domingo, 1 de setembro de 2019

Um testemunho, Stefan Zweig (1881-1942)



A cativante autobiografia do escritor Stefan Zweig (1881-1942) lança alguma luz sobre o que precedeu a Segunda Guerra Mundial.

Stefan Zweig (1881-1942) era um escritor, pacifista, judeu e austríaco, que conheceu grande popularidade entre as duas guerras. Deixou um registo autobiográfico O mundo de ontem. Recordações de um europeu, no ano do seu suicídio (Lisboa, Assírio & Alvim, 2017), de que vou aproveitar algumas passagens para assinalar os 80 anos do início da Segunda Guerra Mundial.

Considerava-se parte de uma geração “sobrecarregada pelo destino” (p. 11), que sofreu “a maior de todas as pragas, o nacionalismo que envenenou a flor da nossa cultura europeia” (p. 14).

Nasceu num “período áureo de segurança” (p. 18), quando a “a tolerância não era desprezada como sinal de moleza e de fraqueza, mas sim celebrada enquanto força moral” (p. 45).

Na verdade, encontravam-se já então raízes do futuro, como Karl Lueger, presidente da Câmara de Viena entre 1897 e 1910, “modelo de Hitler” no antissemitismo (p. 87).

Em 1896, Theodor Herzl (1860-1904), amigo de Zweig, publicou O Estado Judaico, onde advogava a edificação de uma pátria nova, na Palestina. O relato do seu funeral (pp. 136-137) é das passagens mais emocionantes do livro.

Nele desfilam os nomes maiores das artes da época, amigos do autor, tais como Rainer Maria Rilke (1875-1926), que lhe confidenciou: “Cansam-me as pessoas que cospem as suas emoções como se fossem sangue.” (p. 174).

Em visita à Índia, “presenciei pela primeira a loucura da pureza da raça” (p. 219).

Nas vésperas da I Guerra Mundial, “acreditar credulamente que o bom senso seria capaz de, na última hora, parar a loucura, foi, ao mesmo tempo, a nossa única culpa” (p. 237). No início do conflito, houve “um entusiasmo repentino”, “eram parte do mesmo todo”, “desconhecidos falavam-se na rua” (p. 263). “ ‘No Natal já estaremos em casa’, gritavam os recrutas às suas mães, a rir” (p. 266).

Zweig empenhou-se em escrever contra a guerra, “Pois o que felizmente distinguiu a Primeira da Segunda Guerra Mundial foi existir ainda o poder da palavra”, ainda não destruída pela “propaganda” (p. 283).

Com a escassez do pós-guerra, deparou-se “com os olhos amarelos e perigosos da fome” (p. 338), diz-nos que se comiam cães e gatos. “É necessário lembrar e relembrar que nada tornou o povo alemão tão amargurado, tão cheio de ódio, tão pronto para Hitler, como a inflação.” (p. 367).

Em 1933, “revelou-se pela primeira vez em grande estilo a técnica cinicamente genial de Hitler: (…) fazer alianças, sob juramento e invocando a lealdade alemã, exactamente com aqueles que queria aniquilar e exterminar” (p. 422).

Em 1934, quatro anos antes da “desumanidade desencadeada nesse 13 de Março de 1938” (p. 471, anexação da Áustria pela Alemanha) após uma busca domiciliária, “comecei a empacotar os meus documentos mais importantes” (p. 452) e emigrou para Inglaterra. Depois daquilo, “o valor da vida humana caiu mais a pique do que o valor da moeda” (p. 471).

Hoje, a memória de Chamberlain está muito enegrecida, mas quando chegou a notícia de que Hitler tinha acedido ao pedido daquele, de se encontrar em qualquer ponto da Alemanha, os “deputados saltaram dos seus lugares, gritando e aplaudindo, o júbilo ressoou nas galerias” (p. 482). Quando Chamberlain regressou, as pessoas em geral exultavam.

Entretanto, Zweig emigrou para o Brasil, onde viria a morrer num pacto de suicídio com a mulher, em 1942. Na sua carta de despedida, diz: “Depois de 60 anos são necessárias forças incomuns para começar tudo de novo. Aquelas que possuo foram exauridas nestes longos anos de desamparadas peregrinações.”

[Publicado na CapitalMagazine]