segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Quando é que acordamos para o problema da natalidade?


Quanto menos recuperar a natalidade, tanto mais profundos serão os cortes futuros nas pensões.

Há muitas décadas que se tem assistido a uma queda da natalidade por toda a Europa. Há dois padrões comuns: todos os países passaram a ter um problema de natalidade, uns mais cedo, outros mais tarde; todos tomaram medidas para inverter a situação, uns com mais sucesso outros com menos.

Em 1960, a taxa de fecundidade era de 2,73 em França e 3,16 em Portugal. Em 1975, aquela taxa já tinha descido abaixo dos críticos 2,1 (para assegurar a sustentabilidade da população) em França, tendo atingido um mínimo de 1,66 em meados dos anos 90, após o que recuperou para valores próximo de 2,0, muito próximo do necessário.

Em Portugal, aquela taxa entrou na zona de risco em 1982, desceu sempre até 2013, em que atingiu uns baixíssimos 1,21, tendo recuperado ligeiramente para valores em torno de 1,35. Aliás, é provável que a parte final da queda e recuperação seja mais devida ao efeito da quebra de rendimento que o desastre de Sócrates criou a necessidade de introduzir (também conhecida por “troika”). Ou seja, não estará a mudar nada de essencial e a subida irá interromper-se em breve.

É um facto extraordinário que o nosso país se saliente por ter um problema gravíssimo, há quase quatro décadas, e ainda não ter feito quase nada para o tentar minorar.

Este problema é de uma gravidade extrema, porque tem tornado o nosso país num dos mais envelhecidos da Europa, com impactos brutais sobre as contas públicas, quer na área da saúde, quer na das pensões. Com a agravante de os nossos orçamentos sofrerem também com a estagnação económica das duas últimas décadas, outro desafio que, quer os políticos, quer a população em geral, insistem em ignorar.

É urgente que todos os portugueses tomem consciência que o tema da natalidade está intimamente relacionado com o das pensões: quanto menos recuperar a natalidade, tanto mais profundos serão os cortes futuros nas pensões.

Em 2017, já só tínhamos 1,3 trabalhadores empregados por cada pensionista, um número aterrador, que continua a deteriorar-se, que só pode inverter-se, a prazo, com a melhoria da natalidade.

Há cerca de cinco anos, num trabalho no âmbito de revisões de publicações da Fundação Francisco Manuel dos Santos, sugeri que esta passasse a financiar a produção de livros brancos sobre temas importantes e sugeri duas hipóteses iniciais: a natalidade e os incêndios.

Até hoje, quase nada foi feito, nem pela sociedade civil nem pelos sucessivos governos. Não vos parece do mais elementar bom senso tentar identificar o que já foi experimentado nos outros países europeus e o que teve mais sucesso e o que foi infrutífero?

Sem tentar, de modo algum, substituir-me a um estudo aturado do assunto, acham normal que um país com um problema de natalidade, com a gravidade que temos, ainda não haja uma rede completa de creches desde os primeiros meses? Acham aceitável que, nas últimas décadas, se tenham gasto quantias exorbitantes em auto-estradas sem tráfego, estádios de futebol, rotundas e na “festa” da Parque Escolar (afinal uma grande e “proveitosa” festa para alguns…), e em tantos outros disparates, e ainda não haja creches suficientes, para um número cada vez menor de crianças que vão nascendo?

Segundo estimativas do INE, com a manutenção da actual taxa de fecundidade, a população deverá minguar até apenas 6,5 milhões em 2080. Vamos baixar os braços e não fazer absolutamente nada até este desastre se produzir?

Como é possível imaginar que a imigração é a solução (com todos os seus riscos), se ainda não se fez nada na origem do problema: a natalidade?

Já se fez um livro branco? Já se aplicaram as melhores práticas, devidamente adaptadas? Já se ensaiaram medidas inovadoras, adequadas aos nossos problemas específicos?

Se, depois de realizadas as tarefas atrás enunciadas, se chegar à conclusão que só conseguimos melhorar a natalidade de forma limitada, então, e só então, será aceitável pensar em outras soluções.

O que não é, de modo algum, aceitável é desistir sem sequer se ter começado.

[Publicado na Capital Magazine]

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Negociar o salário mínimo


As empresas devem exigir ao Estado que dê o exemplo, que suba o Indexante de Apoios Sociais (IAS) pelo menos tanto como pede de subida do salário mínimo.

Durante décadas, a negociação do salário mínimo teve dois grandes disciplinadores: o equilíbrio externo e o facto de aquele ser o indexante de múltiplas prestações sociais.

Quando os salários reais (descontando a inflação) subiam acima da produtividade, isso, em geral, provocava um desequilíbrio externo, que obrigava a uma desvalorização, que baixava drasticamente as remunerações reais, em que as actualizações salariais eram muito inferiores à inflação.

Como o salário mínimo era indexante de muita despesa social, o ministro das Finanças era um forte aliado das empresas na disciplina da sua subida.

Em 2007, o governo de Sócrates teve a espertalhice de criar o Indexante de Apoios Sociais (IAS), que substituiu o salário mínimo como indexante, pelo que a subida deste passou a não ter, directamente, qualquer custo para o Estado. Começou aí um extraordinário festival de hipocrisia, em que o IAS foi ficando cada vez mais para trás, enquanto o salário mínimo foi sendo aumentado de forma irresponsável, prejudicando a já frágil saúde da economia e da competitividade da economia portuguesa.

Como se pode ver na tabela abaixo, o IAS começou por ser congelado logo em 2010, ainda antes da “troika”, permaneceu constante durante o período do memorando, como seria de esperar, mas, surpresa das surpresas, manteve-se ainda intacto em 2016, quando o actual governo achou que, muito mais importante do que gastar dinheiro em política social, era dispensar cerca de 350 milhões de euros por ano (agora deve ser substancialmente mais) a baixar o IVA da restauração, um dos sectores que estava mais robusto. Esta descida do IVA há-de permanecer como uma das medidas mais abstrusas e incompreensíveis da actual maioria.

IAS e salário mínimo, 2006-2018

Ano
IAS (€)
Subida (€)
Salário mínimo (€)
Subida (€)
IAS/Salário mínimo
2006
385,90*
-
403
-
100,0%
2007
397,86
11,96
426
23,00
98,7%
2008
407,41
9,55
450
24,00
95,6%
2009
419,22
11,81
475
25,00
93,2%
2010
419,22
0,00
485
10,00
88,3%
2011
419,22
0,00
485
0,00
86,4%
2012
419,22
0,00
485
0,00
86,4%
2013
419,22
0,00
490
5,00
86,4%
2014
419,22
0,00
505
15,00
85,6%
2015
419,22
0,00
530
25,00
83,0%
2016
419,22
0,00
557
27,00
79,1%
2017
421,32
2,10
580
23,00
75,6%
2018
428,90
7,58
403
17,10
73,9%
* era o salário mínimo

Em 2017 e 2018 houve finalmente subidas modestas do IAS, muito inferiores às do salário mínimo, um claro sinal do desprezo deste executivo pelas políticas sociais, excepto quando elas são pagas por outros, como as empresas.

As empresas devem exigir que esta divergência entre IAS e salário mínimo seja estancada, não devendo aceitar aumento deste inferior ao daquele. Se, por hipótese, o governo se propuser subir o IAS em apenas 10€ (talvez até proponha menos que isso), as confederações patronais devem insistir que o salário mínimo só subirá 10€. Se o governo argumentar que não pode subir mais o IAS, as empresas devem ripostar que, se o Estado não tem dinheiro para aumentos maiores, as empresas muito menos.

Os trabalhadores não têm interesse em aumentos salariais que fragilizam as empresas, porque isso pode, a médio prazo, colocar em risco o seu emprego.

Os trabalhadores e as empresas querem aumentos salariais sérios e sustentáveis e para isso há que aumentar a produtividade, sendo essencial diminuir o abismo que nos separa em termos de educação e formação profissional, em particular em relação aos países da Europa de Leste. O recente regresso ao facilitismo na educação só nos poderá conduzir à miséria, no contexto dos desafios brutais da economia digital. É urgente reformar, de alto a baixo, o IEFP, onde se espatifam milhões em pseudo-formação, só para retirar desempregados das estatísticas, em vez de financiar formação dentro das empresas, a única capaz de aumentar a produtividade e criar emprego para os que não o têm.

É muito hipócrita querer grandes aumentos do salário mínimo e não instituir um escalão negativo no IRS, em que os menores rendimento recebem um subsídio, como estava, aliás, inscrito no programa eleitoral do PS. Esta é a via correcta de fazer política social, melhorando o rendimento dos mais pobres, sem criar custos para as empresas.

É essencial não esquecer que foi a nossa dívida externa e não a dívida pública que gerou a necessidade de pedir ajuda à “troika”. Em 2018, estamos a assistir a uma degradação do saldo externo, pelo que esta é a pior conjuntura para inventar mais riscos.

É muito hipócrita fingir-se preocupado com os mais pobres e não querer fazer as reformas estruturais que podem fazer Portugal sair da estagnação das últimas duas décadas, a única forma de se poder aumentar salários, baixar impostos e distribuir mais riqueza.

[Publicado na CapitalMagazine]

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Acabar com a demissão cívica


Há demasiadas classes profissionais que estão ausentes do espaço público e é urgente acabar com esta demissão cívica.

Há algumas classes profissionais que estão suficientemente representadas na comunicação social, nomeadamente economistas e juristas, quer em número quer em diversidade. Isto não quer dizer, infelizmente, que os problemas económicos e da justiça estejam razoavelmente resolvidos. Muito pelo contrário.

Portugal vive a mais escandalosa e única divergência da UE, entre os mais pobres Estados-Membros, há quase duas décadas e poucos economistas falam sobre isto e o país ainda não está, nem de longe nem de perto, consciente deste problema. E esta falta de consciência é um obstáculo gigantesco à tomada de medidas, porque sem tomar consciência da gravidade da situação, a população em geral não está politicamente disponível para as reformas essenciais para solucionar esta calamidade.

Em relação à justiça, julgo que não será injusto dizer que é, no sector público, a área onde as coisas funcionam mais escandalosamente mal.

Chegados aqui, poderíamos ser levados a concluir que a participação pública é pouco importante, mas acho que podemos ser um pouco mais optimistas.

Há outros, tais como médicos, engenheiros, professores do ensino não superior, técnicos superiores da função pública, empresários, para citar apenas alguns grupos profissionais, cuja escassez de participação pública é um pouco chocante. E esta participação não teria que ser com grandes teorias, mas poderia ser de relatos na primeira pessoa, que teriam certamente factos muito interessantes para nos revelar.

Temos visto demissões em bloco de dirigentes hospitalares, um gesto sem dúvida corajoso, mas não vemos cartas colectivas e públicas e explicar, com o maior detalhe, as razões concretas que motivaram esta atitude. Ouvimos queixas soltas de utentes do SNS, mas não temos tido acesso a relatos detalhados de quem vive, profissionalmente, estas dificuldades. Parece evidente que testemunhos deste tipo ajudariam a formar uma ideia mais clara sobre o que se está a passar. É ou não verdade que a passagem para as 35 horas provocaram uma grave queda na qualidade dos serviços de saúde?

Todos temos a nítida sensação que o sistema de transportes em Portugal é uma absurda manta de retalhos, sem a menor visão sistémica, com propostas de resolução para lá de ridículas. Porque é que não temos artigos regulares de engenheiros a propor soluções estruturadas, cuja racionalidade nos conquistaria imediatamente?

Os professores do ensino não superior vivem num inferno burocrático e com um défice de autoridade, que causa a muitos graves distúrbios psicológicos, a que os seus sindicatos parecem estar alheios, ainda que tenham muita força para conseguir outras reivindicações dos sucessivos governos. Porque não se exprimem mais no espaço público, expondo não só as suas queixas, mas propostas concretas e viáveis de soluções?

É consensual que a administração pública está insuportavelmente colonizada por boys (incompetentes que só ocupam lugares pelas suas ligações partidárias). Porque é que não temos denúncias colectivas de casos concretos por parte de técnicos superiores da função pública? Se têm assim tanto medo de represálias, porque é que não exigem que os sindicatos reivindiquem mais garantias de protecção de denúncias? Porque é que não envolvem o Procurador de Justiça nestas acusações?

Muitos empresários lastimam, em privado, obstáculos abstrusos e perseguições pela administração pública. Porque não exigem que os seus representantes venham a público denunciar estas situações?

Esta – generalizada – demissão cívica custa imenso ao país, cria imenso descontentamento e perda de qualidade de vida a milhões de portugueses. É urgente colocar um ponto final nesta demissão.

É neste sentido que a Capital Magazine se disponibiliza para publicar textos de qualidade que nos enviarem, que dêem voz aos pontos de vista dos sectores e profissionais até agora arredados da opinião pública e da participação cívica. Aguardamos a vossa vontade de terminar com esta demissão cívica.

[Publicado na CapitalMagazine]