quinta-feira, 30 de maio de 2013

"Porque devemos sair do euro" (I)

João Ferreira do Amaral defende que Portugal saia do euro mas em termos pouco realistas


João Ferreira do Amaral (JFA) publicou recentemente um livro, "Porque Devemos Sair do Euro" (2013, Lua de Papel), em que faz uma análise importante da crise do euro. Diria que há dois grupos de argumentos principais, políticos e económicos, que apresenta para recomendar que Portugal saia do euro.

Em termos políticos, o euro correspondeu a uma perda de soberania - sobretudo em termos de política monetária, mas não só - que JFA, pela sua atitude claramente patriótica, recomenda que recuperemos.
Em termos económicos, ainda antes da entrada no euro, JFA tinha sido das vozes mais credíveis a criticar um projecto que, em seu entender, era totalmente inadequado às características da economia portuguesa.

No seu livro, JFA apresenta uma definição extremamente interessante de competitividade (pp. 84-85), ao colocar a ênfase na sua dimensão dinâmica (capacidade de inovar, etc.), ao contrário das visões mais comuns, estritamente estáticas.

Passando agora a analisar aquilo que no seu livro me parece menos conseguido, começaria por dizer que me surpreende que a sua recomendação de saída do euro seja apresentada como necessitando da estabilização da crise do euro como condição prévia para ser concretizada. Como considero que não há, nem deverá haver, qualquer tipo de estabilização da crise do euro, é como se a sua recomendação nunca viesse a ter hipóteses de ser aplicada.

Em segundo lugar, as cinco condições que coloca para a saída do euro merecem-me as maiores reservas. Esta semana tratarei apenas da primeira: "a) Anunciar-se-ia amplamente (e cumprir-se-ia, claro) que as aplicações financeiras em instituições portuguesas manteriam o seu valor em euros, de modo a não gerar um pânico na transição para a nova moeda; quanto ao Estado, continuaria a honrar a sua dívida em euros. Esta garantia deveria ser prestada pelas autoridades nacionais e comunitárias em conjunto." (p. 119).

Esta ideia parece-me ineficiente, injusta e impraticável. Considero-a ineficiente porque, para evitar uma fuga de depósitos, há uma forma muito mais económica de o fazer: suspender a liberdade de circulação de capitais, como se aplicou em Chipre, limitando os levantamentos (e transferências) mensais dos particulares a, digamos, 5 mil euros por mês.

Em Março de 2013, os depósitos de particulares representavam 75% do PIB, enquanto os depósitos das empresas equivaliam a apenas 16% do PIB. No caso das empresas, em que os depósitos não são poupança, mas sobretudo liquidez, não poderá haver um limite tão estrito aos levantamentos e transferências, porque isso as paralisaria. Para além disso, como estes fundos são essenciais ao movimento quotidiano, o risco de fuga é menor.

Aquela medida seria também profundamente injusta porque forçaria o Estado português (já explico porque é que não faz sentido esperar pela ajuda dos nossos parceiros comunitários) a assumir um aumento brutal da dívida pública, para proteger sobretudo os grandes depositantes, onde se concentram o maior volume de depósitos. Porquê sobrecarregar ainda mais os contribuintes portugueses para defender o património dos mais ricos? Para além disso, como detalho no meu livro "O Fim do Euro em Portugal?" (2012, Actual Editora, grupo Almedina), haverá perdas brutais de valor na generalidade dos activos financeiros e mesmo no imobiliário. Porquê oferecer esta garantia excepcional aos depósitos quando tudo o resto não poderá usufruir deste mesmo benefício?

Finalmente, considero esta proposta impraticável em dois planos. Num primeiro plano, a dívida pública portuguesa caminha a passos largos para os 130% do PIB, um nível obviamente insustentável que forçará a doses consideráveis de inflação quando sairmos do euro. Como justificar mais dívida e mais inflação para proteger os maiores depósitos?

Num segundo plano, JFA parece ignorar que a saída de Portugal não deixaria o resto da zona do euro intacta, antes iniciaria um efeito de dominó que conduziria à provável desagregação de todo este espaço monetário. Por isso, o apoio que espera dos parceiros comunitários para a sua proposta de saída parece-me impraticável.

Na próxima semana continuarei esta análise.

[Publicado no jornal i]

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Fim negociado do euro

O fim negociado do euro seria um mal menor, mas muito difícil de concretizar

O fim do euro poderá ocorrer de forma negociada ou caótica. O fim negociado poderia acontecer mais facilmente com a saída da Alemanha ou com o acordo rápido e generalizado de todos.

Como é fácil de imaginar, o fim caótico do euro é a pior hipótese possível, mas também, infelizmente, a mais provável.

Porque é que o fim caótico é a hipótese mais provável? O fim organizado do euro, podendo limitar os danos, será sempre muito traumático. Como convencer os eleitorados que uma catástrofe observada é menos má do que uma catástrofe – muito pior – não observada? Como poderá a maioria dos eleitores acreditar que o desastre que estão a viver foi criado para evitar um mal maior? Que líderes políticos se mostrarão disponíveis para o suicídio público? Repare-se que não estou a dar razão aos eleitores, mas apenas a enunciar o paradoxo político que muitos dirigentes políticos europeus deverão estar a viver.
Para além disto, o fim negociado do euro tem graves problemas logísticos. Imaginemos que, por hipótese, a chanceler alemã dizia oficialmente que queria começar a negociar o fim do euro, colocando mesmo um prazo de apenas três meses para concluir as negociações.

Três meses é um prazo muito curto para chegar a acordo sobre as condições de fim ordenado do euro e, sobretudo, para tratar de todas as questões logísticas, desde a impressão das novas notas nacionais, até à preparação de todos os sistemas de pagamentos para a nova realidade.

No entanto, em termos dos mercados financeiros, especializados em antecipar (bem ou mal) o futuro, três meses é uma eternidade. Mesmo antes de conhecer os exactos contornos da solução final, os mercados antecipariam níveis muito elevados de incumprimento da dívida pública dos países “fracos”, que seria “despejada” a qualquer preço, com uma enorme escassez de compradores. Os preços destas obrigações cairiam drasticamente, com a correspondente subida das taxas de juro, tornando proibitivo o acesso ao mercado de todos estes países.

Mesmo as famílias e empresas dos países fracos participariam neste movimento, ao lançarem-se numa desesperada fuga de depósitos para outros países, na tentativa de evitar as perdas drásticas que sofreriam se os mantivessem nos bancos locais.

Em suma, a mera ventilação da ideia de fim negociado do euro deverá colocar em marcha uma sucessão de eventos tão fortes e drásticos, que poderão, com elevada probabilidade, impedir a sua concretização, antecipando antes um fim caótico do euro.

Quer isto dizer que o fim negociado do euro é uma hipótese impossível? Não propriamente, embora a sua concretização se tenha que fazer num intervalo muito estreito.

O primeiro problema consiste nas doses maciças de negação, intelectual e psicológica, sobre os gravíssimos problemas de sustentabilidade do euro, que recomendariam a criação do fim negociado, em vez de esperar pelo fim caótico, que deverá ser imposto pela realidade.

O segundo problema é o da liderança do processo, que, idealmente, deveria ser assumido pela Alemanha. No entanto, este Estado ficaria com uma culpa tão grande – completamente injusta – de destruir o euro, acarretando um custo político brutal, que deverá impedir os dirigentes deste país de liderar uma solução racional, que minimizaria os custos para todos.

Há também a hipótese de este movimento ser lançado por um país forte, mas menor, o que poderia salvar a Alemanha do opróbrio maior. Mesmo assim, a probabilidade de aquele país ser considerado um peão ao servido da Alemanha é elevadíssima.

Resta a possibilidade, já aqui referida, de ser a Alemanha a sair unilateralmente do euro, a solução verdadeiramente ideal.


Como comentário final, gostaria de acrescentar que todas estas diferentes soluções exigem um brutal trabalho de preparação nos bastidores, em total contradição com o discurso oficial da esmagadora maioria dos países. 

Fundos europeus

Os fundos comunitários que Portugal vem recebendo têm vários problemas, desde logo por não respeitarem o princípio da subsidiariedade. Os eurocratas sonham com uma harmonização insensata, que pretende impor os mesmos requisitos a países em estádios de desenvolvimento tão díspares como a Roménia, Portugal e a Suécia.

Se Portugal tivesse total liberdade de dispor dos fundos europeus não teria espatifado milhões em projectos absurdos, que só receberam dinheiro “para se aproveitar os fundos europeus”. O cúmulo, em boa hora abortado, era o TGV. Vários governos, de várias cores políticas, quiseram avançar com este projecto, com o quase exclusivo intuito de não perder fundos, esquecendo olimpicamente que bastavam dois ou três anos de prejuízos de exploração daquele elefante branco para “comer” as transferências recebidas e que, de então em diante, teríamos uma sucessão eterna de prejuízos a pesar sobre as contas públicas. Um excelente negócio, não haja dúvidas!

Estou a sugerir que os fundos europeus possam ser usados de qualquer maneira? De modo algum. Estou a sugerir que se passe a usar um critério muito mais lato, de convergência económica com a média europeia. Como todos sabem, há mais de dez anos que Portugal chumba nesse critério básico, o que sugere, ainda que não demonstre cabalmente, uma péssima utilização da ajuda comunitária.

Sugiro ainda que, nas actuais circunstâncias, Portugal se coligue com a Grécia, Irlanda, Espanha, Chipre e Eslovénia e com outros países ainda, para negociar uma alteração na utilização dos fundos comunitários.
Este dinheiro deveria poder ser usado directamente para pagar os juros dos empréstimos da troika (ou, pelo menos, da parte europeia). Os fundos assim libertados poderiam ser usados para liquidar as dívidas do Estado e das empresas públicas às empresas privadas, aliviando um dos maiores sufocos destas e um dos maiores obstáculos ao crescimento económico, que deveria ser o objectivo final dos fundos europeus.
Isto permitiria eliminar toda a burocracia pública “entretida” em dividir os fundos comunitários em milhares de projectos da mais duvidosa utilidade. Também serviria para riscar do mapa toda a actividade parasitária das empresas privadas “especializadas” nos concursos e nos “favores” de todo este absurdo.

É mil vezes preferível reduzir genericamente os custos de contexto de todas as empresas do que andar a escolher esta ou aquela empresa deste ou daquele sector.

Será esta uma negociação fácil? De maneira nenhuma. Os eurocratas não se poderiam estar a borrifar mais para o bem-estar dos países mais necessitados. A sua única preocupação é com o exercício do poder, que será tanto mais evidente quanto mais disparatadas forem as imposições que conseguirem forçar.


Mas faz algum sentido desistir antes de tentar? É óbvio que não. Neste – curtíssimo – texto avancei já com alguns dos argumentos que o governo português poderá usar nessas negociações.

[publicado no Jornal de Negócios, a 16 Maio 2013]

Rever pensões

Temos quase só um trabalhador por cada pensionista, pelo que é impossível não mexer nas pensões

Quando falamos em rever as pensões a primeira coisa que temos que olhar é para o número de trabalhadores cujas contribuições sustentam os actuais pensionistas. Temos uma tendência, já com muitas décadas, de aumento do número de reformados e, na última década, de diminuição do emprego. O resultado conjugado destes dois efeitos tem sido um brutal estreitamento entre aqueles dois números.
Neste momento, já só há mais 850 mil trabalhadores do que pensionistas. Por cada reformado já só temos 1,2 trabalhadores. Com estes números, com os problemas nas contas públicas (em que a maior rubrica são as pensões) que enfrentamos e com a carga fiscal esmagadora, há uma conclusão óbvia a retirar: é impossível não mexer nas pensões.

Façamos então um breve retrato das pensões em vigor. Temos 3,6 milhões de pensionistas, dos quais 40% não são pensões “normais”, mas sim de invalidez, sobrevivência e outras. Esta percentagem parece-me excessivamente elevada, mas não vou elaborar sobre isto.

As pensões “normais” têm uma distribuição pelos diferentes escalões de rendimento com diferenças brutais entre o regime geral e o regime público (CGA). No regime geral, 78,3% estão abaixo dos 500€ e uns impressionantes 93,8% estão abaixo dos 1000€. Já na CGA, estas percentagens são, respectivamente, de 21,0% e 49,6%. Nas pensões mais elevadas a disparidade é também drástica. No regime geral, apenas 0,8% aufere uma reforma acima dos 2500€, enquanto a CGA paga estes valores a 11,6% dos seus pensionistas. Em resumo: enquanto no regime geral, apenas 21,7% dos trabalhadores recebe uma pensão ACIMA dos 500€, no Estado, apenas 21,0% recebe ABAIXO dos 500€.

Logo me dirão que no Estado as qualificações estão muito acima do que se verifica no privado. Isso é claramente verdade, mas também existe a queixa eterna de que os trabalhadores mais qualificados do Estado recebem muito menos do que no sector privado. Como é que isto é compatível com esta disparidade flagrante nas pensões?

Por uma razão muito simples: porque as condições de reforma no sector público foram sempre muitíssimo mais generosas do que no sector privado. Até há não muito tempo, no sector público a primeira reforma era igual ao último salário, o que, devido ao diferente tratamento fiscal, até se traduzia num aumento do rendimento líquido. Soube-se até do caso híper-escandaloso de um juiz que foi promovido para o Supremo Tribunal de Justiça, onde ficou apenas três meses, apenas para se poder reformar com uma pensão mais elevada.

De tudo o que ficou dito até aqui parece concluir-se que há duas alterações a introduzir nas pensões. Em primeiríssimo lugar, em todas as pensões que não resultem da totalidade da carreira contributiva, sejam elas no regime geral, ou na CGA. Em segundo lugar, dever-se-á criar um contributo que seja função do nível da pensão, mas tendo em atenção a carreira contributiva.

Quem tem uma pensão que resulta do último vencimento deve pagar a taxa máxima da nova contribuição de sustentabilidade. Nos casos em que a reforma decorre de toda a carreira contributiva idealmente deveria pagar zero desta taxa suplementar.

As reformas antecipadas, pedidas há muito, também deveriam ser alinhadas com as actuais condições. Quem não teve nenhuma penalização deverá ter agora a taxa máxima desta nova contribuição. Quem já teve a penalização actualmente em vigor não deve ter que contribuir mais.


Para as pensões acima dos 2500€, que abrangem apenas 3,1% dos pensionistas, dever-se-ia criar mesmo uma taxa extraordinária, temporária, enquanto a taxa de desemprego permanecer acima dos 15%. As receitas desta taxa extraordinária deveriam destinar-se exclusivamente a apoiar os desempregados de longa duração que neste momento deixaram de receber qualquer tipo de ajuda pública. 

[publicado no i, a 15 Maio 2013]

Ameaças do governo

Ao ameaçar com a saída do euro, o governo poderá ter resultados contraproducentes

A 30 de Abril, o ministério das Finanças publicou o Documento de Estratégia Orçamental 2013–2017, de que transcrevo um excerto (p. v): “A alternativa de regressar a comportamentos passados implica, numa versão mais radical, a bancarrota e a saída do euro.”
Posteriormente, o primeiro-ministro reforçou esta ameaça de duas formas. Em primeiro lugar, avisando que a saída do euro traria consigo uma desvalorização da moeda entre 30% e 35% e uma concomitante perda de poder de compra. Em segundo lugar, Passos Coelho salientou que, mesmo depois da troika sair do país, o caminho a percorrer continuará a ser muito estreito.
Não me parece que a ameaça seja a atitude mais feliz que um primeiro-ministro possa ter e também duvido que ela seja eficaz para fazer aprovar as medidas necessárias. Quererá chegar ao consenso através da ameaça? O governo deveria tentar usar um especialista em inteligência emocional para comunicar.
Gostaria de fazer aqui um parêntesis sobre uma das medidas concretas, a redução de 30 mil efectivos, a conseguir através de rescisões por mútuo acordo e do novo Sistema de Requalificação da Administração Pública. Não é esclarecida quantos trabalhadores sairiam da função por mútuo acordo, mas quem é que no seu perfeito juízo vai sair agora, quando o desemprego regista máximos sucessivos? Ainda por cima quando os apoios no desemprego são mal esclarecidos.
A marcação de posição de Paulo Portas é algo que, por um lado, se saúda, pela clarificação que traz em relação a todos os rumores que circulavam de fortes tensões dentro do governo e da coligação. Mas, por outro lado, é imperioso reconhecer que esta posição é pura demagogia, já que não apresenta qualquer tipo de remédio alternativo.
Voltando à ameaça do governo, o fim do euro permaneceu, durante longo tempo, um grande tabu, de discussão proibida.
Ainda antes da criação do euro, houve várias vozes que apontaram para o previsível fracasso deste projecto europeu. A resposta oficial inicial era a de que falar no fim do euro era uma impossibilidade, legalmente estabelecida e equivalente a imaginar elefantes a voar.
Desde que a crise do euro se iniciou, em 2009, iniciou-se uma segunda fase da quebra do tabu do fim do euro, dominado por autores de fora da zona do euro.
Uma terceira fase, com início incerto, corresponde à dos economistas de países da zona do euro a falarem sobre esta possibilidade ou, mesmo, desta inevitabilidade. Aí tentou-se proibir de pensar e de falar, com medo das suas consequências.
A quarta fase, que vivemos presentemente, corresponde à circunstância de este tema passar a fazer parte do discurso oficial de vários Estados-Membros do euro. O governo português pisou agora este risco.
Parece que o governo imagina que a ameaça é tão terrível, que irá levar todos a aceitar tudo. Pois a leitura que faço é radicalmente diferente. Por um lado, o executivo afirma que a saída do euro está muito longe de ser uma impossibilidade e bem próxima de ser possível. Por outro lado, dado que a margem para errar, mesmo depois da saída da troika, é muito limitada e, acrescento eu, a experiência recente tem sido a de erros sucessivos, mesmo do actual governo, então a saída do euro acaba por ser a hipótese mais provável.
Se sair do euro é o mais provável, muito poderão pensar: para quê aceitar medidas draconianas se elas não servem para impedir o inevitável?
Assim, ao invés de conseguir o acordo de todos, o governo poderá estar a criar o máximo de oposição. Para além disso, pode bem desencadear uma fuga de depósitos, com o receio da tal desvalorização de que o primeiro-ministro falou, acelerando o próprio processo de saída do euro.

Já agora, por uma questão de coerência, se o governo acha que a saída do euro está em cima da mesa, então deveria tomar medidas de cautela básicas, nomeadamente mandando imprimir notas e cunhar moedas para a eventualidade de voltarmos para o escudo.

 [publicado no i, a 8 Maio 2013]

Saída da Alemanha do euro?

A saída da Alemanha do euro não garantirá a sobrevivência desta moeda, será apenas a forma menos dolorosa de a desagregar

George Soros, o especulador financeiro tornado filantropo, veio sugerir recentemente (9 de Abril, na Universidade Goethe, em Frankfurt) que a Alemanha deve escolher entre aceitar a criação de euroobrigações ou sair do euro.
Logo surgiram em Portugal vozes entusiásticas, preferindo claramente a segunda opção, já que a primeira parece quase impossível. Na sua candura, pensarão que a saída da Alemanha nos libertará do jugo a que temos estado submetidos e que teremos a total liberdade de gerar todas as soluções possíveis e imaginárias para o euro.
Antes de mais, é preciso dizer que a ideia da saída da Alemanha do euro está longe de ser mirabolante, tendo já gerado a criação de um novo partido político neste país, Alternativa para a Alemanha, com dirigentes muito prestigiados, que defendem a abolição do euro. Segundo as sondagens, cerca de um quarto dos eleitores poderá votar num partido que defenda a saída do país da zona do euro.
Em seguida, é preciso dizer que a saída da Alemanha é a solução ideal para o fim do euro. Ao retirar-se, este Estado assumiria automaticamente muitas perdas devido à forte apreciação do novo marco alemão face a um euro muito enfraquecido. A depreciação do euro resolveria os problemas de competitividade dos países periféricos e o retorno às suas moedas nacionais poderia fazer-se sem grandes rupturas.
Porque é que a saída da Alemanha não ajuda à sobrevivência do euro? É que se se colocasse a França a fazer o actual papel da Alemanha, de grande contribuinte, a França comportar-se-ia de forma muito semelhante à Alemanha.
Pode-se dizer que a França é diferente da Alemanha, pelo que agiria de forma diferente. Em primeiro lugar, gostaria de relembrar os sonhos imperiais napoleónicos e, nessa linha, a atitude de grande prepotência que este Estado tem tido ao longo da construção europeia.
Em segundo lugar, gostaria de chamar a atenção que a Alemanha sempre se mostrou extremamente disponível para pagar as mais variadas facturas, devido à sua má consciência pelas duas guerras em que mergulhou a Europa, em especial a segunda, pelos excessos então cometidos.
Em contrapartida, a França sempre tentou limitar a sua contribuição líquida para o orçamento comunitário, tendo impedido até hoje uma reforma racional na Política Agrícola Comum (PAC), da qual beneficia de forma despudorada.
Ou seja, seria deixar de ter como contribuintes, para os problemas do euro, aqueles que já estão mais habituados, para passar a depender de um país que não está habituado e onde o clima político não é de todo favorável a isso. Imagine-se o sucesso que o Front National, de Marine Le Pen, teria ao opor-se a que França contribua para os estrangeiros…
Após a saída da Alemanha, com esse exemplo e essa desculpa, a França também sairia muito rapidamente do euro. E, após a saída deste Estado, teríamos saídas sucessivas de outros países, degradando progressivamente a qualidade desta moeda, que gerariam novas saídas até à desagregação final do euro.
No limite, até se poderia dar a ironia de a Grécia ficar sozinha no euro.

Que não haja grandes ilusões: a saída da Alemanha do euro nunca será uma solução para a sobrevivência do euro, mas pode ser o primeiro passo para a melhor forma de acabar com a crise do euro, que é acabar com esta moeda.

 [publicado no i, a 1 Maio 2013]

A Alemanha vai pagar?

Há quem acredite que a Alemanha pagará todos os custos do euro, mas neste país prefere-se “um fim com horror a um horror sem fim”

No meio da crise do euro há quem acredite que, consciente da gravidade das consequências da desagregação do euro, a classe política alemã irá convencer o seu eleitorado a pagar tudo e mais um par de botas para garantir a sobrevivência do euro. Será?
Estes crentes até se poderão basear na experiência passada do chanceler Helmut Kohl, que praticamente conseguiu “impor” o euro aos seus compatriotas que, desde o início, abominaram a ideia de prescindir do seu querido “deutsche mark”, um dos pilares da sua frágil identidade do pós-guerra.
Esta ideia de que, no final, a Alemanha pagará todas as contas tem alguns problemas graves. Em primeiro lugar, a classe política germânica tem andado a enganar os seus eleitores sobre as facturas que os esperam e aquelas que até já estão a pagar. O perdão encapotado da dívida grega é um dos exemplos de factura actual escondida e várias outras ainda os aguardam.
Em segundo lugar, a táctica que tem sido usada nesta camuflagem tem sido o adiamento sucessivo do reconhecimento dos problemas. Só que este adiamento tem tido como consequência inevitável o agravamento brutal das facturas a pagar.
Não estamos numa mera situação de compra de tempo, em que se tenta criar a aceitação pelos eleitores alemães da necessidade de contribuir para a estabilidade do euro e da Europa. Não se está apenas a adiar o confronto com a realidade, porque o próprio adiamento está a agravar de forma muito significativa a própria realidade com que se terão de confrontar no futuro.
Por isso, é altamente provável que estejamos a enveredar por um caminho instável, com fortes probabilidades de ruptura. Uma factura elevada mas limitada poderia ser digerível, mas uma factura cada vez maior e descontrolada muito provavelmente deixará de ser tragável.
Existe, aliás, um ditado alemão que diz que “é melhor um fim com horror a um horror sem fim”.
Há mais de vinte anos que os contribuintes da antiga RFA estão a pagar a reunificação com a Alemanha de Leste e existe um enorme cansaço em relação a isto, ainda que exista uma natural solidariedade e identificação com os alemães de Leste, donde, não podemos esquecer, a chanceler Angela Merkel é oriunda.
Mas temos visto, por toda a Europa, os mais variados protestos de zonas ricas de certos países a não quererem mais subsidiar as zonas mais pobres desses mesmos países. Em Espanha, a Catalunha tem-se destacado nesses protestos. Se a solidariedade está a fraquejar dentro de países que partilham séculos de história, como esperar que ela se mantenham entre países com laços tão fracos, como é o caso da relação da Alemanha com a generalidade dos Estados periféricos?
Para além de tudo isto, é preciso não esquecer que a Alemanha não seria o único contribuinte líquido das facturas presentes e futuras, havendo um conjunto de outros países, tais como a Holanda e a Finlândia, que não têm – nem de longe – a consciência pesada pela II Guerra Mundial como os alemães, pelo que não terão um incentivo tão a forte a pagar as contas do euro. A Finlândia, em particular, é o único país escandinavo no euro e só tem sofrido com isso.

Finalmente, é uma ilusão completa pensar que a crise do euro se está a desenrolar de forma controlada e que há líderes europeus ou outros que têm poder para domesticar esta realidade. O que se passou em Chipre tem que ser encarado como um sinal preocupante da tremenda falta de preparação com que a crise está a ser gerida. O prolongar da indefinição italiana também só pode constituir motivo de inquietação. Por tudo isto, desenganem-se os que pensam que o eleitorado alemão poderá ser domado por líderes políticos prescientes, quando tudo estiver a arder.

 [publicado no i, a 24 Abril 2013]

Pedido ao BCE

O BCE tem um mandato muito estrito, a estabilidade de preços, mas tem feito uma leitura excessivamente restritiva do seu papel. É certo que não tem que se preocupar – explicitamente – com o pleno emprego, como a Reserva Federal dos EUA, mas não poderia fazer mais pela retoma europeia?
Dado o enorme desfasamento da política monetária, não se compreende o adiamento sucessivo da descida das taxas de juro de referência.
Para além daquilo que o BCE pode fazer directamente, há também aquilo que poderia fazer em termos de aconselhamento aos actores políticos, em dois planos, o conjuntural e o da arquitectura do euro. O euro está em risco em ambos estes planos e não parece exagerado pedir ao BCE que ajude a garantir as condições de sobrevivência da moeda da qual é emissor.
O clima recessivo que se vive na zona do euro tem todas as condições para criar graves problemas nos países periféricos, que podem desencadear um efeito dominó de consequências catastróficas. Os níveis elevados e crescentes de desemprego arriscam-se a ter não só consequências económicas, mas também políticas.
No plano conjuntural, o BCE poderia instar os países com condições para isso, em particular a Alemanha, a adoptar políticas orçamentais expansionistas, que poderiam melhorar as condições económicas em toda a área do euro.
No plano da arquitectura do euro, esta moeda está longíssimo de preencher os requisitos de uma área monetária óptima e, por isso mesmo, corre sérios riscos de não sobreviver a prazo.
Neste plano, o BCE deveria ser um advogado muito mais vigoroso da criação das condições de transformação do euro numa área monetária óptima. Em particular deveria pugnar pela melhoria dos mercados de trabalho e pela criação de um verdadeiro orçamento federal.
Em termos do mercado de trabalho, é necessária maior flexibilidade dentro de cada país e uma maior mobilidade dentro do conjunto da zona do euro.
Em termos de um verdadeiro orçamento federal, é necessário caminhar, quer se queira quer não, para uma união de transferências.
Dir-me-ão que os pedidos que faço são irrealistas, ideia com a qual concordo. Mas se o BCE colocar, de forma claríssima, em cima da mesa, as condições de sobrevivência do euro e estas se revelarem totalmente impraticáveis, então isso obriga a passar o debate para outro plano.
Se criar as condições de sucesso do euro é politicamente impossível, então o seu fim é inevitável a prazo e devemos deixar-mo-nos de “paninhos quentes” e passar a discutir as condições de desagregação ordenada do euro.

Se o BCE confrontar os líderes políticos com as suas responsabilidades ainda poderemos ter algumas surpresas positivas. De outro modo, caminharemos inexoravelmente para a catástrofe final, desencadeando um tsunami financeiro de proporções bíblicas, com gravíssimas consequências políticas, a nível da própria UE.

 [publicado no Jornal de Negócios, a 18 Abril 2013]

Herança liberal

Ainda que não o desejasse, Thatcher ajudou a criar as bases da actual crise global

A ideologia sobre as políticas públicas tende a oscilar entre dois polos: o Estado e o mercado. A partir dos anos 30 do século passado, o pêndulo estava claramente do lado do Estado, com uma clara preferência por políticas intervencionistas.
Nos anos 70 deu-se uma clara alteração deste estado de coisas, primeiro com os fracassos económicos do intervencionismo, com o surgimento da estagflação: inflação e desemprego elevados; depois com a valorização dos teóricos liberais, como Hayek e Friedman, prémios Nobel da economia em 1974 e 1976, respectivamente; e, finalmente, com a ascensão ao poder de políticos liberais, como Thatcher e Reagan, em 1979 e 1981, respectivamente.
Thatcher lançou um programa de liberalização da economia, com privatizações maciças, que acabaram por contagiar a generalidade dos países, para além do contributo para a liberalização política, nomeadamente para a queda dos regimes comunistas.
Julgo que se deve elogiar a inovação empresarial versus uma demasiado frequente inércia burocrática do Estado. Por outro lado, se as empresas se desviam do bem comum, que nem é o seu propósito central, é também vulgar isso acontecer no Estado, onde o bem estar geral deveria ser acautelado.
Mas a vitória política – relativa – liberal, dos mercados sobre o Estado, encerra em si uma dura ironia.
É que há várias estruturas de mercado possíveis, desde o extremo da concorrência perfeita, passando pelos oligopólios (mercados com poucas empresas, com poder de influenciar os preços), até ao outro extremo, o monopólio, onde o poder de mercado é máximo.
Do ponto de vista teórico, os mercados de concorrência perfeita apresentam vantagens admiráveis, por produzirem os resultados mais eficientes e por serem os mais equitativos. Já os mercados em oligopólio e monopólio são muito menos interessantes, por produzirem ineficiências e graves problemas de equidade.
Ou seja, a defesa do “mercado” só faz verdadeiramente sentido quando falamos de mercados de concorrência perfeita ou perto disso, já que nos outros casos é necessária uma forte intervenção do Estado (que só em teoria é que funciona bem), para minorar as sérias deficiências que as outras estruturas de mercado encerram.
Há aqui dois problemas. Por um lado, a sofisticação das economias e dos produtos afasta-nos cada vez mais do paradigma da concorrência perfeita. Por outro, deixadas a si próprias, as empresas farão tudo para se desviarem da concorrência perfeita, onde os lucros são mínimos.
Assim, deixados a si próprios, os mercados tenderão, naturalmente, a produzir os piores resultados, o mais afastados possível do caso em que os mercados produzem as consequências socialmente mais interessantes (em concorrência perfeita).
Gerou-se então um grave equívoco, que designei de “dura ironia”, em que, quanto mais se defende a liberdade dos mercados (a menor intervenção pública possível), mais nos afastamos das vantagens dos mercados.
O cúmulo desta “dura ironia” ocorreu com a liberalização financeira da primeira década do século XXI. Ao permitir a criação de um sistema financeiro e bancário “sombra”, sujeito a uma regulamentação mínima, permitiram-se os maiores desmandos, que deram origem à crise financeira iniciada em 2007, que colocou o mundo na mais grave crise económica desde a Grande Depressão, iniciada em 1929.
O sucesso político do liberalismo não só trouxe esta grande crise, como trouxe mudanças profundas em termos sociais, com uma profunda alteração dos valores sociais. Uma das mais graves foi a transformação da ganância numa virtude, uma das novidades mais lamentáveis.
O mundo não pára e, havendo muitos aspectos interessantes a reter do liberalismo, há também muitas correcções a fazer. 

[publicado no i, a 17 Abril 2013]

Ajustamento “temporário”?

Todos os orçamentos das próximas décadas podem-se dividir em duas categorias: os quase impossíveis e os dificílimos

Os tribunais comuns e mesmo os especializados precisam de assessoria sobre matérias não jurídicas mas, infelizmente, é raro recorrerem a elas. O Tribunal Constitucional (TC), perante a avaliação do orçamento de 2013, também deveria ter pedido auxílio sobre economia e contas públicas, para decidir melhor.
O TC pareceu estar alheado do enquadramento económico e financeiro em que o país está, mas teve o cuidado de anunciar a sua decisão, na sexta-feira ao final da tarde, depois dos mercados financeiros terem fechado. Esta escolha revelou-se duplamente sensata. Por um lado, salvou o tribunal de ser o responsável por uma subida imediata das taxas de juro, o que tornaria evidente para todos as consequências das suas decisões. Por outro, deu tempo ao governo para reagir, que este aproveitou.
Ou seja, a reacção de segunda-feira nos mercados já foi um misto da novidade do acórdão do TC, com a resposta do governo de encontrar alternativas sem recorrer à subida de impostos. Atendendo à subida moderada das taxas de juro da dívida portuguesa pode-se dizer que, para já, o governo mantém a confiança dos mercados, aguardando-se que medidas concretas irá propor e como estas serão avaliadas pela troika.
Deve dizer-se que o TC parece não se dar bem com cortes dos salários nominais. Mas cortes de salários reais muitíssimo maiores foram perfeitamente constitucionais em 1978 e 1983 quando Portugal teve de recorrer ao FMI. Portanto parece que a nossa Constituição só se dá bem em períodos com a inflação elevada. Parece que não podemos corrigir as nossas contas públicas sem inflação e dento do euro. As medidas que foram constitucionais em 1978 e 1983 agora não o são. Só serão constitucionais se Portugal sair do euro? Portanto, em certo sentido, o risco é o de que se não conseguirmos reduzir as contas públicas e cumprir o Memorando vamos entrar em bancarrota e ser forçados a sair do euro, o que seria perfeitamente conforme a Constituição.
Uma das ideias do TC que mais choca é a ideia, repetida, de que os cortes podem ser temporários, devendo o executivo procurar alternativas entretanto. Mas que alternativas? Despedimentos em massa na função pública?
Em relação a esta fantasia de que estamos perante um problema temporário, é preciso salientar, em primeiro lugar, que ainda faltam muitos anos até conseguirmos baixar o défice para níveis claramente inferiores a 3% do PIB. A experiência recente, de sucessivos adiamentos desta meta, sugere que ainda haverá novos adiamentos, não só devido à conjuntura portuguesa, mas também devido às dificuldades da economia europeia, destino destacado das nossas exportações.
Em segundo lugar, o nível elevadíssimo de dívida pública que acumulámos até aqui (mais de 120% do PIB) vai colocar uma pressão brutal sobre as contas públicas durante as próximas décadas, em que qualquer desvio, infelizmente demasiado provável, corre o risco de a tornar insustentável.
Em terceiro lugar, os compromissos com as PPP constituem uma dívida pública “sombra”, a somar à dívida directa, agravando os riscos já referidos.
Em quarto lugar, Portugal está a sofrer um dos mais rápidos processos de envelhecimento da população, fenómeno que não tem fim à vista. Este envelhecimento coloca uma pressão esmagadora sobre as contas públicas por duas vias: pelos encargos com a saúde, agravados pelos progressos tecnológicos; e pelos encargos com as pensões, que terão que sofrer reformas profundas e drásticas.

Assim, todos os orçamentos das próximas décadas podem-se dividir em duas categorias: os quase impossíveis e os dificílimos. É favor acabar com a fantasia de que estamos a passar por uma dificuldade temporária.

[publicado no i, a 10 Abril 2013]

O poder natural da Alemanha

A Alemanha foi forçada a aderir ao euro e adquiriu imenso poder, quase contra a sua vontade

A UE foi construída para garantir a paz na Europa, mas também para conter a Alemanha, que iniciou as duas guerras mundiais. Com a queda do muro de Berlim em 1989, abriu-se o caminho para a reunificação alemã, que teve lugar no ano seguinte.
No entanto, aquele processo de engrandecimento veio gerar uma enorme preocupação junto dos seus parceiros comunitários, que quase o tentaram impedir. A forma de contornar a questão foi forçar a Alemanha a aceitar ceder o marco alemão e trocá-lo pelo euro.
Dada a evolução histórica, em que a Alemanha passou a dominar decisivamente o euro e, em grande medida, a UE, já muita gente esqueceu o início deste processo. Há imensa gente que está firmemente convencida que o euro foi uma ideia germânica, para dominar a Europa. Mas a origem da moeda única é exactamente a oposta: o euro foi criado para impedir que a Alemanha ficasse com demasiado poder e foi dificílimo conseguir que o eleitorado alemão prescindisse do seu marco, um símbolo decisivo do pós-guerra germânico.
Mas então, o que fez que a Alemanha adquirisse tanto poder dentro da UE e do euro?
Ainda antes da reunificação, a Alemanha já tinha a maior economia da UE. Com a reunificação, distanciou-se ainda mais da dimensão dos maiores países da UE.
A Alemanha é o maior contribuinte líquido para o orçamento comunitário por duas razões. Desde logo por ser a maior economia e fazer parte do grupo dos mais ricos. Por outro lado, por não ter nenhuma especificidade que a leve a diminuir esta contribuição.
O Reino Unido, desde o tempo de Margaret Thatcher, negociou receber de volta o “cheque britânico”, que lhe limita claramente a contribuição. A França, é o maior beneficiário da Política Agrícola Comum (PAC), a cuja reforma se tem oposto de forma escandalosa. A Alemanha, muito provavelmente devido à sua má consciência em relação à II Guerra Mundial, não tem regateado a sua generosa contribuição financeira para as contas comunitárias.
De novo por força da sua dimensão económica, a Alemanha é também o maior contribuinte para o financiamento dos resgates a todos os países que já solicitaram ajuda durante o período da crise do euro. Como já alguém disse “quem paga, manda”.
Uma das imagens de marca do “milagre alemão” do pós-guerra é o seu sucesso exportador, que gerou continuados superavits externos. Esta característica foi interrompida nos anos 90, fruto da enorme despesa realizada com a reunificação, mas foi recuperada no início do século XXI.
Dentro do euro, este superavit externo fez com que o Bundesbank passasse a ser o grande credor dos bancos centrais dos países periféricos, quase todos eles com graves défices de contas externas.
A condição de grande credor confere-lhe, obviamente, não só um grande interesse como um grande poder sobre os países devedores, que foram acumulando dívidas externas gigantescas, com destaque para o caso da Grécia e de Portugal.
Um dos mais claros sucessos da Alemanha do pós-guerra foi a sua capacidade de gerar, em simultâneo, uma das inflações mais baixas da Europa e superavits externos significativos e continuados.
Este sucesso produziu uma sustentada apreciação do marco alemão face à generalidade das moedas europeias durante todo o pós-guerra e uma enorme credibilidade monetária deste Estado.
Em resultado de tudo isto, a Alemanha conquistou o estatuto de “país refúgio” dentro da zona do euro. Isto criou uma procura extraordinária de activos alemães, em particular de dívida pública, que este país chegou a conseguir colocar a taxas de juro nominais negativas.

Todas estas razões conferem à Alemanha um poder natural dentro do euro. Para além deste poder natural existem mais duas razões, de outra natureza, que aumentam o poder germânico. A primeira é que este país foi forçado a aderir ao euro e exigiu como contrapartida que a nova moeda fosse desenhada à imagem e semelhança do marco alemão. Assim, qualquer desvio do traçado inicial conhecerá uma fortíssima oposição alemã. A segunda razão é que ao eleitorado alemão foi garantido que nunca teriam que pagar as dívidas de outros e é isto que justifica muita da intransigência de Merkel.

[publicado no i, a 3 Abril 2013]