segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Os custos de mentir

O governo poderia ter a sorte de estar a passar um bom momento, se não estivesse tão empenhado em esconder mentiras

Um ex-primeiro-ministro inglês disse que, em política, muitas vezes o mais difícil era ultrapassar os casos do quotidiano. Em Portugal, parece que estamos perante uma situação destas, em torno da contratação abortada de António Domingues para a CGD.

Dado que este gestor já não está no banco público, esta polémica já deveria ter terminado há muito, não fosse o facto dos vários políticos envolvidos terem mentido e persistirem numa teimosia incompreensível em reconhecer que faltaram à verdade. Isso é o mais irónico de tudo: se já tivessem reconhecido que erraram e pedissem desculpa, o caso morria.

Entretanto, todos se vão fragilizando mutuamente, Centeno, Costa e Marcelo, em clara fuga para a frente, sem um pingo de racionalidade. Parece que todos são partidários do preconceito – absurdo – de que em política não se deve reconhecer erros nem pedir desculpa. Mas quem pode confiar em pessoas e instituições que não reconhecem erros? Quem não os reconhece, nunca os corrigirá e pode dar-se a grande trabalho para os esconder, com enormes prejuízos para todos. No plano pessoal, quando recebemos um pedido de desculpas sincero de um amigo, isso não melhora imensa a qualidade da relação? Porque é que na política não se deveria passar o mesmo?

Se não estivesse enredado nesta trama, que o próprio governo criou e tem alimentado, até se poderia vangloriar de algumas boas notícias, nem todas inteiramente positivas, nem da responsabilidade do executivo. Mas, como mestres de propaganda, poderiam estar atirar grande partido destas novidades.

O défice público de 2,1% do PIB é o mais baixo de há muito tempo a esta parte, embora tenha muitos efeitos extraordinários e esteja associado a um aumento da dívida pública.

O PIB acelerou para 1,9% no 4º trimestre, o valor mais elevado dos últimos três anos, o que permitiria ao executivo vangloriar-se deste feito. Sem razão, porque, aparentemente, isto se deve às exportações, que foram menorizadas, e a procura interna, que deveria ser o motor do crescimento, na perspectiva do governo, desapontou, sobretudo numa das suas componentes mais importantes, o investimento. Aliás, desde 2012 que o investimento está abaixo do mínimo necessário para compensar o desgaste do stock de capital (edifícios, máquinas e equipamentos, veículos profissionais, etc.).  

O ano de 2016 também fechou com um excedente nas contas externas de 1,8% do PIB, que o governo poderia vitoriar como sendo superior aos 1,2% do PIB do ano anterior, embora na verdade seja inferior ao valor de 2013. Para além disso, o bom comportamento das exportações, sobretudo do turismo, é independente do executivo, que não as considerava importantes.

Há certamente más notícias, sobretudo nas taxas de juro, com os investidores muito mais nervosos com a situação portuguesa, do que com a espanhola ou italiana, mas parece que a generalidade da população não se apercebe disso.

Em resumo, se o governo não se tivesse envolvido nesta comédia de enganos, até poderia estar a passar um bom bocado.


[Publicado no jornal online ECO]

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Interesse nacional

Invocar o interesse nacional é inteiramente legítimo quando estão em causa políticas insustentáveis, corruptas ou contraproducentes.

O Nuno Garoupa escreveu um artigo interessante sobre “Governar com ideologia”, onde conclui que “Em política, socorrer-se do interesse nacional ou do realismo contra a ideologia é fugir ao saudável combate das ideias. Mas, acima de tudo, é insistir num discurso pouco democrático.”

Do ponto de vista teórico, esta última ideia é perfeitamente defensável, embora perpasse a ideia de que quase seria condenável invocar o interesse nacional no debate político. Ora, na prática, há um conjunto de circunstâncias em que me parece não só legítimo mas também essencial invocar o interesse nacional ao criticar certas opções políticas.

Vejamos então alguns exemplos, altamente relevantes no caso português nos últimos anos: políticas insustentáveis, corruptas, contraproducentes e desonestidades contabilísticas. Se uma política é insustentável, ela produz alguns resultados a curto prazo, com benefícios políticos imediatos para o governo que as executa, mas é claramente contrária ao interesse nacional já que, quando a sua insustentabilidade é finalmente reconhecida, é o país que tem que pagar a factura, geralmente com juros draconianos.

Os dois casos portugueses mais flagrantes deste tipo são: 1) a política baseada na procura interna, aplicada entre 1995 e 2011, que conduziu a uma estagnação económica e a uma explosão da dívida externa, de 8% para mais de 100% do PIB; 2) a estratégia económica idêntica encetada em 2015, cujos resultados ainda não são claros, mas que se deverão revelar bem gravosos dentro de algum tempo, sendo já visíveis no comportamento das taxas de juro da dívida pública, muito pior do as verificadas em Espanha e Itália.

Em relação a políticas corruptas, elas agravam a situação nacional, para beneficiarem os partidos no governo que as aplicam, de novo flagrantemente contrárias ao interesse nacional. Aqui, temos os casos de muitos contratos assinados pelos diferentes governos, envolvendo a garantia de rentabilidades absurdamente elevadas aos privados (muito superiores à taxa de juro da dívida pública), contra o interesse dos contribuintes. Se isto não é contrário ao interesse nacional, o que é?

As políticas contraproducentes dizem-se defender um determinado objectivo, mas acabam por ter o resultado oposto. Como julgo ter demonstrado de forma cabal aqui, a ideia de restruturar a dívida para diminuir os encargos com juros, irá, com enorme probabilidade, aumentar esses mesmos custos. Isto, é ou não é, o maior erro contra o interesse nacional?

As desonestidades contabilísticas, quando são descobertas, diminuem fortemente a reputação do país, afastando investidores, dificultando o acesso ao crédito e o seu preço, gerando assim desemprego e prejudicando as contas públicas. Já tivemos dois casos destes:1) em 2002, quando as contas públicas de 2001 se revelaram uma fraude gigantesca; 2) as contas públicas de 2009 e 2010, cujo descontrolo, escondido até ao fim, acabou por resultar num Memorando com a troika com um caracter punitivo.

Em resumo, o caso português está repleto de exemplos dos últimos anos em que invocar o interesse nacional era totalmente legítimo no debate político. Para além destes exemplos servirem para constatar que Portugal tem sido governado de forma inacreditavelmente má neste período, com uma ligeira excepção durante o período da troika, mas que também não foi grande coisa, porque o PSD e o CDS não se prepararam para governar, como também – infelizmente – não o estão agora a fazer.


[Publicado no jornal online ECO]

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Acordar as elites

Ao contrário da generalidade dos países europeus, Portugal tem estado estagnado nos últimos 16 anos, mas nem as elites nem o cidadão comum parecem ter interiorizado isto.

Se olharmos para o conjunto dos últimos 16 anos, verificamos que Portugal foi um dos países que menos cresceu na UE, quando deveria ter crescido acima da média, porque se deveria estar a aproximar do rendimento médio europeu. Se não estamos a convergir é porque algo de muito errado se passa no nosso país. Este problema é tão grave, estranho, raro e já dura há tanto tempo, que é profundamente chocante que as nossas elites ainda não o tenham interiorizado.

Crescimento acumulado do PIB, 2000-2015

[ver gráfico no link]
Fonte: AMECO

O problema começa por ser grave porque um fraco crescimento coloca tudo em causa: o emprego, os salários, o poder de compra dos portugueses, a sustentabilidade do Estado social, as finanças públicas, etc. Portugal cresceu pouco mais de um décimo da média da UE, em termos acumulados, o que dá uma ideia do abismo que nos separa dos outros.

Depois, é estranho, porque, em princípio, deveríamos estar a convergir para a média comunitária porque partilhamos muita legislação, uma mesma moeda e até recebemos um montante significativo de fundos comunitários justamente para convergir.

É raro, porque só a Grécia está numa posição pior do que a nossa e isto apenas a partir da crise do euro, desde 2010, já que anteriormente, ao contrário de Portugal, estava a convergir para a média. O outro caso de um país pior do que o nosso, a Itália, é diferente, porque eles já atingiram a média europeia, pelo que a pressão para convergir para a média já deixou de funcionar, o que não impede o problema de também ser grave para eles.

Finalmente, esta “doença” já dura há 16 anos, pelo que é impressionante como é que ainda não foi assumida pelas nossas elites e também pelos portugueses em geral.

Por seu turno, esta falta de consciência das elites tem dois grupos de consequências extremamente graves. Por um lado, porque permite a apresentação de propostas políticas supostamente “alternativas” e, por isso mesmo, saudáveis no debate político, quando não passam de pura fraude. Tentar reverter normas que vigoraram durante um período em que Portugal fracassou completamente, quer pela ausência de resultados, quer pela insustentabilidade, que se distingue pela explosão do endividamento externo, que passou de 8% em 1995 para mais de 100% do PIB, a partir de 2009, é absurdo.

Por outro lado, isto bloqueia a aprovação de medidas estruturais essenciais para sairmos do buraco em que nos encontramos. Se as elites pensam que estamos apenas a viver um mau momento, por exclusiva influência europeia, qual a motivação para adoptar medidas completamente diferentes? Se estamos tão mal como todos os outros, porque razão haveríamos de adoptar medidas ousadas?

Por isto tudo, parece essencial acordar as elites portuguesas, para que não mais se possa ignorar este problema e o encaremos de frente.


[Publicado no jornal online ECO]

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Recuo da ordem liberal

Há dois séculos que o Reino Unido e os EUA lideram a ordem liberal e agora estão ambos a recuar, por medo.

No início do século XIX, havia no Reino Unido um debate político importante entre o comércio livre e o proteccionismo. Do lado do comércio livre, estava o economista David Ricardo (1772-1823), figura maior da ciência económica, que defendia, de forma contra-intuitiva, que as tarifas sobre a importação de cereais apenas serviam para aumentar o preço do pão e as rendas dos proprietários agrícolas e que prejudicavam a competitividade das exportações de têxteis.

Do lado proteccionista estavam os proprietários agrícolas, cujo poder relativo foi sendo erodido pela progressiva industrialização do país. Finalmente, na década de 1840 as tarifas sobre os cereais foram sendo diminuídas e o estatuto de primeira potência mundial do Reino Unido fez propagar as teses livre cambistas.

Esta segunda globalização (a primeira foi liderada pelos portugueses, nos séculos XV e XVI) durou até à primeira guerra mundial, momento aproximado em que os EUA passaram a ser a maior economia mundial. O período entre guerras foi de proteccionismo, seguindo-se a terceira globalização no pós-guerra, liderada pelos americanos. No final dos anos 70, a tendência liberal intensificou-se, sob a influência de Thatcher e Reagan, eleitos quase em simultâneo, baseada em sólidos pressupostos teóricos de, entre outros, Hayek (1899-1992).

Pois estes dois países, que têm liderado a agenda liberal nos últimos dois séculos, votaram, quase em simultâneo, no Brexit e em Trump, fazendo marcha atrás. No entanto, ao contrário do passado, não se movem baseados em forte e consistente ideologia, como anteriormente, mas sobretudo com medo do exterior. Nos EUA, o recuo da ordem liberal é de tal ordem, que até a liberdade de expressão parece posta em causa.

Há quem se iluda a pensar que isto vai unir a Europa, ignorando que as forças em acção no Reino Unido e nos EUA também estão com força crescente na Europa, como as próximas eleições em vários países europeus se encarregarão de mostrar, já a partir de Março na Holanda.

Trump está a tentar passar à prática aquilo que ameaçou fazer durante a campanha eleitoral, sendo ainda incerto até que ponto o sistema de pesos e contrapesos conseguirá moderar os impulsos mais irracionais e imprudentes do novo presidente.

Uma coisa parece evidente: os EUA deverão viver os próximos anos em clima de quase guerra civil, com uma grande escalada de violência, pelo menos verbal, de parte a parte. A hipótese de aventuras militares no exterior deve ser considerada, sendo de recordar a extrema inabilidade que os americanos têm revelado nos últimos casos em que se envolveram, a enorme incapacidade de prever as consequências das suas acções. Todo este poder (e falta de discernimento) nas mãos de Trump são hoje uma enorme fonte de incerteza para todo o mundo.

O Brexit e Trump não deverão gerar um novo ciclo, porque não têm uma base sólida. Eles deverão ser o fim – turbulento – de uma era, mas ainda não o início de algo novo.


[Publicado no jornal online ECO]