quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Rectificativo errado

Este novo orçamento rectificativo afasta-se da redução da despesa, quer estrutural quer conjuntural

O segundo orçamento rectificativo deste ano apresenta duas características essenciais: 1) é muito menos ambicioso na consolidação orçamental; 2) faz a consolidação do lado errado.

No orçamento original para 2014, a consolidação orçamental deveria apoiar-se sobretudo na despesa, emendando os erros dos anos anteriores. Neste novo orçamento rectificativo acontece exactamente o oposto.

Em primeira aproximação, poder-se-ia dizer que este novo orçamento rectificativo está muito mais próximo do orçamento desejado pela oposição e pelo Tribunal Constitucional (TC). Tem menos austeridade (do lado da despesa) e mais crescimento, quer do PIB, quer do emprego. Mas é duvidoso que estes sucessos decorram da menor austeridade.

Na verdade, há um claro fracasso na capacidade de diminuir a despesa para além dos chamados “cortes cegos”. É o grande fracasso de Paulo Portas, o da “reforma do Estado”.

O vice-primeiro-ministro tem toda a razão em opor-se a aumentos de impostos em substituição de menores reduções da despesa, só não tem autoridade moral absolutamente nenhuma para o afirmar. Foi ele que ficou com a responsabilidade de propor medidas de redução estrutural da despesa pública, que adiou sucessivamente, até apresentar um documento fraquíssimo, quase risível, de “reforma do Estado”.

Os adiamentos sucessivos não decorreram de nenhuma preocupação em produzir um documento de qualidade, nem para realizar estudos que definissem propostas concretas, de aplicação imediata. Foram motivados – exclusivamente – pela sua inesgotável demagogia, pelo medo de apresentar propostas impopulares, tentando fugir às suas responsabilidades durante o máximo tempo possível.

Sem qualquer tipo de plano alternativo, sem a menor preocupação com o interesse nacional, Portas foi-se opondo e sabotando Vítor Gaspar, até provocar a demissão deste.

Ainda antes disso, Passos Coelho lançou um repto – muito pertinente – a Portas: “se não concorda com a política que está a ser seguida, proponha uma alternativa”. A resposta do líder do CDS dificilmente poderia ter sido mais cobarde e demagógica.

Como a saída do ministro das Finanças não alterou o curso de consolidação orçamental, teve a reacção histérica de apresentar a sua demissão “irrevogável”, em Julho de 2013, que o primeiro-ministro, revelando um insuspeitado sentido de Estado, recusou.

Temos agora um executivo que abdica de mais consolidação das contas públicas no corrente ano, pelo que pouco deverá fazer no próximo, que é de eleições, e cujo fecho de contas poderá bem já não ser da responsabilidade de Passos Coelho.

Tudo indica, assim, que o orçamento para 2016, o primeiro desafio do novo governo, herde uma pesada herança de consolidação insuficiente. É irónico que o facto do actual governo tenha sido obrigado, quer pelo TC, quer pela sua própria incapacidade, a ter uma política orçamental mais próxima da da oposição, isso venha a dificultar o esforço desta quando aceder ao poder.

Em resumo, este rectificativo é uma má notícia para António Costa, se for ele o vencedor das eleições legislativas de 2015, porque fica com uma tarefa muito mais espinhosa.

Há quem imagine que o silêncio do candidato socialista sobre finanças públicas indica que está a guardar os trunfos que tem na manga. Julgo que se tratará antes de uma combinação de duas coisas: não ter consciência da gravidade da situação e não ter uma verdadeira alternativa, não querendo reconhecer publicamente toda a austeridade que irá ser forçado a manter.

António Costa tem todas as condições – e mais algumas – para se revelar um desastre muito maior do que Hollande. Quem é que ainda não percebeu isto?


[Publicado no jornal “i”]

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