quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Querer ser enganado (2)

A fantasia de “uma nova leitura do Tratado Orçamental” irá necessariamente esbarrar na intransigência alemã

Retomando a análise das propostas de António Costa, gostava de vos convidar a imaginar como seria hoje o país, se os sucessivos governos tivessem fixado o objectivo (e o tivessem alcançado) de angariar o equivalente a uma Auto-Europa de cinco em cinco anos, em vez da disparatada aposta no betão (sempre muito amigo da corrupção). Teríamos hoje cinco “Auto-Europas”, fortes exportações, ausência de dívida externa e a troika nunca teria sido necessária.

Uma das razões mais espúrias para não falar sobre as finanças públicas seria a de que elas não explicariam esta crise, como se isso fizesse desaparecer o grave problema.

Existe, de facto, uma tese, à primeira vista razoável, de que Portugal foi compelido a pedir auxílio à troika, não tanto devido aos défices públicos, mas sobretudo devido aos défices externos. O “ligeiro” problema com esta tese é que os défices externos não surgiram do nada, antes resultaram de políticas orçamentais erradíssimas que agravaram o défice externo e as perdas de competitividade e geraram uma acumulação brutal de dívida externa.

Quanto à oposição à austeridade, digamos que há dois tipos de argumentos de natureza e qualidade completamente distintas. Num primeiro grupo, há aqueles que defendem que uma austeridade demasiado intensa e rápida provoca estragos tão graves à economia, que acaba por ser contrária à própria consolidação orçamental. Os defensores desta tese, na qual me incluo, reconhecem a necessidade de austeridade e de profundas reformas na despesa pública, mas reclamam um doseamento deste processo, para que se consiga um efectivo travão no aumento da dívida pública. Se esta tese for defendida com qualidade, com argumentação empírica sólida, é muito possível que consiga obter o acordo e o apoio, quer da troika, quer dos mercados.

No segundo grupo estão todos aqueles que vivem no mundo da lua, que imaginam que a alternativa à actual austeridade é não haver austeridade nenhuma, não fazer absolutamente nenhuma reforma da despesa pública e continuar a gastar como dantes. Como é evidente, esta conversa não tem o mínimo de credibilidade e será liminarmente recusada, quer pela troika, quer pelos mercados.

António Costa promete ser “batalhador” na Europa para lutar por “uma nova leitura do Tratado Orçamental”, mas ainda ninguém percebeu – nem o próprio – o que é que isto quer dizer em termos concretos. Só que é essencial que este assunto seja esclarecido quanto antes, pois dele dependem todas as excelsas propostas do candidato.

Imaginemos então dois tipos de propostas de releitura do Tratado Orçamental, apresentadas por um conjunto alargado de chefes de governo dos países periféricos. Num primeiro tipo, as propostas seriam de tal modo ambiciosas que matariam as negociações antes mesmo de estas terem início. Num segundo tipo, elas teriam que ser necessariamente modestas, para que um mínimo de negociação pudesse ter lugar. Mesmo assim, a Alemanha adoptaria sempre uma duríssima posição negocial, em que ligeiras concessões orçamentais teriam que vir sempre acompanhadas de fortes e duras reformas estruturais.

Em conclusão, toda e qualquer alteração que venha a ser feita daquele Tratado será sempre modesta e incapaz de acomodar as fantasias orçamentais de António Costa. Escusa de vir sugerir que vai conseguir o impossível, porque só quem quer ser enganado é que poderá engolir tal coisa. Registe-se, aliás, a incoerência de dizer que as finanças ficam para depois, mas a promessa de repor as pensões e “travar a austeridade” é já feita, apesar das fortíssimas implicações orçamentais destas propostas.

De resto, a “agenda para a década” é um rosário de vaguíssimas banalidades, formuladas em tom heróico, é certo, mas destituídas de substância, às quais nem sequer falta o tema do mar, imitando Cavaco Silva, sem lhe acrescentar nada. Tenho, aliás, imensa curiosidade em conhecer apenas um exemplo de uma nova actividade associada à exploração da nossa alargada zona marítima que tenha gerado um volume significativo de emprego. Peço desculpa pela ousadia, mas é que até agora ainda não vimos nada.


[Publicado no jornal “i”]

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