A omissão do Banco de
Portugal assenta também numa cultura jurídica que tem que ser erradicada
No sector público, existe uma terrível assimetria entre uma
omissão e um acto que venha a ser considerado incorrecto. Uma decisão não
tomada, adiada, nunca suscita a mais leve sanção. Já uma decisão que, com razão
ou por capricho superior, venha a ser reprovada, merece um castigo claro,
qualquer que seja a forma com que este se concretize.
Com este sistema de incentivos, perante uma escolha com
algum grau de ambiguidade, mesmo não elevado, qualquer funcionário ou
responsável tenderá a optar pela alternativa menos arriscada: adiar a decisão
ou nada fazer.
Por isso, temos um Estado que demora uma eternidade a
deferir a menor bagatela. Em consequência desta forma de funcionar, os cidadãos
desesperam e os empresários vêem-se confrontados com uma administração que
parece ter recebido ordens superiores para colocar os maiores obstáculos
possíveis – e sobretudo imaginários – à criação de emprego.
Acresce aqui uma outra assimetria. No sector público, parece
que proibir de forma abusiva não tem custos, enquanto autorizar poderá tê-los.
Talvez neste caso a assimetria possa ser explicada, quando não por corrupção (quem
não paga “luvas” não recebe autorização), por um síndroma de “porteiro de
discoteca”, que só sente verdadeiramente o seu poder, quando o usa da forma
mais caprichosa e irracional possível.
Todo este intróito para comentar a assessoria jurídica do
Banco de Portugal, que o conduziu à omissão, em vez da acção, mesma que essa
viesse posteriormente a ser criticada.
Segundo Carlos Costa revelou na comissão de inquérito
parlamentar, o Banco de Portugal, apesar de toda a informação entretanto
recolhida contra Ricardo Salgado, não lhe retirou o estatuto de idoneidade
devido a pareceres jurídicos recebidos a atestar do bom comportamento daquele
então banqueiro.
É profundamente chocante que, tendo o banco central acesso a
um conjunto de informação incomparavelmente superior ao dos autores dos
pareceres, estes tenham conseguido paralisar o supervisor.
Antes de mais convém relembrar que os pareceres jurídicos
funcionam na base do princípio de “escolha uma doutrina que eu provo-lhe a
contrária”, só estando menos desacreditados do que os estudos de viabilidade
económica da generalidade dos investimentos públicos “estratégicos” (que ainda
ninguém percebeu porque é que as suas previsões delirantes nunca foram
sistematicamente confrontadas com os resultados).
Para além disso, um dos pareceres invocados por Carlos Costa
alegava que a transferência feita pelo construtor Guilherme Moreira para
Ricardo Salgado, “não afeta [a] idoneidade deste último (…) por não ter dado
lugar a condenação pela prática seja de que crime for”. Esta argumentação é ridícula
em termos jurídicos e absurda em termos lógicos. O que o parecer tinha que
demonstrar é que o presente aceite pelo banqueiro nunca seria passível de
condenação de qualquer crime e não que não tinha – ainda – havido qualquer
condenação. Já se imagina um homem a matar a sogra à socapa e a pedir um
parecer a ilibá-lo, porque ainda não tinha sido condenado.
O departamento jurídico do Banco de Portugal preferiu,
assim, não correr o risco de ser contrariado pelo Supremo Tribunal
Administrativo (STA), em vez de defender os depositantes e credores do BES, bem
como a estabilidade do sector bancário português, que é para isso que a
supervisão existe.
Uma escolha tanto mais incompreensível quanto o proverbial
atraso na justiça faria com que a decisão daquele tribunal superior só surgiria
quando já seriam mais do que óbvias as malfeitorias de Ricardo Salgado. Então,
o STA teria que escolher entre dar razão ao banco central ou passar pela maior
humilhação de que há memória.
O que todo este caso revela é que a preferência pela
omissão, tão prevalecente no sector público, incluindo no Banco de Portugal,
deu os piores resultados na supervisão bancária e exige que haja uma
reformulação completa do gabinete jurídico desta instituição, pelo menos ao
nível das chefias. Juristas que não percebem o que é mais importante na
supervisão não podem permanecer nesta área.
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