, o que não acontecia desde a II Guerra Mundial, e sob a ameaça do UKIP, independentista, com sondagens surpreendentes.

Na Alemanha, e contrariando a ideia de que são os partidos radicais que estão a subir nas sondagens, o partido Alternativa para a Alemanha, que defende a saída do euro, também está em franco progresso, embora não ameace, para já, os principais partidos.

Em França, Marine Le Pen já atingiu o primeiro lugar em sondagens presidenciais.

Em Itália, o sistema partidário do pós-guerra sofreu um cataclismo total no início dos anos 90, em resultado da operação Mãos Limpas, que denunciou a generalizadíssima corrupção, a que nenhum dos principais partidos escapou. Infelizmente, e isso é uma das razões de alguma descrença, os novos partidos não se recomendam, nem sequer em termos de terem deixado a atracção pela corrupção. Mais recentemente, o partido de Beppe Grilo tem introduzido novas incertezas e estragos na proverbial instabilidade governativa deste país.

Na Grécia, o Syriza, o Bloco de Esquerda grego, está à frente nas sondagens, embora longíssimo duma maioria absoluta.

Em Espanha, o novíssimo Podemos, ideologicamente um “albergue espanhol” de esquerda, também já está em primeiro lugar nos estudos de opinião, também muito longe de uma maioria. No nosso vizinho, o sucesso eleitoral desta nova força política parece dever-se, em muito, a um sistema judicial que funciona (que inveja!), que tem vindo a expor a impressionante corrupção que aí se praticava.

Em geral, o que motivará esta transformação no espectro partidário europeu? Julgo que haverá três razões gerais: 1) a crise do euro; 2) a excessiva intromissão da UE nas políticas nacionais; 3) o fraco crescimento económico. Nalguns casos particulares, há ainda a investigação judicial a expor a corrupção dos partidos tradicionais.

Sintetizando imenso, fora do euro a correcção dos desequilíbrios externos faz-se através duma medida essencialmente tecnocrática (a desvalorização); no euro, essa correcção faz-se através da mais política das matérias: o orçamento. A crise do euro é, assim, uma fonte de insuportável intromissão no núcleo das escolhas políticas nacionais, gerando as maiores acrimónias sobre os partidos que são vistos a vergarem-se sobre o exterior.

A segunda razão é aparentada com a primeira, mas ultrapassa-a, como é visível no caso do Reino Unido.

 A terceira razão, o débil crescimento económico desde a crise de 2008, poderá ser explicada pela dificuldade em recuperação da crise, devido às políticas adoptadas, mas também por aquilo que se começa a designar como a “nova normal”, de crescimento insuficiente. Como diz o ditado “casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”.

Até agora, e de forma um pouco surpreendente, o panorama partidário português tem estado imune a estas mudanças, ironicamente mais visíveis no típico partido de protesto: o BE. No entanto, julgo que estamos apenas atrasados.

Apesar de tudo, algumas novidades têm surgido. O partido de Marinho e Pinto, claramente unipessoal, não deverá ir longe, tais têm sido os tiros no pé do seu líder. Há uma nova força emergente, o Nós, Cidadãos, mas é ainda cedo para aferir da sua eventual popularidade.

A justiça portuguesa tem estado demasiado dormente, não tendo sido, até agora, capaz de protagonizar uma limpeza como a que está a ter lugar em Espanha e que ajudou o Podemos a chegar ao primeiro lugar nas sondagens. Em Portugal, já que a justiça não faz o seu papel, parece que terá que ser a comissão parlamentar de inquérito ao BES a expor a podridão do regime. A revolta com as revelações que esta comissão deve trazer podem bem levar grupos de cidadãos a organizarem-se e a desafiarem os partidos actuais nas próximas eleições legislativas.

Por tudo isto, e também pela falta de clareza de António Costa, julgo que será praticamente impossível que o PS alcance a maioria absoluta nessas eleições.

[Publicado no jornal “i”]

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Anos finais

Os próximos tempos serão penosos por serem o estertor final da 3ª República, mas também libertadores porque preparam novos tempos melhores

Sou contra eleições legislativas antecipadas pelas piores/melhores razões. Se se respeitarem os calendários eleitorais (a propósito, porque é que o PS não propõe uma alteração da lei eleitoral?), mais difícil será a António Costa obter uma maioria absoluta. Isto porque quanto mais tempo passar, mais clara se tornará a sua vacuidade e ausência de alternativa, já que ele não se atreve a propor nada, muito menos o que seria uma genuína diferença: sair do euro. Do lado do governo, caso se liberte desta atracção pela trapalhada e pela teimosia em manter ministros “queimados”, poderia começar a recuperar estragos, aproveitando a tímida recuperação económica.

Um próximo governo do PS sem maioria absoluta e em coligação, previsivelmente com o PSD, deverá ser altamente instável. Ao imitar Hollande, engolindo tudo o que (ainda que vagamente) prometeu, António Costa perderá rapidamente legitimidade e o seu executivo ficará dependente do parceiro de coligação para sobreviver. As pressões alemãs sobre os orçamentos francês e italiano para 2015 mostram bem a ínfima margem de manobra do próximo executivo.

A frustração com o novo governo, por este continuar com a austeridade; a sua mesmice genérica; a sua incapacidade em produzir resultados (o PS é anti-reformas e não é como parceiro júnior que o PSD vai fazer o que não fez quando liderava o executivo) e a sua instabilidade crónica têm todas as condições para destruir não só os seus protagonistas, mas também os partidos que o apoiam. Como estes têm sido a base do “rotativismo” do regime, é o próprio regime que estará em causa.

Porque é que este cenário, próximo de catastrófico, é bom? Porque permitirá o fim da 3ª República e o início da 4ª República, que deverá ser um 25 de Abril numa “oitava acima”, com uma democracia verdadeiramente participativa.

Não me venham com a conversa do que se fez nos últimos 40 anos, porque qualquer regime teria feito necessariamente muito, sobretudo se ajudado pela cornucópia de fundos comunitários. Se acham que isso faz algum sentido, comparem os mais variados indicadores (taxa de escolarização, analfabetismo, esperança e vida à nascença, mortalidade infantil, etc.) entre o início (1926) e o fim (1974) da 2ª República. Como é evidente, irão encontrar enormes melhorias.

Aliás, a 3ª República não só desperdiçou uma enorme quantidade de fundos europeus (desperdiçar não quer dizer não gastar, mas sim gastar em disparates que só trazem encargos futuros), como conseguiu a mais do que duvidosa proeza de infectar o país desta gravíssima e raríssima doença que é a divergência estrutural com a UE (crescer menos do que os outros), que já dura há 15 anos. Esta enfermidade é gravíssima, porque sem crescimento tudo fica posto em causa: emprego, Estado social, sustentabilidade da dívida, etc. É raríssima, porque é contra a teoria e a prática: os mais pobres de um grupo que partilha muito em comum, como a UE, e ainda por cima recebe fundos para convergir, não são suposto – de modo algum – estarem a divergir, ainda por cima durante tanto tempo. E Portugal é caso único na UE, entre os mais pobres, onde isso se verifica.

Por tudo isto, a que acresce esse feito “invejável” de ter conseguido três “quase bancarrotas” em menos de quatro décadas, parece-me mais do que suficiente para colocar um ponto final neste regime, que já há muito está podre.

Como venho dizendo, acredito que o inquérito parlamentar ao caso BES e o previsível julgamento de Ricardo Salgado também deverão ajudar a trazer à superfície muita da porcaria em que o regime se tem baseado. A 3ª República transformou-se num conjunto de instituições extractivas, sugando rendas e dinheiros públicos nos mais inconcebíveis contratos, até hoje inexplicavelmente ainda não investigados, quando os seus termos mais do que indiciam corrupção.

Os tempos que se avizinham parece que em tudo ajudarão a que este regime termine sem deixar saudades. A única coisa que poderá deixar saudades serão os sonhos iniciais, a fraternidade dos primeiros momentos que, ainda por cima, nem sequer duraram muito tempo.


[Publicado no jornal “i”]

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Revoltante

A ausência de reforma da despesa pública deverá gerar um abuso crescente e revoltante da máquina fiscal

Nos últimos dias saíram nos jornais duas notícias revoltantes e relacionadas, porque ambas derivam do excesso de despesa pública que temos em Portugal.

A primeira, referente a uma multa exorbitante (provavelmente superior ao valor do terreno) por um proprietário ter, alegadamente, cometido alguns excessos na limpeza do seu terreno silvícola, tem a ver com a híper-regulamentação, que cria uma exército de funcionários públicos, cuja principal função parece ser infernizar a vida dos cidadãos e empresas. Para além disso, precisam de angariar receitas para financiar o seu funcionamento. Como essas receitas são insuficientes, é necessária a intervenção do fisco, ao qual estão a ser exigidas cada vez mais receitas, perante uma base tributária limitada.

Daí o segundo caso, o da penhora de uma casa própria, a uma família muito humilde, quando estava em causa uma dívida fiscal inferior a 10% do valor estimado da propriedade. Não interessa entrar nos detalhes dos casos particulares, porque não é isso que está em causa.

Estamos perante um fisco desesperado em obter receitas, que deixou de olhar a meios para o conseguir. Por seu turno, este desespero decorre – directamente – da ausência de uma verdadeira reforma da despesa pública. Já não são apenas as taxas de imposto que vão subindo, é mesmo a ferocidade da máquina fiscal que está imparável.

Por isso, é natural, e esse é o caminho que vamos percorrer nos próximos tempos (se nada mudar), um abuso crescente da máquina fiscal. Isso não é efeito desta ou daquela lei, duma maior ou menor diligência por parte deste ou daquele funcionário, decorre antes duma despesa pública não domesticada. Não pensem que legislar vai resolver este problema, porque a verdadeira fonte do problema (uma sede insaciável de receitas fiscais) o vai fazer manifestar-se noutro lado qualquer.

Se se mantiver esta ausência de reforma da despesa pública, julgo que duas coisas são previsíveis. Em primeiro lugar, uma animosidade crescente contra a administração pública, que impõe (ou é forçada a impor, mas isso o cidadão comum não percebe) regras estapafúrdias. Em segundo lugar, e em particular, uma revolta crescente contra a administração fiscal. Aliás, a recente legislação que aumenta as penalizações sobre quem insulte ou agrida dos funcionários do fisco é já um sinal por demais evidente de que a frequência e gravidade destas situações se tem intensificado.

Dito de outro modo, se a reforma da despesa pública não for feita a bem, será feita à bruta, com um apoio eleitoral crescente, contra uma administração pública cada vez menos respeitada. Um recado final (quase inútil) para os sindicatos da função pública: apoiem soluções enquanto é tempo, evitem que se chegue ao ponto de ruptura. 


[Publicado no DiárioEconómico]

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

O mistério GES/BES

O que se passou no GES/BES? Quem agiu? Porque agiu assim?

Com base na informação conhecida até agora, reconhecidamente incompleta, vou tentar esboçar uma resposta muito preliminar ao mistério do GES/BES, tentando responder a três questões: O que se passou no GES/BES? Quem agiu? Porque agiu assim?

Julgo que é importante olhar para o grupo GES salientando alguns dos aspectos essenciais que ajudam a explicar o seu actual descalabro. Em primeiro lugar, era um grupo excepcionalmente endividado (alavancado, em linguagem financeira). Porquê uma dívida tão elevada? Pelo excesso de ambição. Se o Grupo não tivesse querido expandir-se tanto, em tantas áreas, não precisaria de tanta dívida e poderia ter sobrevivido.

Em segundo lugar, baseava-se num “modelo de negócio” em que mais importante do que a capacidade empreendedora ou a capacidade de gestão, era a capacidade de abrir portas, demasiadas vezes recorrendo a métodos pouco limpos. Vejam-se a quantidade impressionante de casos de polícia em que o Grupo esteve envolvido. Para além disso, era proverbial o nepotismo dentro do grupo, em que as ligações familiares eram mais importantes do que a capacidade profissional.

A terceira característica do grupo é a ausência de uma verdadeira estratégia de médio prazo e gravíssimos problemas de governação e honestidade. A dispersão por demasiados sectores, muitos dos quais onde não se vislumbravam vantagens competitivas, é equivalente a uma ausência de estratégia, que não seja crescer sem critério nem qualidade.

Julgo que a surpresa dos diferentes ramos da família sobre o rumo que as coisas estavam a levar é genuína e que isso revela um problema gravíssimo de governação. O amadorismo que tudo isto revela numa organização desta dimensão é assustador.

Com todos estes ingredientes (excesso de endividamento, fraca gestão e péssimo sistema de governação) chegámos à crise internacional de 2008, a maior das últimas oito décadas. Como todos os outros, o GES sofreu perdas brutais. Os lucros (tornados até em prejuízos) deixem de ser capazes de pagar os juros do endividamento, necessariamente crescente. No entanto, foi decidido esconder parte dessas perdas. Quem o fez? Há muito poucas dúvidas que tenha sido Ricardo Salgado a tomar essa decisão.

Há quem considere praticamente impossível que Ricardo Salgado tenha feito o que fez sozinho, com a possível excepção de alguns subordinados, que teriam apenas cumprido ordens. Pois considero que é impossível que tenha feito isto com conhecimento dos seus pares. Em geral, a confiança é algo de absolutamente essencial no negócio bancário e foi com base na confiança que suscitava que o grupo se conseguiu reerguer, apesar de completamente descapitalizado, a seguir às nacionalizações de 1975. É altamente improvável que os outros ramos da família assistissem impávidos à destruição de um valor essencial ao sucesso de uma dinastia já na quarta geração.

Uma questão que a todos intriga é: qual a verdadeira motivação de Ricardo Salgado? Julgo que era a ambição de poder, manchada pela incapacidade de pensamento estratégico ou a médio prazo.

No final de 2009, já no início da crise do euro, Ricardo Salgado ainda defendia o TGV, ignorando todas as graves consequências de médio prazo para a banca e o BES, de continuar a apostar no endividamento externo.

Em 2012, o GES já estava com graves problemas de endividamento excessivo e ele cometeu a dupla loucura de se endividar mais para controlar a Semapa e, pior ainda, comprar uma guerra com Pedro Queiroz Pereira. Selou aí a sua sentença, na maior das inconsciências. O industrial reuniu num volumoso todas as provas contra Ricardo Salgado, que entregou ao Banco de Portugal, no Outono de 2013, o que desmascarou o banqueiro.

Em 2014, quando tudo já estava a arder e o Banco de Portugal ditou o fim das ligações entre o GES e o BES, Ricardo Salgado ainda conseguiu tomar novas decisões que destruíram ainda mais tudo o que sobrava. Só uma pessoa totalmente incapaz de pensar a prazo é que poderia cometer tantos erros.


[Publicado no jornal “i”]

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Constituições de facção

Portugal precisa de mudar de regime e de constituição, que deve deixar de ser de facção para passar a ser verdadeiramente nacional

O orçamento de 2015 não vai mais longe, em parte devido à constituição, em outra parte devido à forma abusiva como o Tribunal Constitucional a tem interpretado e em parte também devido às eleições do próximo ano, que seriam sempre um travão, qualquer que fosse o governo.

Um dos traços comuns – e o mais infeliz – das constituições portuguesas é o facto de se poderem encarar como constituições de uma facção e não de todo o país. Pior ainda, em alguns casos, de uma parte minoritária contra o resto do país.

As constituições de 1822 e de 1911 eram de facções particularmente minoritárias e talvez também por isso tenham durado tão pouco tempo. Focando-nos apenas nas constituições do século XX, tivemos a tal constituição de 1911, de uma minoria republicana, urbana e anticlerical, contra um país esmagadoramente rural e católico.

A constituição de 1933, corporativa, excluía todos os outros: republicanos, monárquicos, democratas e comunistas.

A constituição de 1976 é um texto de esquerda, contra a direita, não é uma constituição verdadeiramente nacional, porque não é inclusiva, é de uma parte contra a outra.

Para além disso, impôs abusivas restrições nos limites materiais de revisão constitucional. Como Saldanha Sanches (1944-2010) muito bem formulou, quem escreveu esta lamentável constituição quis ser “dono do futuro”.

Que regimes não democráticos tenham constituições de facção é algo não deve surpreender, dada a natureza desses regimes. Mas que isso aconteça num regime democrático é um contra-senso e um profundo desrespeito pelo próprio ideal democrático. Conseguem imaginar a constituição alemã a dizer que se destina a “abrir caminho para uma sociedade democrata-cristã”? Não seria isso profundamente chocante e antidemocrático? E não é isso que temos no nosso país?

Portugal precisa de mudar de regime e de constituição, que deve deixar de ser de facção para passar a ser verdadeiramente nacional.

A 3ª república é um regime que já está podre há vários anos e que deveria terminar. São múltiplas (demasiadas!) as instituições do regime que lançam um cheiro fétido por todo o lado. Infelizmente, ainda que os sucessivos regimes portugueses tenham caído de podre, essa putrefacção durou longos anos.

No entanto, julgo que os próximos tempos são propícios para a destruição final do regime. O fraquíssimo governo de coligação que temos tido teve a utilíssima função de descredibilizar o PSD e o CDS, que deverão sofrer um forte castigo nas próximas eleições.

Mesmo assim, é duvidoso que António Costa consiga alcançar a maioria absoluta, porque em algum momento dos próximos 12 meses vai ter que começar a ser mais concreto no que pretende fazer no governo. Se optar por nunca se comprometer, também assim não alcançará a maioria absoluta, porque o tempo dos cheques em branco já passou.

Assim sendo, será forçado a um governo de bloco central, provavelmente sem o CDS, que não tem absolutamente nenhum interesse em se queimar ainda mais. Esse governo de bloco central, provavelmente sem Passos Coelho, será obrigado a continuar a austeridade dos últimos anos. A profunda desilusão que isso constituirá não fará mal apenas aos membros do governo, mas descredibilizará ainda mais os próprios partidos e o regime.

Para além de tudo isto, que não é pouco, julgo que aquilo que dará a estocada final no regime será o julgamento de Ricardo Salgado. Como a ponta do iceberg sugere, parece que terá feito de tudo e com todos. Como bem diz o ditado: “zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades”. Parece que é isso que virá a acontecer naquele que se deve transformar no mais mediático caso de sempre da justiça portuguesa, com episódios diários, todos eles contribuindo para o generalizado descrédito do regime e dos seus principais protagonistas. 

Este julgamento tem todo o potencial para ser o equivalente ao caso “Mãos limpas” em Itália, que destruiu todo o sistema partidário do pós-guerra. Deus queira que sim e que se crie um novo regime baseado numa constituição verdadeiramente nacional.


[Publicado no jornal “i”]

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Eleições à espreita

O (previsível) chumbo de Bruxelas à proposta de orçamento francês para 2015 pode bem liquidar o programa político de António Costa

Passos Coelho escolheu, inexplicavelmente, defender que o governo iria para além da troika. Se queria mesmo fazer isso, teria sido mais inteligente fazê-lo sem o alardear. Assim, conseguiu dar desculpas ao PS que, perante a afirmação genérica e pouco sensata do primeiro-ministro, até se conseguiu eximir aos termos do acordo da troika, que os socialistas assinaram. Para além disso, criou muitíssimo mais resistências, que dificultaram o sucesso do programa de ajustamento. Ainda hoje estou para perceber a lógica de tentar ser ainda mais impopular do que a troika.

Mais recentemente, as más explicações dadas sobre o caso Tecnoforma lançaram a suspeita inapagável de que não havia boas explicações. Outro mistério (ou talvez nem tanto) é a falta de inteligência política de manter o ministro da Educação, num sector que movimenta o maior número de funcionários do Estado, milhares de alunos e de famílias. Pior ainda, manter o secretário de Estado que, após os incompreensíveis prejuízos provocados em inúmeros professores, teve o supino descaramento de sugerir que estes se queixassem em tribunal.

Logo agora, que os tribunais estão num caos, atempadamente previsto pelo ex-chefe de gabinete da ministra da Justiça. O que leva um ministro a ignorar avisos dos seus mais próximos colaboradores, que se demitem muito antes da bronca estoirar? A ministra não percebeu a mensagem fortíssima dessa demissão? O que leva um primeiro-ministro a manter uma ministra que, todos os dias, destrói a credibilidade de um executivo já em apuros?

A própria coligação não está de boa saúde, como, aliás, nunca esteve. No final do mandato, Paulo Portas lembrou-se, tardia e inconsequentemente, que era o líder do “partido dos contribuintes”. O vice-primeiro-ministro conseguiu apresentar dez razões para baixar o IRS, nenhuma das quais inclui a redução da despesa pública, o que é mirabolante e revela o mundo de fantasia em que vive. Aliás, nem podia prever descida da despesa do Estado, porque Portas falhou rotundamente na sua reforma.

É verdade que ainda falta muito tempo para as eleições, uma eternidade em política, mas a coligação deverá apresentar-se em más condições aquando desse sufrágio.

Do lado do PS, só aparentemente as coisas estão melhores. Ferro Rodrigues, novo líder parlamentar do PS, veio pedir eleições antecipadas, sem oferecer absolutamente nada em troca. Isto é extraordinário, embora não exactamente surpreendente. Quando, há alguns meses, várias “personalidades”, sobretudo de esquerda, assinaram o manifesto de restruturação da dívida, também se propunham fazer esta proposta à “Europa”, sem que revelassem a menor sombra de uma contrapartida.

Esta forma de fazer política é um misto de arrogância, irrealismo e infantilismo. Desejar uma coisa e passar logo a sentir o direito de a receber. Como é possível imaginar que alguém, quem quer que seja, lhes vai dar o querem sem receber nada em troca? Poderiam ter o irrealismo de propor um negócio em que pedem 100 e estão dispostos a dar 10, mas é muito pior do que isso: oferecem zero em troca.

Uma das questões mais importantes dos próximos tempos será a avaliação europeia do orçamento francês. O (previsível) chumbo de Bruxelas à proposta de orçamento francês para 2015 pode bem liquidar o programa político de António Costa.

Mesmo que o orçamento gaulês não suscite objecções, toda a gente sabe que, na UE, a França e a Alemanha “são mais iguais do que os outros”. Por isso, faz todo o sentido esperar que Bruxelas se “vingue” nos pequenos países, em particular em Portugal, que deve imenso aos nossos parceiros, para que fique a imagem de que tem mesmo poder.

Bem pode António Costa defender uma leitura “inteligente” do Tratado Orçamental, quando o nosso país nem sequer cumpre o Tratado de Maastricht. É provável que a meta orçamental para 2015 (a ser divulgada hoje) seja de 2,9% do PIB, mas é ainda mais provável que o défice final fique acima dos 3%.

Aliás, se continuam estas inacreditáveis inundações em Lisboa, Costa pode ir perdendo gás nas sondagens.


[Publicado no jornal “i”]

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Aos pequenos accionistas do BES

É do interesse dos pequenos accionistas do BES desistir de acções judiciais que possam reduzir o valor do Novo Banco

Já me tinha constado que nos processos de falências e similares grassava uma irracionalidade extrema entre os vários intervenientes, que todos acabava por prejudicar. Os tribunais não deveriam dar gás aos impulsos auto-destrutivos dos envolvidos nestes processos, mas os atrasos proverbiais só destroem valor, agravando o que já não era favorável.

Um conjunto de pequenos accionistas do BES colocou uma acção para impedir a venda dos activos do Novo Banco, entre outras coisas. Isto parece-me um grande equívoco. Em primeiro lugar, estes accionistas esquecem que eles ainda são donos do Novo Banco, no sentido em que aquilo que sobejar da venda deste banco reverte para o BES.

É assim, do seu máximo interesse, que o processo de saneamento do Novo Banco decorra com a maior normalidade possível e que não haja a menor ameaça de litigância, que só serve para diminuir o valor daquela venda, reduzindo a probabilidade de virem a receber qualquer tipo de valor.

Em segundo lugar, mesmo que o BES não tivesse sido dividido em dois, é mais do que óbvio que estaria hoje a vender os activos cuja transacção está em curso, para obter liquidez e realizar capital. Por isso, nem sequer pode estar em causa a oportunidade do momento da venda, porque haveria sempre urgência em fazê-lo. Mesmo aqueles que defendem que neste momento não é a melhor altura para vender estão meramente a especular, porque não é possível afirmar isso. Temos actualmente tantos pontos de fragilidade (Ucrânia, Estado Islâmico, riscos de deflação na zona do euro, etc.) que ninguém pode assegurar que daqui a um ano estaremos melhor do que agora.

É, aliás, muito duvidoso qual o tipo de benefício que esperam obter desta acção judicial. Na verdade, os pequenos accionistas deveriam fazer como nos EUA: só pagar honorários aos advogados se estes conseguirem produzir resultados palpáveis em tempo útil. Deveriam pagar uma certa percentagem das indemnizações obtidas, se elas chegarem até 24 meses, contados a partir da primeira hora. A partir daí essa percentagem iria decaindo até zero, ao fim de 60 meses. Se os advogados recusarem uma proposta desse teor, isso deve esclarecer estes accionistas sobre a (falta de) utilidade desta acção.

Devo acrescentar que considero que os advogados que vivem de conflitos e não de soluções deveriam ser penalizados pelos tribunais.

Se tivéssemos um sistema de justiça decente, recomendaria que processassem Ricardo Salgado, pela gestão incrivelmente danosa e contrária aos interesses dos pequenos accionistas (e também do país, porque os custos reputacionais para todos nós são gigantescos). Como temos esta tristeza de justiça, não recomendo nada, deixo isso para os vossos advogados.


Tudo isto me recorda uma história sobre a justiça do rei Salomão (Bíblia, I Reis, 3:16-28). Duas mulheres disputavam a posse da mesma criança e foram pedir justiça ao rei. Como não se entendiam, “disse o rei: Dividi em duas partes o menino vivo; e dai metade a uma, e metade a outra”. Logo a verdadeira mãe exclamou: “Ah! senhor meu, dai-lhe o menino vivo, e de modo nenhum o mateis. Porém a outra dizia: Nem teu nem meu seja; dividi-o, antes.”. Face a isto, Salomão não teve dúvidas em dar o filho à primeira mulher. “E todo o Israel ouviu a sentença que dera o rei, e temeu ao rei; porque viram que havia nele a sabedoria de Deus, para fazer justiça.”

Infelizmente, a acção judicial interposta pelos pequenos accionistas do BES é um acto em tudo semelhante à da mulher que preferia ver a criança morta, do que viva.

 Têm aqui uma oportunidade de ouro de dar uma bofetada de luva branca a todos os que se portaram mal convosco, tendo um gesto da maior dignidade, da maior responsabilidade – e, em simultâneo, protegendo os vossos interesses – ao terem a nobreza e a elevação moral de desistirem desta vossa acção judicial.


[Publicado no jornal “i”]

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Salário mínimo

O acordo de subida extraordinária do salário mínimo, assinado em 2007, ocorreu quando Portugal registava um elevadíssimo défice externo. Se ainda tivéssemos o escudo, teríamos sido forçados a desvalorizar fortemente a moeda e haveria uma significativa queda dos salários reais. Ou seja, aquele acordo ocorreu na pior altura possível e terá sido um dos responsáveis pelos actuais níveis de desemprego e pela chegada da troika.

O governo de Sócrates avançou com aquele erro porque antes tinha substituído o salário mínimo pelo IAS (indexante de apoios sociais). Refira-se que o IAS está congelado desde 2009 em 419€. A partir daí, como o salário mínimo deixou de ter custos para o Estado, instalou-se a total irresponsabilidade. Por isso, entendo que a primeira medida que se impõe é a abolição do IAS.

Em 2014, com o aumento exponencial de pessoas a receber a remuneração mínima e o ainda muito elevado desemprego, subir este patamar é um grande risco para os desempregados com menos experiência e mais baixas qualificações.

O salário mínimo, como os outros salários, depende da produtividade e, se queremos aumentar aquele referencial, é essencial tomar medidas que ajudem ao aumento da produtividade, e os parceiros sociais deveriam fazer pressão para o governo eliminar toda a regulamentação cujo único objectivo parece ser infernizar a vida das empresas e impedir a melhoria da produtividade.

Entendo que deveríamos passar a ter uma visão de mais longo prazo e o foco deveria passar do “salário mínimo” para o “poder de compra do salário mínimo”. Esta distinção é importante, por três razões.

Em primeiro lugar, é essencial agir para reduzir o preço de alguns bens, em particular o da habitação, um dos mercados mais distorcidos do país (todo um capítulo que não vou desenvolver agora). Na energia e telecomunicações há certamente a necessidade de intervenção no sentido de aumentar a concorrência e diminuir os impostos específicos (na energia).

Em segundo lugar, devido à dificuldade e tempo que demora a aumentar a produtividade, era importante a criação de um escalão negativo no IRS para os rendimentos mais baixos. Nestes casos, em vez de se pagar imposto, passava-se a receber um subsídio.

Finalmente, para aumentar o poder de compra do salário mínimo era importante diminuir o IVA e outros impostos. Recordo que, quando a taxa normal do IVA foi aumentada, de 17% para 19%, em 2002, este aumento foi anunciado como transitório. Todos sabemos o que se passou entretanto.


Como puderam notar, uma das formas mais evidentes de aumentar o poder de compra de todos os salários é a diminuição de impostos. Mas para que isso seja possível, é essencial que o Estado reduza a sua despesa. Ou seja, espera-se que os maiores defensores da subida do poder de compra do salário mínimo sejam – também – os mais defensores da redução da despesa pública.

[Publicado no DiárioEconómico]

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Educação e consumismo

O consumismo é uma das maiores ameaças de longo prazo ao nosso planeta, que vamos deixar aos nossos filhos.

Apesar dos ajustamentos realizados durante o programa da troika, Portugal continua a exibir um nível de consumo excessivo (em percentagem do PIB), muito acima da média da zona do euro. Se mantivermos o actual nível de consumo, quando o investimento começar a recuperar, como precisamos desesperadamente que aconteça (o actual nível de investimento é insuficiente para repor o stock de capital), voltaremos aos défices externos. Isto seria colocar em causa um dos maiores sucessos do nosso ajustamento e a principal razão porque fomos forçados a pedir ajuda à troika.

Assim, precisamos de consumir menos e poupar mais, para podermos financiar, sem problemas, o investimento de que precisamos para voltar a crescer, o desígnio unânime de todos os partidos políticos.

Olhando a mais longo prazo, é evidente que o consumismo, sobretudo de bens materiais, está a fazer uma pressão terrível sobre o planeta e já estamos numa trajectória insustentável.

Em resumo, há razões de longo e de curto prazo que recomendam – fortemente – que reduzamos o nosso consumo e aumentemos a poupança.

Por tudo isto, precisamos de conduzir campanhas anti-consumismo nas nossas escolas. É escandaloso que, sendo as crianças e os jovens as maiores vítimas potenciais do nosso actual e futuro consumismo, elas sejam estimuladas a participar naquilo que tem mais condições de deteriorar o mundo que vão herdar.

Com a ajuda dos professores de ciências da natureza e ambiente, é urgente instalar nas escolas um ambiente anti-consumismo. Em geral, sou contra obrigações e proibições, preferindo incentivos e desincentivos, que respeitam mais a liberdade, sem (em geral) grandes estragos na eficácia das políticas. Mas, neste caso, em que o que está em causa é a própria sobrevivência do homem no planeta, defendo – excepcionalmente – que sejam introduzidas proibições e obrigações.

Deve passar a ser proibido levar para os estabelecimentos de ensino o último e mais caro modelo de telemóvel e outros gadgets. No caso da roupa sou mais flexível: em vez de proibição, sugiro o pagamento de uma taxa de luxo sobre a roupa de marca mais cara. Deve-se promover a reciclagem de todo o material escolar, como se passa no Norte da Europa. É absurdo que, sendo nós mais pobres, façamos vida de ricos.

Na verdade, o consumismo português tem raízes históricas muito antigas. Já no século XVI Gil Vicente expunha o caso típico do nobre que passava fome, para poder exibir roupas vistosas. No século XVII, foram introduzidas várias leis contra o luxo (as “pragmáticas”), sem grande sucesso. No século XVIII, aquilo que hoje designamos por redistribuição do rendimento era feito ao contrário do que é actualmente: eram as mais importantes famílias nobres, que recebiam as maiores transferências do Estado. Mesmo assim, para prover à “decente sustentação” dos Grandes, quase todas elas tinham as suas finanças em muito mau estado.

Para além de tudo isto, o consumismo português tem uma agravante: a baixa auto-estima nacional gera uma terrível atracção pelos bens importados, de países que encaramos como “melhores” do que nós.

Parece-me útil salientar que esta baixa auto-estima, que começa como uma predisposição subjectiva, acaba por ter consequências objectivas, que reforçam aquela. A nossa baixa auto-estima desencadeia – com demasiada facilidade – mecanismos de auto-sabotagem, que nos conduz a ficarmos aquém do nosso potencial. Ao produzirmos algo que é objectivamente fraco, reforçamos a baixa auto-estima, que aumenta a auto-sabotagem, que produz baixa qualidade, num ciclo interminável.

Para terminar, gostaria de chamar à atenção para uma questão, que pode ser olhada como uma forma encapotada de proteccionismo, mas que coloco no plano ambiental. Prende-se com a pegada ecológica do transporte dos produtos. Da forma mais bem-intencionada, comprei recentemente feijão biológico. Só depois reparei que tinha origem na China e tinha sido embalado na Alemanha. Provavelmente, passou ao largo na costa portuguesa, para depois voltar de camião TIR da Alemanha, um absurdo.


[Publicado no jornal “i”]

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Cartas socialistas ao Pai Natal

Vou comparar os programas de António José Seguro (“Contrato de confiança”) e de António Costa (“Uma agenda para a próxima década”) na sua dimensão económica, em apenas duas vertentes: 1) crescimento económico; 2) sustentabilidade das contas públicas.

Em relação ao crescimento, Seguro percebe que o caminho são as exportações e não o estímulo da procura interna, o que se saúda, já que há imensa gente – alguns com responsabilidades – que imaginam que o crescimento brotaria naturalmente do fim da austeridade, ignorando olimpicamente que Portugal quase não cresce há 15 anos e durante a maior parte desse tempo não fez outra coisa senão estimular a procura interna à custa de endividamento externo.

Pretende lançar um “Plano de reindustrialização 4.0”, com boas intenções, mas com uma certa confusão entre objectivos e instrumentos. Falar em objectivos é muito bonito, todas as candidatas a miss Mundo o fazem, mas definir instrumentos concretos, eficazes e eficientes para os alcançar é muito mais difícil. Logo no início das 80 medidas temos “Reforço da produção nos setores ditos tradicionais, com enfoque na qualidade e na produção de pequenas séries” (p. 17). Isto não passa de um objectivo, aliás de utilidade duvidosa (mas porquê as “pequenas séries”?), de uma intromissão abusiva e despropositada do Estado nas escolhas das empresas. Mas, sobretudo, nem se percebe como poderá ser concretizada. Teme-se a criação de mais lugares para funcionários públicos, que nunca geriram uma empresa, para mandarem bitaites sobre o que estas devem fazer.

Há uma lista infindável de promessas de intervenção pública e uma cornucópia de subsídios para isto e para aquilo e nem uma palavra sobre a redução dos obstáculos do Estado à iniciativa privada, em particular na justiça.

A proposta de António Costa é muitíssimo mais vaga, só fala em objectivos, embora tenha um tom menos burocrático do que a de Seguro. Também reconhece a necessidade de o crescimento se basear na procura externa, vá lá. No entanto, há aqui um aspecto preocupante: “As empresas devem ter também obrigações e responsabilidades perante os seus trabalhadores, os utentes e consumidores e a comunidade local ou nacional em que se inserem.” Esta ideia soa muito bem em teoria, mas temo que estejamos na pior conjuntura possível para a colocar em prática.

Dada a actual fragilidade das empresas e o nível elevadíssimo de desemprego, tenho muito medo que se crie um conjunto de novas responsabilidades às empresas que acabem por matar as mais frágeis. Não me parece nada boa ideia termos uma “modernização” empresarial que atira o desemprego para os 20%. As ideias defendidas por Seguro poderão trazer crescimento económico, mas duma forma ineficiente. Já as de António Costa, contêm o risco de mais recessão e desemprego.

Passando agora ao tema da sustentabilidade das finanças públicas, a proposta de Seguro conduz exactamente ao oposto. Quer “27. Não aumentar a carga fiscal durante a próxima legislatura”; “28. Não efetuar mais cortes nos rendimentos dos trabalhadores e dos pensionistas”; “29. Acabar com a “Contribuição de Sustentabilidade” (p. 20). Basicamente, só isto equivale a fazer subir o défice. Se somarmos todas as outras promessas de subsídios para isto mais aquilo teríamos mais défice e mais dívida.

As promessas de aumento da receita ou são ínfimas (“taxa sobre transações financeiras”, p. 20) ou miríficas (“plano de combate à fraude e à evasão fiscal”, p. 20).

Algumas ideias do Objectivo 4, “Construir um Estado sustentável e de confiança”, são já instrumentais e interessantes, como a reforma da Administração Pública, através de uma “auditoria integral de processos”. No entanto, não parece haver aqui qualquer preocupação com a poupança de recursos, pelo que é de concluir que o programa de Seguro é incompatível com o cumprimento do Tratado Orçamental.

Como as propostas de António Costa são muito mais vagas, não é possível uma avaliação tão taxativa do (não) cumprimento dos nossos compromissos internacionais em termos de finanças públicas. No entanto, dado que só fala em investimento e coesão social, que custam muito dinheiro, e em lado algum fala em cortes na despesa nem em aumentos de impostos, temos que concluir que também não cumpriria o Tratado Orçamental. Imagina-se que espera que o crescimento económico apareça de repente, por milagre, após uma ausência de 15 anos, permitindo pagar tudo e, especialmente, fazendo desaparecer uma das escolhas políticas mais importantes: a das opções orçamentais.


Globalmente, a proposta de Seguro revela (muito) mais trabalho de casa, enquanto a de Costa tem o verbo mais inspirado. No entanto, estamos basicamente perante duas cartas socialistas ao Pai Natal.

[Publicado no Observador]

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Aos combatentes

Dedico este texto a todos os que sofreram e sofrem, directa e indirectamente, com a guerra colonial

Quando se iniciou a guerra colonial, em 1961, é importante referir que ela era consensual, quer à esquerda, quer à direita. É essencial recordar que, ao contrário do que é habitual, no final do século XIX era a esquerda que brandia a bandeira do nacionalismo.

O ultimato britânico de 1890, que proibia a pretendida ligação entre Angola e Moçambique definida no mapa cor-de-rosa, foi pretexto para um violento e pouco fundamentado ataque ao rei D. Carlos por parte dos republicanos, que o acusaram de estar do lado da Inglaterra.

Após a instauração da República, em 1910, houve um esforço de desenvolvimento das colónias. Um dos meus bisavôs participou nessa campanha, como “africanista” em Angola, tendo posteriormente, já sob o Estado Novo chegado a ser chefe de gabinete do ministro das Colónias.

Também foi por causa das colónias que Portugal participou na I Guerra Mundial.

O principal problema da guerra colonial foi permanecer sem solução à vista, ao contrário de outras guerras coloniais, como a da Argélia, em que de Gaulle percebeu a futilidade da operação. Sem uma solução para este problema, o Estado Novo foi liquidado pelo 25 de Abril.

Na minha família, apenas um tio meu, Paulo Raposo, participou nesta guerra, no teatro mais difícil, na Guiné, no final dos anos 60. Foi uma experiência traumatizante, de que a sua família mais directa também sofreu as consequências.

Há aqui alguns anos este meu tio ofereceu-me o melhor presente de Natal de que tenho memória: a fotocópia de um aerograma que eu lhe enviei, quando tinha sete anos. Emocionei-me tanto, que só a conseguir ver em casa. É uma carta obviamente muito ingénua, em que eu dizia, entre outras coisas, que o meu irmão (afilhado deste tio) é que se lembrava sempre de rezarmos por ele. Para além do texto também desenhei uma guerra, em que misturava castelos medievais (com ameias) com índios, tal era a minha confusão.

Dando um novo salto no tempo, em meados de Agosto deste ano, passeava perto da Torre de Belém e aproximei-me do Monumento aos Combatentes. Quando me acerquei de uma placa que dizia “Silêncio, respeito e recolhimento”, comovi-me profundamente e comecei a chorar. É como se tivesse entrado em contacto com o sofrimento associado à guerra colonial. O sofrimento dos combatentes, das suas famílias de origem e posteriores; dos mortos, de todas as nacionalidades, civis e militares, homens, mulheres e crianças; do sofrimento silenciado, em todos os territórios, em Portugal e nas ex-colónias.

Espontaneamente, abri os braços e comecei a rezar as mais simples orações. Fechei os olhos, virei-me ligeiramente para a direita e invoquei a presença, a ajuda e a protecção de Jesus Cristo, rezando em seguida um Pai Nosso. Fiz idêntico pedido a Nossa Senhora de Fátima e rezei uma Avé-Maria, sempre comovido.

Durante estas orações surgiu-me a imagem de um tubo no alto, para onde convergiam imensas luzes finas e compridas, que entravam nele.

Um soldado que vai para a guerra sabe que pode ser morto, mas isso não é a mesma coisa do que estar preparado para morrer. Acontece que muitas pessoas que morrem de repente não aceitem a sua própria morte e se recusem a partir, ficando por cá, mas sem corpo. Imagino que isso terá acontecido a muitos soldados mortos na guerra colonial.

Tive a percepção que aquilo que subiu para o tubo que vi eram almas que estavam finalmente a aceitar partir. Como tenho sempre dúvidas, perguntei a um dos meus professores espirituais se a minha interpretação estava correcta e ele (que tem muita facilidade em receber informação de “lá de cima”) confirmou-me isso.

De então para cá, tenho visitado com alguma regularidade o monumento aos combatentes e repetido o meu ritual. A carga emocional destes encontros tem abrandado e fiquei com a percepção de que a maioria das almas que se reunia ali já aceitou partir.

Envio muita luz, paz e orações a todos os que sofreram e sofrem, directa e indirectamente, com a guerra colonial.


[Publicado no jornal “i”]

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Anti-praxe

As praxes que se iniciam por estes dias são um terrível retrocesso civilizacional, ao tempo do “quero, posso e mando”

De acordo com o antropólogo Geert Hofstede (Cultures and organizations: software of the mind, 1991), Portugal, tal como a generalidade dos países latinos, apresenta uma elevada distância ao poder. Esta distância é definida duma forma muito interessante, não como a que os chefes impõem, mas aquela que os subordinados aceitam.

Apesar destes valores serem muito distintos entre países (muito mais baixa distância ao poder no países anglo-saxónicos), seria de esperar que os tempos que vivemos fossem propícios a diminuir a distância ao poder na generalidade dos países.

O que se passa hoje com as praxes choca-me profundamente porque entrei na faculdade em 1980, poucos anos depois do 25 de Abril, e as praxes eram mínimas e, quando as havia, eram divertidas e não humilhantes. Já falei com algumas pessoas da minha idade que me confirmaram a ideia de que nós jamais aceitaríamos o que se faz hoje aos caloiros. Como se naqueles anos a ideia de liberdade e de não subjugação à prepotência fosse claríssima.

O que se vê os caloiros hoje aceitarem, é como se recuássemos décadas, para o tempo em que era inevitável aceitar abusos dos chefes. Para quem gosta de teorias da conspiração, pode-se dizer que a actual versão das praxes existe para preparar os estudantes universitários para o trabalho escravo em call-centers, depois de acabarem o curso. Ou, de qualquer forma, para serem os trabalhadores mais formatados, obedientes e não reivindicativos.

O mais escandaloso disto tudo é passar-se nas universidades, que deveriam ser locais de saber, cultura e elevação moral e não escolas de produção de autómatos.

Em vez do desastre actual, parece-me essencial que os directores de faculdades e reitores assumam um veemente discurso anti-praxe, incluindo ameaças de vária natureza sobre os autores de excessos.

Para além disso, para praticar a solidariedade, a cada caloiro deveria ser atribuído um padrinho, num processo gerido pelos alunos mais velhos. Desejo enfatizar que tudo disto deve ser feito sem estar na lei e que não deve ser criada qualquer tipo de lei para impor isto.

Paulo Ferreira da Cunha, no seu livro Filosofia Política. Da Antiguidade ao século XXI (2010, INCM), muito significativamente escolheu como primeiro autor, não um filósofo, mas um dramaturgo grego, Sófocles (496 aC – 406 aC), e a sua peça Antígona. Neste texto, o rei Creonte proibiu, com pena de morte, que se desse sepultura a um dos irmãos de Antígona. Esta, sabendo os riscos que corria, desobedece ao decreto real, nem sequer procurando esconder a sua desobediência. Chamada à presença do rei defende-se assim: “Não me foi intimado por Zeus; nem a Dike, que coabita com os deuses subterrâneos, estabeleceu essa lei entre os homens. Tão-pouco creio que tuas ordens tenham tanta força, sendo tu um simples mortal, de modo a poderem derrogar as leis não escritas e inconcussas dos deuses”.

Podemos interpretar Creonte como simbolizando o abuso de poder e o direito formal, enquanto Antígona representa o verdadeiro sentido de justiça e o dever de uma atitude autónoma, sob os princípios mais elevados.

Estou convicto de que uma das razões que explicam a anormalmente baixa apreciação que os portugueses fazem dos nossos juízes se prende com o facto de, na maioria dos casos, entre Creonte e Antígona, os juízes escolherem Creonte.

A absurda expansão legislativa em que vivemos, a extraordinária proliferação dos mais incompreensíveis regulamentos (não se percebe porque existem nem o que significam), tem gerado um gravíssimo equívoco, o de que a lei está acima da justiça e do bem. Por ouras palavras, vivemos num tempo dominado por Creonte, onde Antígona é desprezada e vilipendiada.

Se queremos viver numa sociedade mais saudável, mais livre, mais autónoma, mais responsável, é imperioso denunciar todos os Creontes e promover e aplaudir todas as Antígonas. É fundamental abolir todas as leis e regulamentos de que os Creontes se alimentam e promover a autonomia e o sentido ético superior de todas as Antígonas.


[Publicado no jornal “i”]