quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Constituições de facção

Portugal precisa de mudar de regime e de constituição, que deve deixar de ser de facção para passar a ser verdadeiramente nacional

O orçamento de 2015 não vai mais longe, em parte devido à constituição, em outra parte devido à forma abusiva como o Tribunal Constitucional a tem interpretado e em parte também devido às eleições do próximo ano, que seriam sempre um travão, qualquer que fosse o governo.

Um dos traços comuns – e o mais infeliz – das constituições portuguesas é o facto de se poderem encarar como constituições de uma facção e não de todo o país. Pior ainda, em alguns casos, de uma parte minoritária contra o resto do país.

As constituições de 1822 e de 1911 eram de facções particularmente minoritárias e talvez também por isso tenham durado tão pouco tempo. Focando-nos apenas nas constituições do século XX, tivemos a tal constituição de 1911, de uma minoria republicana, urbana e anticlerical, contra um país esmagadoramente rural e católico.

A constituição de 1933, corporativa, excluía todos os outros: republicanos, monárquicos, democratas e comunistas.

A constituição de 1976 é um texto de esquerda, contra a direita, não é uma constituição verdadeiramente nacional, porque não é inclusiva, é de uma parte contra a outra.

Para além disso, impôs abusivas restrições nos limites materiais de revisão constitucional. Como Saldanha Sanches (1944-2010) muito bem formulou, quem escreveu esta lamentável constituição quis ser “dono do futuro”.

Que regimes não democráticos tenham constituições de facção é algo não deve surpreender, dada a natureza desses regimes. Mas que isso aconteça num regime democrático é um contra-senso e um profundo desrespeito pelo próprio ideal democrático. Conseguem imaginar a constituição alemã a dizer que se destina a “abrir caminho para uma sociedade democrata-cristã”? Não seria isso profundamente chocante e antidemocrático? E não é isso que temos no nosso país?

Portugal precisa de mudar de regime e de constituição, que deve deixar de ser de facção para passar a ser verdadeiramente nacional.

A 3ª república é um regime que já está podre há vários anos e que deveria terminar. São múltiplas (demasiadas!) as instituições do regime que lançam um cheiro fétido por todo o lado. Infelizmente, ainda que os sucessivos regimes portugueses tenham caído de podre, essa putrefacção durou longos anos.

No entanto, julgo que os próximos tempos são propícios para a destruição final do regime. O fraquíssimo governo de coligação que temos tido teve a utilíssima função de descredibilizar o PSD e o CDS, que deverão sofrer um forte castigo nas próximas eleições.

Mesmo assim, é duvidoso que António Costa consiga alcançar a maioria absoluta, porque em algum momento dos próximos 12 meses vai ter que começar a ser mais concreto no que pretende fazer no governo. Se optar por nunca se comprometer, também assim não alcançará a maioria absoluta, porque o tempo dos cheques em branco já passou.

Assim sendo, será forçado a um governo de bloco central, provavelmente sem o CDS, que não tem absolutamente nenhum interesse em se queimar ainda mais. Esse governo de bloco central, provavelmente sem Passos Coelho, será obrigado a continuar a austeridade dos últimos anos. A profunda desilusão que isso constituirá não fará mal apenas aos membros do governo, mas descredibilizará ainda mais os próprios partidos e o regime.

Para além de tudo isto, que não é pouco, julgo que aquilo que dará a estocada final no regime será o julgamento de Ricardo Salgado. Como a ponta do iceberg sugere, parece que terá feito de tudo e com todos. Como bem diz o ditado: “zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades”. Parece que é isso que virá a acontecer naquele que se deve transformar no mais mediático caso de sempre da justiça portuguesa, com episódios diários, todos eles contribuindo para o generalizado descrédito do regime e dos seus principais protagonistas. 

Este julgamento tem todo o potencial para ser o equivalente ao caso “Mãos limpas” em Itália, que destruiu todo o sistema partidário do pós-guerra. Deus queira que sim e que se crie um novo regime baseado numa constituição verdadeiramente nacional.


[Publicado no jornal “i”]

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