sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Os trabalhadores são os grandes esquecidos do PRR

 

Com a queda do muro de Berlim, deveríamos ter acordado para a necessidade de corrigir o nosso grave défice de qualificações, sobretudo em confronto com os países de Leste, nossos exigentes concorrentes.

 

Há quatro décadas que Portugal recebe fundos europeus (ainda antes de aderir à então CEE), e há mais de vinte anos que divergimos da Europa, caminhando para os últimos lugares das ordenações de desenvolvimento, prova evidente de que não os temos usado bem.

 

Este novo Programa de Resiliência e Recuperação (PRR) começa por se destacar, pela negativa, ao não fazer um diagnóstico minimamente correcto da situação portuguesa, ignorando esta divergência.

 

Para além disso, o governo português não gastou a despesa autorizada pela AR no orçamento aprovado ANTES da pandemia, quanto mais a despesa adicional prevista no orçamento rectificativo.

 

Isto reforça a ideia que parte dos fundos do PRR não servirão para somar aos fundos nacionais, mas antes para os substituir, o que poderá ser benéfico para o défice e dívida públicas, mas não necessariamente para o crescimento económico. Vejam-se os exemplos das rubricas “Equipamento dos Hospitais Seixal, Sintra, Lisboa” (196 M€) e “Aproveitamento hidráulico de fins múltiplos do Crato” (171 M€), entre outros.

 

No PRR, há um claro predomínio da despesa na administração pública, ainda por cima sem qualquer visão de reforma estrutural, que tão necessária é, já que o Estado tem estado quase sempre do lado dos problemas e quase nunca das soluções, o que permite antecipar que se pretende deitar dinheiro para cima das questões.

 

No entanto, entre o Estado e as empresas estão 4,5 milhões de trabalhadores que não trabalham no sector público, que são os grandes esquecidos deste PRR, em que a rubrica “Qualificações e Competências” absorve apenas 8% do total. Pior ainda, mais de metade desta verba está destinada a “Modernização da oferta e dos estabelecimentos de ensino e da formação profissional”, fazendo lembrar os erros da Parque Escolar, com investimento de luxo nuns estabelecimentos enquanto outros permanecem em risco de ruína; e em pensar que o problema da educação e formação se resolve com edifícios.

 

O que é especialmente grave neste esquecimento é que, há 31 anos, quando caiu o muro de Berlim, Portugal se viu confrontado com novos concorrentes, os países de Leste, que se distinguiam por estar muito mais próximo dos maiores mercados da UE e, sobretudo, por terem níveis de escolaridade e formação muito superiores aos portugueses. Nessa altura, deveríamos sentido um sobressalto cívico sobre a urgência de corrigir o nosso brutal défice de qualificação. Já passaram mais de três décadas e o país – e os governos – ainda andam a dormir, como é revelado pela desvalorização deste tema crucial no PRR.

 

Uma coisa é certa: os trabalhadores portugueses jamais poderão usufruir de salários semelhantes aos dos seus congéneres alemães sem que passem a ter qualificações minimamente similares aos destes.

 

[Publicado no Jornal Económico]

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Desconfinem os livros, sff

 

As grandes superfícies têm sido uma válvula de escape na pressão para aumentar a poupança, sendo urgente voltar a desconfinar livros, vestuário e outros bens.

 

Em Portugal, cometeu-se o grave erro de minimizar a monitorização das cadeias de contágio do COVID-19, o que tem conduzido à adopção de medidas cegas, porque se prescindiu de investir em ter informação para fazer melhor.

 

Estas medidas cegas têm maximizado os estragos económicos, sem produzir resultados sanitários satisfatórios. Em alguns casos, as medidas parecem mesmo ser pior do que cegas, sendo praticamente impossível de descortinar algum laivo de racionalidade.

 

Em Portugal, estas características são ainda agravadas pelo débil estado das nossas finanças públicas. Um país como a Alemanha, pode-se dar ao luxo de tomar medidas profundamente danosas para a actividade económica (não estou a dizer que o tenham feito, mas apenas que o poderiam fazer), porque tem margem orçamental para compensar esses danos e tem-na usado.

 

Portugal não tem, nem de longe nem de perto, a possibilidade de compensar os prejuízos económicos do combate à pandemia, mas nem a curta margem tem usado: em 2020, nem sequer foi usada a despesa autorizada pela AR no orçamento aprovado ANTES da pandemia, quanto mais do volume superior previsto no orçamento rectificativo. Em suma, se há grande dificuldade em contrariar as medidas de contenção da crise sanitária, era muito importante que estas medidas fossem objecto da mais criteriosa selecção para que os seus danos fossem mínimos.

 

Voltando a falar da adopção de medidas cegas, tem também que se sublinhar que elas também se têm caracterizado pela sua definição burocrática: são feitas para que a sua fiscalização exija os critérios mais fáceis em vez de escolher os mais lógicos. As restrições à actividade não deveriam ser definidas com base no sector, mas antes no seu risco sanitário. Porque é que os cabeleireiros individuais estão proibidos de trabalhar, mesmo com um único cliente, quando os transportes públicos andam lotados?

 

Uma novidade das mais bizarras, decidida no último confinamento, foi a proibição de venda de vestuário, livros e outros bens nas grandes superfícies, sem qualquer razão sanitária, mas porque as pequenas lojas destes artigos foram encerradas. Com uma pretensa ideia de justiça, prejudicam-se todos, mas não apenas a distribuição, mas também a produção. Qual a lógica de alargar os estragos à indústria e à cultura?

 

Há um problema adicional com esta decisão absurda: estamos a agravar a recessão, porque estamos em pleno “paradoxo da poupança”. Numa recessão, quando se tenta poupar, agrava-se a recessão. Nos últimos trimestres, temos assistido a um aumento da taxa de poupança das famílias, porque estão impedidas de realizar as suas despesas normais. No entanto, as vendas nas grandes superfícies têm estado a subir, tendo constituído um escape, provavelmente devido à chamada “compra por impulso”, que tem impedido a taxa de poupança de subir ainda mais. Com esta nova proibição, é possível que se agrave a queda da economia, cujas consequências no desemprego têm estado, até agora, adiadas, mas que deverão manifestar-se dentro de algum tempo.

 

[Publicado no Jornal Económico]

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Corrigir as tabelas de retenção de IRS

 

As tabelas de retenção na fonte do IRS estão mal feitas, desrespeitam o artigo 104º da Constituição (“1. O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo (…)”), desrespeitam os princípios do IRS (e os princípios da mais elementar justiça), e prejudicam os trabalhadores, as empresas, a economia e as receitas fiscais.

 

Imaginemos o caso de um trabalhador não casado (sem dependentes) que ganha 1005€, que está próximo do salário mediano, que é aquele no meio da distribuição dos salários. Segundo a tabela de retenção para 2021, retém 11,4% de IRS, a que se tem que adicionar a retenção de 11% para a segurança social e fica com um salário líquido de 779,88€.

 

Só para se perceber o assunto, imagine-se que era aumentado em 1 euro. Neste caso, passava para o “escalão” acima, até aos 1065€, com retenção de 12,2% de IRS. Ou seja, o seu vencimento líquido baixaria para 772,61€, o que é não só injusto como um absurdo total. Se fosse aumentado até 10,40€ (1,0% do salário inicial) continuaria a levar para casa menos do que anteriormente.

 

No caso de lhe serem propostas horas extraordinárias, pode ficar com um salário líquido inferior ou pouco superior ao auferido anteriormente. Numa visão de muito curto prazo, aquela que a esmagadora maioria dos trabalhadores tem, segundo o relato de vários empregadores, ele recusa esse trabalho extra, o que o prejudica a si próprio, a empresa, a economia e as receitas fiscais! Uma empresária contou-me mesmo de casos em que os trabalhadores recusaram aumentos salariais, o que é extraordinário, o mais revelador possível de como estas tabelas estão mesmo mal feitas.

 

É claro que, no final, quando se fizer a liquidação de IRS, provavelmente mais de um ano depois, o trabalhador até vai receber mais em termos líquidos, mas isso é irrelevante para as decisões no curto prazo. Tudo isto decorre de as tabelas de retenção da fonte desrespeitarem as regras do IRS, o que é absurdo. No entanto, a solução para isto é extremamente simples, basta corrigi-las, e proponho aqui uma forma possível para o fazer.

 

Em vez de haver uma taxa média de retenção de IRS, que se aplica ao total do vencimento, passar a haver duas taxas: uma taxa média até ao escalão imediatamente inferior e uma outra taxa, que se aplica só sobre a diferença entre o total do vencimento e o escalão anterior. Desta forma, elimina-se qualquer hipótese de um aumento de remuneração bruta corresponder a uma diminuição da remuneração líquida. Esta proposta não tem nada do outro mundo, porque decorre directamente da lógica de construção do próprio IRS.

 

Por favor, não venham com a desculpa de que isso exige tabelas de retenção mais extensas porque qualquer informático consegue fazer, em meia hora, um programa de cálculo da retenção por esta forma corrigida. Aliás, no site da AT deveria ser possível fazer simulações de retenção na fonte de IRS para qualquer caso.

 

Espero que os sindicatos e as associações patronais fazem pressão para que esta correcção se concretize.

 

[Publicado no Jornal Económico]