quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

(Des)união bancária

Se um banco da Califórnia entrar em graves problemas isso não afecta as contas do Estado da Califórnia, porque tudo é tratado a nível federal. Na zona do euro, não há nada de semelhante e os problemas bancários já afectaram de forma muito grave as contas públicas da Irlanda, Chipre e Espanha. O problema maior é o ciclo vicioso que se cria, porque o agravamento da dívida pública acaba, por seu lado, por afectar os bancos que ainda estejam sãos, cuja necessidade de ajuda volta a deteriorar as contas públicas, numa espiral terrível.

Após reconhecerem esta evidência, os países da zona do euro decidiram avançar para a criação de uma união bancária, baseada em três pilares: uma supervisão única, um mecanismo de resolução das crises bancárias e um mecanismo único de garantia de depósitos.

Em relação ao primeiro pilar, já foi aprovado, mas apenas incidirá sobre os maiores bancos, que representam cerca de 80% do sector, entrando em vigor em 2014.

O segundo pilar foi aprovado na passada semana e os resultados não poderiam ser mais decepcionantes. Começará, timidamente, em 2015, para só estar plenamente em vigor em 2025. Se já é duvidoso que o euro ainda esteja em vigor em 2015, a probabilidade de ainda circular em 2025 é do mais remoto que há.
O montante envolvido neste mecanismo é ridículo e existe uma forte condicionalidade na sua aplicação. Por tudo isto, o mecanismo de resolução de crises não tem nenhuma das condições necessárias para evitar o contágio entre crise bancária e crise soberana.

O que quer que venha a ser decidido pelo terceiro pilar da união bancária vai interessar muito pouco, não só porque o segundo pilar era o mais importante, como já ficou aqui demonstrado que será sempre insuficiente.
É verdade que muito do que ficou assim decidido o foi por pressão da Alemanha, mas também é preciso sublinhar que é no sector bancário que este país tem mais problemas e em que um sistema solidário os poderia também beneficiar. Ou seja, se nem neste caso a Alemanha está disposta a abrir os cordões à bolsa, então nunca o fará.

Este pífio acordo sobre “união” bancária vem assim, mais uma vez, demonstrar a incapacidade de construir soluções estruturais para a crise do euro. Por isso, é impossível acreditar na sobrevivência a longo prazo desta moeda.

A dúvida é sobretudo sobre o porquê e o quando do seu fim. O braço de ferro orçamental na Grécia, entre o governo e a troika, as eleições europeias de Maio de 2014, com o maior grupo parlamentar contra o euro de que há memória, poderão ser importantes condimentos de perturbações. Em Portugal, o recente chumbo do Tribunal Constitucional coloca-nos mais perto da necessidade de um segundo resgate e deverão aumentar o horror do eleitorado alemão sobre o desenrolar da crise do euro.

Peço desculpa por este fraco presente de Natal que aqui vos deixo, que, apesar de tudo, tenta ser uma forma de ajudar a tomar consciência do que o futuro (próximo?) nos trará.


[Publicado no Jornal de Negócios]

Contra a lei da gravidade

A decisão do TC é profundamente injusta e contra a lei da gravidade

A decisão do Tribunal Constitucional (TC) de vetar uma proposta do governo de convergência de pensões entre o sector público e o sector privado é triplamente injusta e contra a lei da gravidade.

As pensões em causa são triplamente injustas. Em primeiro lugar, por, na generalidade dos casos, não dependerem do conjunto da carreira contributiva, tendo assim uma relação muito fraca com a efectiva contribuição dos pensionistas para o sistema. Em segundo lugar, não só são, na esmagadora maioria dos casos, claramente acima das contribuições, como esta diferença vai subindo à medida que a pensão sobe. Este sistema é altamente regressivo, em flagrante desrespeito pelo princípio constitucional da progressividade. Não é escandaloso que os maiores benefícios ocorram nas maiores pensões?

Em terceiro lugar, estas pensões são injustas, porque são um privilégio que nunca foi nem poderia ter sido alargado ao sector privado e porque jamais poderão continuar a ser atribuídas nestes montantes no futuro.
Mas, pelos vistos, corrigir uma fortíssima injustiça é, de acordo com a leitura que estes juízes fazem da actual constituição, inconstitucional.

Fica-se com uma dúvida profunda: que peso atribuiu o TC ao preceito constitucional de ter as contas públicas equilibradas, em contraponto com o corte nas pensões? Isto para já não falar na gravidade do desequilíbrio das nossas finanças públicas, que nos tem mantido em estado de protectorado desde 2011. Fica-se com a sensação que o TC colocou extremamente mal o problema. Para o TC parece que a dúvida é cortar ou não as pensões, em vez de ser cortar as pensões para equilibrar as contas públicas ou não cortar as pensões e correr o risco de precisarmos de um segundo resgate, com mais vários anos de desrespeito pelo preceito constitucional sobre contas públicas, para além do prolongamento do período de soberania diminuída, que também contraria a constituição.

Como venho defendendo há vários anos, parece evidente a necessidade de uma revisão constitucional que atribua uma importância acrescida ao equilíbrio das contas públicas e submeta todos os direitos adquiridos à sustentabilidade das finanças públicas. Os direitos adquiridos deveriam passar a estar explicitamente previstos na Constituição, o que, por mais estranho que pareça, não é o caso, para também passarem a estar subordinados ao respeito pelo equilíbrio orçamental.

Para além de profundamente injusta, a decisão do TC é também contra a lei da gravidade. Há mais de três décadas que Portugal tem uma taxa de natalidade inferior ao necessário para a sustentabilidade da população e há mais de uma década que a economia praticamente não cresce. Para além destas condições altamente precárias de sustentar qualquer sistema de pensões, acresce que Portugal tem também, no sector público, pensionistas a beneficiar de um dos sistemas mais louca e impossivelmente generosos que é possível de imaginar. Como é que pode passar pela cabeça de alguém que este estado de coisas pode continuar como está?

Como ainda não chegámos à fase em que o Estado legisla o número de filhos que cada pessoa deve ter, nem ainda podemos decretar qual a taxa de crescimento potencial da economia, a única alternativa possível parece ser cortar nas pensões, sobretudo nas mais injustas.

Para além disso, estamos já a sofrer de uma forte sangria de emigração e, se tivermos mais impostos, em substituição dos cortes das pensões, teremos mais desemprego e mais emigração. Tudo isso deverá corroer ainda mais a capacidade da nossa economia suportar as actuais pensões.

Se não for com este governo, será com outro. Se não for com este TC, será com outro. Se não for com esta constituição, será com outra. Se não for dentro do euro, será fora do euro. Mas uma coisa vos garanto: as pensões vão cair, e muitíssimo mais do que o corte modesto que este governo pretendia aplicar. A “lei da gravidade” económica assim o forçará.


[Publicado no jornal “i”]

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

As rendas do euro

Os sectores que mais beneficiaram com o euro, banca, construção e energia, deverão ser os mais sofrerão com o seu fim

Em economia, uma renda económica é um rendimento fruto de um défice de competição, que tanto pode ser natural como artificial. O euro criou muitas rendas, sobretudo nos sectores da banca, construção e energia, que não poderiam ter ocorrido se tivéssemos mantido o escudo.

A bem dizer, não é inteiramente correcto dizer que o euro criou estas rendas. Na verdade, foi um défice de compreensão dos mecanismos económicos do euro que levaram muitos, com particular destaque para Vítor Constâncio, a ignorar a necessidade de continuar a respeitar a restrição externa e a declarar que o défice externo tinha deixado de ser relevante.

Partindo desta erradíssima premissa, que nos haveria de levar directamente para os braços da troika, os sucessivos governos, desde 1995, estimularam fortemente a procura interna. Este estímulo criou uma profunda distorção na economia, gerando uma abundância totalmente artificial nos sectores dedicados à economia portuguesa e um sufoco nos sectores que competiam no exterior, esmagados por uma escalada de custos, quer nos serviços quer nos salários, que aquele estímulo gerou e que seria impossível de acompanhar.

Com os sinais – totalmente errados – criados pela política económica, os sectores não transaccionáveis (dependentes da procura interna) expandiram-se enquanto os sectores expostos à concorrência internacional definharam quase todos.

Vejamos, em particular, três sectores, que foram dos maiores beneficiários com o euro: a banca, a construção e a energia.

Ainda antes da entrada no euro, a descida drástica e estrutural das taxas de juro para os níveis que iriam vigorar na nova moeda provocou uma explosão na concessão de crédito. Se o aumento do crédito era inevitável, já a distribuição sectorial deste não tinha que ser o disparate que foi, com a esmagadora fatia a ir para a habitação e construção, o que jamais permitira pagar a brutal dívida externa criada em contrapartida da explosão do crédito bancário. No entanto, enquanto a bonança durou, o sector bancário pôde inchar em pessoal, regalias aos trabalhadores e sobretudo administradores, bem como lucros aos accionistas.

É importante salientar que a euforia que se apoderou do sector bancário jamais poderia ter tido lugar com o escudo. Entretanto, o euro ainda não acabou, mas o sector bancário já está a pagar, muito parcialmente, os erros que cometeu. Quando o euro chegar ao fim, o sector bancário passará a pagar uma fatia muito maior dos seus erros.

O sector da construção foi outro enormemente beneficiado com o euro, não só pelo sector privado, mas também pelo sector público, em que a orgia de obras públicas, tantas vezes da mais duvidosa utilidade (sobretudo se submetidas a uma análise custo-benefício), expandiu o sector de forma totalmente insustentável. Deixando uma forte dúvida, como salientava um empresário: porquê criar tantos empregos num sector onde os portugueses não querem trabalhar? Será que isto teve alguma coisa a ver com financiamento partidário?

No caso da construção, o fim da insustentabilidade é ainda muito mais evidente do que na banca, sendo a actividade no exterior a única alternativa à falência dentro de portas. Pode ser difícil de acreditar, mas o fim do euro ainda deve trazer mais más notícias, sendo provável que se vejam à venda casas novas abaixo do preço de construir uma nova.

Finalmente, temos o caso da energia, onde se criaram as maiores alcavalas, para subsidiar as energias renováveis, mas não só. Estes excessos foram criados pelo euro, num duplo sentido. Por um lado, a ilusão de a restrição externa ter desaparecido permitiu que se subisse enormemente os custos de energia às empresas, destruindo a sua competitividade. Com o escudo, este disparate teria conhecido um forte travão e nunca poderia ter ido tão longe. Por outro lado, as baixas taxas de juro do euro permitiram a negociação de contratos leoninos, contra o Estado e os consumidores, que com as taxas de juro do escudo seriam proibitivos.

Neste momento, já há tímidas medidas de reversão destas asneiras, mas quando voltarmos ao escudo, a pressão será muito mais brutal e o sector da energia perderá muitas das rendas de que hoje beneficia (de forma muito pouco razoável).


[Publicado no jornal “i”]

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

“Crise de regime”

O PS no governo não vai conseguir diferenciar-se do actual executivo e isso irá criar uma profunda crise de regime

Medeiros Ferreira, uma das vozes com maior independência de espírito da área do PS, afirmou numa entrevista publicada neste jornal no Sábado passado que o “PS, no fundo, tem seis meses a um ano para demonstrar que governa de outra maneira.” Se falhar neste desafio, teremos “uma crise de regime”. Julgo que a intenção desta frase é a de lançar um aviso sobre a necessidade de o PS preparar uma verdadeira alternativa, mas temo que isto caia em saco roto.

Aquele professor recomenda também que haja eleições antecipadas, em Maio de 2014, em simultâneo com as europeias, o que até poderá ser considerado optimista, tendo em atenção as dificuldades com que o governo se vem defrontando, desde logo pelas fissuras internas.

Seja qual for o momento em que o PS volte ao poder, parece-me que tem todas as condições para falhar o repto de governar de forma diferente, por várias razões. Antes de mais, é preciso recordar que entre 1995, início do descalabro das contas externas e 2011, o pedido de ajuda à troika, in extremis, o PS esteve no governo mais de 80% do tempo.

Nesse período, o PS ignorou a globalização, destruiu a competitividade e o potencial de crescimento da economia portuguesa, colocando em causa o financiamento do Estado social. Possivelmente por razões ideológicas, ignorou a defesa da família, e assistiu impávido a uma queda desastrosa da natalidade, colocando de novo em risco a sustentabilidade do Estado social.

Para além disso, para o PS, o Estado “social” parece ser muito mais um Estado “clientelar”, no qual as maiores corporações do sector público se sentam à mesa, onde as maiores negociatas públicas têm lugar (quem assinou a maioria dos contratos das PPP, dos swaps, etc.?), para além de mais umas quantas prebendas avulsas (a que propósito é que o Grande Moralista Baptista Bastos vive numa casa da C.M. Lisboa?).

Para os socialistas, a verdadeira alternativa seria reviver o passado no tempo em que Bruxelas estava cega para as asneiras que os países periféricos iam perpetrando e no tempo em que o crédito era quase à borla. Mas, quer já tenham tomado consciência disso, quer não, bem podem cantar para o tempo voltar para trás, que ele não vos ouvirá.

Sendo assim, que alternativas se colocam ao PS? O primeiro obstáculo a divisar alternativas prende-se com o facto de este partido se ter tornado numa associação “clientelar”, muito mais do que ideológica. Se o norte do PS fosse a preocupação pelos mais pobres e desfavorecidos, isso permitir-lhe-ia uma agenda muito mais clara e desimpedida.

No entanto, como está prisioneiro das clientelas que favoreceu até aqui, está numa camisa-de-onze-varas. Como é evidente, a consolidação orçamental terá que ser conseguida justamente pela eliminação das generosidades concedidas às corporações públicas, quer no trabalho, quer na reforma. Como é que o PS pode sobreviver a atacar a sua base eleitoral por excelência?

O estado lastimoso das contas públicas, bem como o estado de urgência que deverá forçar a desrespeitar inúmeros contratos financeiros públicos, deverão colocar um fortíssimo travão a qualquer grande contrato público nos próximos tempos. Dado a péssima utilização que foi dada a estes contratos, isto só pode ser encarado como uma excelente para os contribuintes. No entanto, mais uma vez, isto é uma terrível notícia para o PS, que se tem habituado a beneficiar um conjunto alargado de “empresários”, cuja vantagem competitiva é o acesso aos corredores do poder. Sem o apoio desta “elite”, como é que o PS (se) irá governar?

Em resumo, a menos de um golpe de asa, de que nem o actual líder do PS, nem as alternativas parecem ser remotamente capazes, os socialistas deverão ser obrigados a repetir as medidas do actual governo, com a agravante de o fazerem contra a sua natural base de apoio. Como bem prevê Medeiros Ferreira, isto tem todas as condições para criar uma “crise de regime”. Mas não haja a menor ilusão que a queda do PS poderá beneficiar o centro-direita.

Atrevo-me a antecipar que isto deverá levar à implosão dos actuais partidos tradicionais e abrir espaço para verdadeiras alternativas, possivelmente no quadro de uma 4ª República, então embrionária.


[Publicado no jornal “i”]