sexta-feira, 24 de maio de 2013

O poder natural da Alemanha

A Alemanha foi forçada a aderir ao euro e adquiriu imenso poder, quase contra a sua vontade

A UE foi construída para garantir a paz na Europa, mas também para conter a Alemanha, que iniciou as duas guerras mundiais. Com a queda do muro de Berlim em 1989, abriu-se o caminho para a reunificação alemã, que teve lugar no ano seguinte.
No entanto, aquele processo de engrandecimento veio gerar uma enorme preocupação junto dos seus parceiros comunitários, que quase o tentaram impedir. A forma de contornar a questão foi forçar a Alemanha a aceitar ceder o marco alemão e trocá-lo pelo euro.
Dada a evolução histórica, em que a Alemanha passou a dominar decisivamente o euro e, em grande medida, a UE, já muita gente esqueceu o início deste processo. Há imensa gente que está firmemente convencida que o euro foi uma ideia germânica, para dominar a Europa. Mas a origem da moeda única é exactamente a oposta: o euro foi criado para impedir que a Alemanha ficasse com demasiado poder e foi dificílimo conseguir que o eleitorado alemão prescindisse do seu marco, um símbolo decisivo do pós-guerra germânico.
Mas então, o que fez que a Alemanha adquirisse tanto poder dentro da UE e do euro?
Ainda antes da reunificação, a Alemanha já tinha a maior economia da UE. Com a reunificação, distanciou-se ainda mais da dimensão dos maiores países da UE.
A Alemanha é o maior contribuinte líquido para o orçamento comunitário por duas razões. Desde logo por ser a maior economia e fazer parte do grupo dos mais ricos. Por outro lado, por não ter nenhuma especificidade que a leve a diminuir esta contribuição.
O Reino Unido, desde o tempo de Margaret Thatcher, negociou receber de volta o “cheque britânico”, que lhe limita claramente a contribuição. A França, é o maior beneficiário da Política Agrícola Comum (PAC), a cuja reforma se tem oposto de forma escandalosa. A Alemanha, muito provavelmente devido à sua má consciência em relação à II Guerra Mundial, não tem regateado a sua generosa contribuição financeira para as contas comunitárias.
De novo por força da sua dimensão económica, a Alemanha é também o maior contribuinte para o financiamento dos resgates a todos os países que já solicitaram ajuda durante o período da crise do euro. Como já alguém disse “quem paga, manda”.
Uma das imagens de marca do “milagre alemão” do pós-guerra é o seu sucesso exportador, que gerou continuados superavits externos. Esta característica foi interrompida nos anos 90, fruto da enorme despesa realizada com a reunificação, mas foi recuperada no início do século XXI.
Dentro do euro, este superavit externo fez com que o Bundesbank passasse a ser o grande credor dos bancos centrais dos países periféricos, quase todos eles com graves défices de contas externas.
A condição de grande credor confere-lhe, obviamente, não só um grande interesse como um grande poder sobre os países devedores, que foram acumulando dívidas externas gigantescas, com destaque para o caso da Grécia e de Portugal.
Um dos mais claros sucessos da Alemanha do pós-guerra foi a sua capacidade de gerar, em simultâneo, uma das inflações mais baixas da Europa e superavits externos significativos e continuados.
Este sucesso produziu uma sustentada apreciação do marco alemão face à generalidade das moedas europeias durante todo o pós-guerra e uma enorme credibilidade monetária deste Estado.
Em resultado de tudo isto, a Alemanha conquistou o estatuto de “país refúgio” dentro da zona do euro. Isto criou uma procura extraordinária de activos alemães, em particular de dívida pública, que este país chegou a conseguir colocar a taxas de juro nominais negativas.

Todas estas razões conferem à Alemanha um poder natural dentro do euro. Para além deste poder natural existem mais duas razões, de outra natureza, que aumentam o poder germânico. A primeira é que este país foi forçado a aderir ao euro e exigiu como contrapartida que a nova moeda fosse desenhada à imagem e semelhança do marco alemão. Assim, qualquer desvio do traçado inicial conhecerá uma fortíssima oposição alemã. A segunda razão é que ao eleitorado alemão foi garantido que nunca teriam que pagar as dívidas de outros e é isto que justifica muita da intransigência de Merkel.

[publicado no i, a 3 Abril 2013]

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