quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O legado de Guterres

Guterres foi um primeiro-ministro incapaz de pensamento e acção estratégicas, tendo esbanjado o último período de vacas gordas

António Guterres foi eleito primeiro-ministro em Outubro de 1995, herdando uma economia em recuperação, com as contas externas equilibradas. Foi o último chefe de governo a viver em tempo de vacas gordas, aliás gordíssimas, que ele conseguiu desbaratar sem propósito nem estratégia.

Nessa altura, o país enfrentava dois desafios evidentes: preparar-se para uma participação bem sucedida no euro e responder ao desafio que se adivinhava da concorrência dos países de Leste, então ainda a dar os primeiros passos em direcção a uma economia de mercado.

Em relação ao euro, convém recordar que este tinha sido desenhado à imagem da Alemanha. Para gerir a procura interna, este país tinha uma combinação muito particular de políticas orçamental e monetária. Tendo um política orçamental geralmente restritiva (défices públicos baixos), isso permitia-lhe ter uma política monetária razoavelmente expansionista (taxas de juro baixas). Em Portugal, a combinação destas políticas era exactamente a oposta: o laxismo orçamental forçava uma política monetária restritiva (taxas de juro elevadas).

Dado que o nosso país ia passar a ter uma política monetária à alemã, era essencial que a política orçamental também passasse a ser germânica, sob pena de se criar um excesso de procura interna, com a concomitante e habitual perda de competitividade. Isto era tanto mais imprescindível quanto o instrumento fundamental de correcção de problemas de competitividade, a desvalorização, ia deixar de estar disponível, mesmo antes de entrarmos no euro. Recorde-se que as taxas de câmbio irrevogáveis das moedas nacionais com o euro foram fixadas em Maio de 1998 e que o critério cambial requeria dois anos de estabilidade da taxa de câmbio. Ou seja, a partir de meados de 1996 já não poderia haver mais desvalorizações.

Estas questões elementares escaparam a Guterres e Sousa Franco, que acharam que os critérios orçamentais de Maastricht eram uma mania, que nos bastava fingir que cumpríamos. Não perceberam que um país como Portugal teria que ir muito mais longe do que aqueles critérios, sob pena de gerar graves problemas à nossa economia. O desvario foi completo: desbaratou-se a enorme folga orçamental criada pela gigantesca descida dos juros e ainda se inventaram as PPP, para enganar os nossos parceiros comunitários, gastando debaixo da mesa. Os problemas não tardaram a chegar, com uma perda de competitividade que criou uma estagnação económica desde 2000 até hoje.

Em relação ao dificílimo desafio da concorrência dos países de Leste, este foi totalmente ignorando, tendo Guterres e Cravinho dado início a uma extraordinária orgia do betão, que jamais corrigiria os graves problemas que tínhamos face aqueles países: mais longe do centro da Europa, com uma força de trabalho muito menos qualificada e, mesmo assim, a pagarmos salários superiores ao desses países.

Voltando às inacreditáveis PPP rodoviárias, o pináculo do disparate do betão, elas constituíram um gigantesco erro estratégico (um equívoco em relação a tudo o que era importante), um erro macroeconómico (foram lançadas na pior altura, quando a economia já tinha procura a mais), um desastre de finanças públicas (implicavam custos que eram o dobro do que se tivessem sido financiados com dívida pública) e a justificar as mais profundas suspeitas de corrupção (os contratos são de tal modo contrários aos interesses do Estado e dos contribuintes que é praticamente impossível imaginar que não tenham envolvido corrupção).

Em resumo, apesar de Guterres ser um político inteligente, culto e falar (demasiado) bem, foi um primeiro-ministro da espuma dos dias, sem a menor capacidade de esboçar o mais leve pensamento e acção estratégicas. Para além disso, apesar de ser pessoalmente honesto, permitiu à sua volta uma extraordinária profusão dos mais obscuros negócios de Estado.

Veremos qual a miséria de candidato que a direita nos vai apresentar, para demonstrar o esgotamento definitivo do regime.


[Publicado no jornal “i”]

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