quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Potência relutante?

A Alemanha encontra-se na situação paradoxal de pretender uma Europa alemã e ser uma potência relutante

A queda do muro de Berlim, há 25 anos, abriu caminho para a reunificação alemã, que teve lugar no ano seguinte. Esta reunificação teve várias consequências, que interessa analisar. Em primeiro lugar, foi sentido pelos alemães como uma normalização do seu estatuto, colocando um fim à menorização e culpabilização que sentiam pelo seu papel na II Guerra Mundial. Até aí, a Alemanha pagava, sem exigir muito em troca, umas “reparações de guerra” voluntárias. O poder político deste país cresceu, assim, por duas vias: porque passou a ser maior e porque deixou de ter vergonha de assumir a sua força natural.

Em segundo lugar, esta normalização e o elevado custo que teve que suportar com a reunificação tornou-a também duplamente menos disponível para contribuir para os outros. Por um lado, porque sentia que o castigo já tinha chegado ao fim e, por outro, porque tinha já uma enorme despesa com a Alemanha de Leste.

Em terceiro lugar, houve uma certa apreensão de alguns parceiros comunitários em relação a este Estado reunificado e (santa ingenuidade!) exigiram-lhe a participação na moeda única. A esmagadora maioria do eleitorado alemão, bem como o Bundesbank, não queria, de forma alguma, ceder o Deutsche Mark. Com base nessa relutância, o chanceler Helmut Kohl impôs condições duríssimas para participar no que viria a ser o euro, na expectativa de elas serem rejeitadas e toda essa ideia abandonada. Para seu grande espanto, as condições germânicas foram aceites e a nova moeda europeia foi criada à imagem e semelhança do marco.

Isto é tão extraordinário e espantoso que tem que ser sublinhado: o euro deu um poder desmedido à Alemanha, de mandar sobre os orçamentos dos outros países, que nunca teria se se tivessem mantido as moedas nacionais. No entanto, a Alemanha foi forçada a adoptar o euro, para que o seu poder fosse contido. Pior era impossível.

Hoje em dia, a Alemanha é acusada, em simultâneo, de querer uma Europa alemã e, contraditoriamente, de ser uma potência relutante.

O que seria uma Europa alemã? Podemos encarar duas respostas: i) uma Europa subjugada aos interesses alemães; ii) uma Europa forçada a imitar os valores alemães.

Ambas estas vertentes fazem sentido. Ao exportar para o Sul da Europa e o resto do mundo, com um euro mais fraco do que seria o marco alemão, a Alemanha teria beneficiado com o euro (se ignorarmos que o Sul pode não vir a pagar as suas dívidas).

Por outro lado, o desejo alemão de cumprimento de estritas regras orçamentais poderá ser encarado como a forma mais evidente de pretender transformar toda a Europa numa ampliação da Alemanha. No entanto, se analisarmos bem este “desejo” o que está verdadeiramente na sua base é uma enorme relutância em pagar qualquer tipo de consequência da falta de rectidão orçamental dos outros países. E é impossível não associar esta relutância ao cansaço de contribuição para o alargamento da Alemanha.

Há aqui outra questão, que tem a ver com o facto de a palavra germânica para “dívida” (Schuld) ser a mesma para “culpa”. Ou seja, há uma identificação profunda entre indisciplina orçamental e erros moralmente muito reprováveis. Daí também uma dificuldade germânica em ter uma visão racional sobre a política económica na zona do euro, esmagada pela avaliação ética, ainda por cima agravada por uma rigidez moral de raiz protestante, dominante no Norte da Europa.

Também se pode dizer que há um elemento de potência relutante no facto de a Alemanha não ter nem se preocupar em ter uma genuína solução para a zona do euro, que vai andando sem grande rumo, até aquilo que presumo venha a ser a implosão final, aquando da próxima crise internacional. A relutância em liderar é tão grande que a Alemanha nem sequer aproveita a circunstância de ser o único Estado europeu que poderia liderar um pacote orçamental expansionista. Isto quando há queixas generalizadas sobre o estado das infra-estruturas neste país, inclusive algumas essenciais para a exportação de mercadorias, e este Estado conseguir financiar-se a uma taxa de juro real nula (!) a dez anos.


 [Publicado no jornal“i”]

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Teimosias

Em política, e não só, há teimosias fatais

 

Em política, e não só, é essencial distinguir entre firmeza de propósito e uma mera teimosia irracional e contraproducente.

Goste-se ou não da personagem e das suas políticas, tem que se reconhecer que Margaret Thatcher foi uma das personagens marcantes do final do século XX. Foi uma das re-introdutoras do liberalismo na acção política, de forma muito mais coerente do que Reagan, e actuou com uma notável eficácia e clareza. Se há algo de que não pode ser acusada é de ser cinzenta, sem ideias, troca-tintas, igual aos outros, não trazer nada de novo, etc. Repito: pode-se não gostar dela, mas é impossível considerar o seu consulado uma irrelevância.

Vou aproveitar dois momentos do seu governo para ilustrar a distinção entre firmeza de propósito e teimosia.

Quando foi eleita primeira-ministra, em Maio de 1979, herdou uma economia debilitada, excessivamente regulamentada por sucessivos governos trabalhistas, que, entre outras coisas, tinham feito enormes concessões aos sindicatos, que tinham um papel preponderante neste partido.

Partidária de uma política económica totalmente diferente, Thatcher lançou um vastíssimo programa de liberalização da economia, que incluía privatizações e desregulamentação dos mais variados sectores.

Uma das mais fortes oposições a estas reformas era corporizada pelo sindicato dos mineiros de carvão, cujo poder era considerado inexpugnável, e que faziam com que a indústria britânica tivesse que suportar custos de energia muito superiores aos seus competidores, colocando graves problemas de competitividade e limites ao crescimento económico.

Em absoluta coerência com o programa eleitoral que já lhe tinha assegurado duas vitórias nas urnas e aproveitando um momento propício em que as reservas de carvão do país eram substanciais, a primeira-ministra do Reino Unido atacou de forma decisiva o poder dos sindicatos mineiros, anunciando o fecho das minas que tinham deixado de ser competitivas.

Seguiu-se a mais extraordinária greve, com um longuíssimo braço de ferro entre o governo e os mineiros, que durou um ano.

É extremamente curioso como a teimosia dos mineiros, que não aceitavam qualquer tipo de compromisso, acabou por ajudar Thatcher a desmantelar de forma muito mais drástica as regulamentações do sector.

Esta greve, que certamente ajudou a cimentar a ideia de “Lady de Ferro”, derrotou também um dos principais pilares do partido trabalhista (os sindicatos), que teve que se reinventar à conta disso.

É evidente que o que estava em jogo nesta greve era muitíssimo mais do que os trabalhadores do carvão e é, por isso, inteiramente compreensível a firmeza de propósito que Thatcher mostrou em todo o processo, que poderia ter decorrido de forma muito diferente se outro fosse o chefe do governo.

Ainda que possa parecer, não se está aqui a fazer a apologia desta forma brutal de agir, embora, em alguns sentidos, Thatcher seja uma inspiração para Passos Coelho.

Já no final do mandato, para além de outras fontes de contestação, a chefe do governo britânico tentou mudar a tributação local, que passaria a ser independente do rendimento/património. Apesar da fortíssima oposição popular, ela insistia na mudança. Os deputados conservadores, vendo o seu lugar crescentemente em risco, acabaram por promover sucessivas eleições internas, que acabaram por retirar o poder a Thatcher.

Reparem na diferença: no Reino Unido, os deputados sentem o poder de destronar o seu líder, mesmo que chefe do executivo, quando este está em queda nas sondagens; em Portugal, os deputados são paus-mandados, que cometeram as loucuras de, no PSD, levar Santana Lopes às urnas em 2005 e, não tão delirante, no PS, propor a reeleição de Sócrates em 2009.

É evidente que, no final de mandato, Thatcher estava a agir por pura teimosia, ignorando as consequências políticas da sua insistência, ao contrário do que tinha feito no caso dos mineiros.

No caso de Passos Coelho e da manutenção de Nuno Crato e Paula Teixeira da Cruz no governo, qual das duas atitudes de Thatcher estará ele a imitar?


[Publicado no jornal “i”]

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Desresponsabilização

A moção de António Costa ao Congresso do PS inicia-se mal, dizendo que o partido “não aceita a perspetiva de que as dificuldades que enfrentamos sejam responsabilidade de Portugal e dos portugueses”. Isto ainda se poderia aceitar se em seguida assumisse que as responsabilidades são, no essencial, dos governos do PS, liderados por António Guterres e José Sócrates. Mas, como é evidente, não o faz.

Prossegue com muito pouco rigor, remetendo os nossos problemas de fraco crescimento (que nem tem a coragem de explicitar) desde 2000, como três choques externos (para quê complicar com “exógenos”?): “a integração da China no comércio internacional; o alargamento da União Europeia a Leste e a criação da moeda única”.

Antes de mais, convém esclarecer que um choque externo nunca é apenas um choque externo: há sempre um conjunto de políticas públicas que o precedem, que podem tornar o país mais robusto ou mais frágil no momento do choque e há as políticas de resposta ao choque, que o podem minimizar ou maximizar.

Comecemos por precisar as datas daqueles choques, para se perceber quão forçada é a sua alegação. O euro iniciou-se em 1999, o alargamento a Leste ocorreu em 2004 e a China registava crescimento de dois dígitos das exportações desde o início dos anos 90.

Para além disso, convém salientar que estes três choques foram anunciados com uma enorme antecedência. A criação do euro foi estabelecida no Tratado de Maastricht, em 1992; o alargamento da UE ao Leste europeu foi o culminar de um processo, iniciado com a queda do muro de Berlim em 1989; a adesão da China à globalização começou com as reformas conduzidas por Deng Xiaoping, desde 1978.

É mais do que evidente que nenhum governo português pode alegar que, de repente, no ano 2000, o país foi confrontado com mudanças inesperadas, para as quais era impossível estar preparado.

Nem sequer têm a desculpa de que não havia dinheiro para tomar medidas, porque os anos anteriores à adesão ao euro foram de vacas gordíssimas, cujo leite foi derramado sem a menor estratégia sobre auto-estradas (quase) sem tráfego, estádios de futebol, aumento do emprego público com baixas qualificações, etc.

Se António Costa acha que não se podia ter feito nada antes dos choques externos, quando havia tempo e dinheiro, o que é que tem agora para oferecer?

Em relação à crise de 2008-2009, culpa-se a paragem dos fluxos de capitais externos, como se fosse possível algum país viver permanentemente com défices externos elevadíssimos e uma dívida externa galopante, de cerca de 8% do PIB em 1995 para 110% em 2009. Vivíamos num “modelo” de não-crescimento insustentável, que teria sempre de ser interrompido.

Ao não assumir responsabilidades pelo passado, o PS só pode repetir os erros dos seus governos anteriores e preparar-se para um segundo pedido de resgate à troika.

[Publicado no Diário Económico]

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Podemos em Portugal?

A transformação do panorama partidário europeu acabará por chegar a Portugal e impedir uma maioria absoluta do PS

Os sistemas partidários europeus estão a passar por sérias convulsões e transformações. No Reino Unido, temos um governo de coligação, o que não acontecia desde a II Guerra Mundial, e sob a ameaça do UKIP, independentista, com sondagens surpreendentes.

Na Alemanha, e contrariando a ideia de que são os partidos radicais que estão a subir nas sondagens, o partido Alternativa para a Alemanha, que defende a saída do euro, também está em franco progresso, embora não ameace, para já, os principais partidos.

Em França, Marine Le Pen já atingiu o primeiro lugar em sondagens presidenciais.

Em Itália, o sistema partidário do pós-guerra sofreu um cataclismo total no início dos anos 90, em resultado da operação Mãos Limpas, que denunciou a generalizadíssima corrupção, a que nenhum dos principais partidos escapou. Infelizmente, e isso é uma das razões de alguma descrença, os novos partidos não se recomendam, nem sequer em termos de terem deixado a atracção pela corrupção. Mais recentemente, o partido de Beppe Grilo tem introduzido novas incertezas e estragos na proverbial instabilidade governativa deste país.

Na Grécia, o Syriza, o Bloco de Esquerda grego, está à frente nas sondagens, embora longíssimo duma maioria absoluta.

Em Espanha, o novíssimo Podemos, ideologicamente um “albergue espanhol” de esquerda, também já está em primeiro lugar nos estudos de opinião, também muito longe de uma maioria. No nosso vizinho, o sucesso eleitoral desta nova força política parece dever-se, em muito, a um sistema judicial que funciona (que inveja!), que tem vindo a expor a impressionante corrupção que aí se praticava.

Em geral, o que motivará esta transformação no espectro partidário europeu? Julgo que haverá três razões gerais: 1) a crise do euro; 2) a excessiva intromissão da UE nas políticas nacionais; 3) o fraco crescimento económico. Nalguns casos particulares, há ainda a investigação judicial a expor a corrupção dos partidos tradicionais.

Sintetizando imenso, fora do euro a correcção dos desequilíbrios externos faz-se através duma medida essencialmente tecnocrática (a desvalorização); no euro, essa correcção faz-se através da mais política das matérias: o orçamento. A crise do euro é, assim, uma fonte de insuportável intromissão no núcleo das escolhas políticas nacionais, gerando as maiores acrimónias sobre os partidos que são vistos a vergarem-se sobre o exterior.

A segunda razão é aparentada com a primeira, mas ultrapassa-a, como é visível no caso do Reino Unido.

 A terceira razão, o débil crescimento económico desde a crise de 2008, poderá ser explicada pela dificuldade em recuperação da crise, devido às políticas adoptadas, mas também por aquilo que se começa a designar como a “nova normal”, de crescimento insuficiente. Como diz o ditado “casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”.

Até agora, e de forma um pouco surpreendente, o panorama partidário português tem estado imune a estas mudanças, ironicamente mais visíveis no típico partido de protesto: o BE. No entanto, julgo que estamos apenas atrasados.

Apesar de tudo, algumas novidades têm surgido. O partido de Marinho e Pinto, claramente unipessoal, não deverá ir longe, tais têm sido os tiros no pé do seu líder. Há uma nova força emergente, o Nós, Cidadãos, mas é ainda cedo para aferir da sua eventual popularidade.

A justiça portuguesa tem estado demasiado dormente, não tendo sido, até agora, capaz de protagonizar uma limpeza como a que está a ter lugar em Espanha e que ajudou o Podemos a chegar ao primeiro lugar nas sondagens. Em Portugal, já que a justiça não faz o seu papel, parece que terá que ser a comissão parlamentar de inquérito ao BES a expor a podridão do regime. A revolta com as revelações que esta comissão deve trazer podem bem levar grupos de cidadãos a organizarem-se e a desafiarem os partidos actuais nas próximas eleições legislativas.

Por tudo isto, e também pela falta de clareza de António Costa, julgo que será praticamente impossível que o PS alcance a maioria absoluta nessas eleições.

[Publicado no jornal “i”]

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Anos finais

Os próximos tempos serão penosos por serem o estertor final da 3ª República, mas também libertadores porque preparam novos tempos melhores

Sou contra eleições legislativas antecipadas pelas piores/melhores razões. Se se respeitarem os calendários eleitorais (a propósito, porque é que o PS não propõe uma alteração da lei eleitoral?), mais difícil será a António Costa obter uma maioria absoluta. Isto porque quanto mais tempo passar, mais clara se tornará a sua vacuidade e ausência de alternativa, já que ele não se atreve a propor nada, muito menos o que seria uma genuína diferença: sair do euro. Do lado do governo, caso se liberte desta atracção pela trapalhada e pela teimosia em manter ministros “queimados”, poderia começar a recuperar estragos, aproveitando a tímida recuperação económica.

Um próximo governo do PS sem maioria absoluta e em coligação, previsivelmente com o PSD, deverá ser altamente instável. Ao imitar Hollande, engolindo tudo o que (ainda que vagamente) prometeu, António Costa perderá rapidamente legitimidade e o seu executivo ficará dependente do parceiro de coligação para sobreviver. As pressões alemãs sobre os orçamentos francês e italiano para 2015 mostram bem a ínfima margem de manobra do próximo executivo.

A frustração com o novo governo, por este continuar com a austeridade; a sua mesmice genérica; a sua incapacidade em produzir resultados (o PS é anti-reformas e não é como parceiro júnior que o PSD vai fazer o que não fez quando liderava o executivo) e a sua instabilidade crónica têm todas as condições para destruir não só os seus protagonistas, mas também os partidos que o apoiam. Como estes têm sido a base do “rotativismo” do regime, é o próprio regime que estará em causa.

Porque é que este cenário, próximo de catastrófico, é bom? Porque permitirá o fim da 3ª República e o início da 4ª República, que deverá ser um 25 de Abril numa “oitava acima”, com uma democracia verdadeiramente participativa.

Não me venham com a conversa do que se fez nos últimos 40 anos, porque qualquer regime teria feito necessariamente muito, sobretudo se ajudado pela cornucópia de fundos comunitários. Se acham que isso faz algum sentido, comparem os mais variados indicadores (taxa de escolarização, analfabetismo, esperança e vida à nascença, mortalidade infantil, etc.) entre o início (1926) e o fim (1974) da 2ª República. Como é evidente, irão encontrar enormes melhorias.

Aliás, a 3ª República não só desperdiçou uma enorme quantidade de fundos europeus (desperdiçar não quer dizer não gastar, mas sim gastar em disparates que só trazem encargos futuros), como conseguiu a mais do que duvidosa proeza de infectar o país desta gravíssima e raríssima doença que é a divergência estrutural com a UE (crescer menos do que os outros), que já dura há 15 anos. Esta enfermidade é gravíssima, porque sem crescimento tudo fica posto em causa: emprego, Estado social, sustentabilidade da dívida, etc. É raríssima, porque é contra a teoria e a prática: os mais pobres de um grupo que partilha muito em comum, como a UE, e ainda por cima recebe fundos para convergir, não são suposto – de modo algum – estarem a divergir, ainda por cima durante tanto tempo. E Portugal é caso único na UE, entre os mais pobres, onde isso se verifica.

Por tudo isto, a que acresce esse feito “invejável” de ter conseguido três “quase bancarrotas” em menos de quatro décadas, parece-me mais do que suficiente para colocar um ponto final neste regime, que já há muito está podre.

Como venho dizendo, acredito que o inquérito parlamentar ao caso BES e o previsível julgamento de Ricardo Salgado também deverão ajudar a trazer à superfície muita da porcaria em que o regime se tem baseado. A 3ª República transformou-se num conjunto de instituições extractivas, sugando rendas e dinheiros públicos nos mais inconcebíveis contratos, até hoje inexplicavelmente ainda não investigados, quando os seus termos mais do que indiciam corrupção.

Os tempos que se avizinham parece que em tudo ajudarão a que este regime termine sem deixar saudades. A única coisa que poderá deixar saudades serão os sonhos iniciais, a fraternidade dos primeiros momentos que, ainda por cima, nem sequer duraram muito tempo.


[Publicado no jornal “i”]

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Revoltante

A ausência de reforma da despesa pública deverá gerar um abuso crescente e revoltante da máquina fiscal

Nos últimos dias saíram nos jornais duas notícias revoltantes e relacionadas, porque ambas derivam do excesso de despesa pública que temos em Portugal.

A primeira, referente a uma multa exorbitante (provavelmente superior ao valor do terreno) por um proprietário ter, alegadamente, cometido alguns excessos na limpeza do seu terreno silvícola, tem a ver com a híper-regulamentação, que cria uma exército de funcionários públicos, cuja principal função parece ser infernizar a vida dos cidadãos e empresas. Para além disso, precisam de angariar receitas para financiar o seu funcionamento. Como essas receitas são insuficientes, é necessária a intervenção do fisco, ao qual estão a ser exigidas cada vez mais receitas, perante uma base tributária limitada.

Daí o segundo caso, o da penhora de uma casa própria, a uma família muito humilde, quando estava em causa uma dívida fiscal inferior a 10% do valor estimado da propriedade. Não interessa entrar nos detalhes dos casos particulares, porque não é isso que está em causa.

Estamos perante um fisco desesperado em obter receitas, que deixou de olhar a meios para o conseguir. Por seu turno, este desespero decorre – directamente – da ausência de uma verdadeira reforma da despesa pública. Já não são apenas as taxas de imposto que vão subindo, é mesmo a ferocidade da máquina fiscal que está imparável.

Por isso, é natural, e esse é o caminho que vamos percorrer nos próximos tempos (se nada mudar), um abuso crescente da máquina fiscal. Isso não é efeito desta ou daquela lei, duma maior ou menor diligência por parte deste ou daquele funcionário, decorre antes duma despesa pública não domesticada. Não pensem que legislar vai resolver este problema, porque a verdadeira fonte do problema (uma sede insaciável de receitas fiscais) o vai fazer manifestar-se noutro lado qualquer.

Se se mantiver esta ausência de reforma da despesa pública, julgo que duas coisas são previsíveis. Em primeiro lugar, uma animosidade crescente contra a administração pública, que impõe (ou é forçada a impor, mas isso o cidadão comum não percebe) regras estapafúrdias. Em segundo lugar, e em particular, uma revolta crescente contra a administração fiscal. Aliás, a recente legislação que aumenta as penalizações sobre quem insulte ou agrida dos funcionários do fisco é já um sinal por demais evidente de que a frequência e gravidade destas situações se tem intensificado.

Dito de outro modo, se a reforma da despesa pública não for feita a bem, será feita à bruta, com um apoio eleitoral crescente, contra uma administração pública cada vez menos respeitada. Um recado final (quase inútil) para os sindicatos da função pública: apoiem soluções enquanto é tempo, evitem que se chegue ao ponto de ruptura. 


[Publicado no DiárioEconómico]