quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Aos combatentes

Dedico este texto a todos os que sofreram e sofrem, directa e indirectamente, com a guerra colonial

Quando se iniciou a guerra colonial, em 1961, é importante referir que ela era consensual, quer à esquerda, quer à direita. É essencial recordar que, ao contrário do que é habitual, no final do século XIX era a esquerda que brandia a bandeira do nacionalismo.

O ultimato britânico de 1890, que proibia a pretendida ligação entre Angola e Moçambique definida no mapa cor-de-rosa, foi pretexto para um violento e pouco fundamentado ataque ao rei D. Carlos por parte dos republicanos, que o acusaram de estar do lado da Inglaterra.

Após a instauração da República, em 1910, houve um esforço de desenvolvimento das colónias. Um dos meus bisavôs participou nessa campanha, como “africanista” em Angola, tendo posteriormente, já sob o Estado Novo chegado a ser chefe de gabinete do ministro das Colónias.

Também foi por causa das colónias que Portugal participou na I Guerra Mundial.

O principal problema da guerra colonial foi permanecer sem solução à vista, ao contrário de outras guerras coloniais, como a da Argélia, em que de Gaulle percebeu a futilidade da operação. Sem uma solução para este problema, o Estado Novo foi liquidado pelo 25 de Abril.

Na minha família, apenas um tio meu, Paulo Raposo, participou nesta guerra, no teatro mais difícil, na Guiné, no final dos anos 60. Foi uma experiência traumatizante, de que a sua família mais directa também sofreu as consequências.

Há aqui alguns anos este meu tio ofereceu-me o melhor presente de Natal de que tenho memória: a fotocópia de um aerograma que eu lhe enviei, quando tinha sete anos. Emocionei-me tanto, que só a conseguir ver em casa. É uma carta obviamente muito ingénua, em que eu dizia, entre outras coisas, que o meu irmão (afilhado deste tio) é que se lembrava sempre de rezarmos por ele. Para além do texto também desenhei uma guerra, em que misturava castelos medievais (com ameias) com índios, tal era a minha confusão.

Dando um novo salto no tempo, em meados de Agosto deste ano, passeava perto da Torre de Belém e aproximei-me do Monumento aos Combatentes. Quando me acerquei de uma placa que dizia “Silêncio, respeito e recolhimento”, comovi-me profundamente e comecei a chorar. É como se tivesse entrado em contacto com o sofrimento associado à guerra colonial. O sofrimento dos combatentes, das suas famílias de origem e posteriores; dos mortos, de todas as nacionalidades, civis e militares, homens, mulheres e crianças; do sofrimento silenciado, em todos os territórios, em Portugal e nas ex-colónias.

Espontaneamente, abri os braços e comecei a rezar as mais simples orações. Fechei os olhos, virei-me ligeiramente para a direita e invoquei a presença, a ajuda e a protecção de Jesus Cristo, rezando em seguida um Pai Nosso. Fiz idêntico pedido a Nossa Senhora de Fátima e rezei uma Avé-Maria, sempre comovido.

Durante estas orações surgiu-me a imagem de um tubo no alto, para onde convergiam imensas luzes finas e compridas, que entravam nele.

Um soldado que vai para a guerra sabe que pode ser morto, mas isso não é a mesma coisa do que estar preparado para morrer. Acontece que muitas pessoas que morrem de repente não aceitem a sua própria morte e se recusem a partir, ficando por cá, mas sem corpo. Imagino que isso terá acontecido a muitos soldados mortos na guerra colonial.

Tive a percepção que aquilo que subiu para o tubo que vi eram almas que estavam finalmente a aceitar partir. Como tenho sempre dúvidas, perguntei a um dos meus professores espirituais se a minha interpretação estava correcta e ele (que tem muita facilidade em receber informação de “lá de cima”) confirmou-me isso.

De então para cá, tenho visitado com alguma regularidade o monumento aos combatentes e repetido o meu ritual. A carga emocional destes encontros tem abrandado e fiquei com a percepção de que a maioria das almas que se reunia ali já aceitou partir.

Envio muita luz, paz e orações a todos os que sofreram e sofrem, directa e indirectamente, com a guerra colonial.


[Publicado no jornal “i”]

Sem comentários: