É inaceitável que, num
país que aboliu a pena de morte há tanto tempo, haja juízes que, por pura
ignorância, estejam a condenar tantas pessoas à morte. Nos casos de violência
doméstica, alguns juízes desconhecem noções básicas de psicologia, mas,
inconscientes da sua própria ignorância, tomam decisões absurdas, injustas e
mortais.
Há alguns anos atrás, fui contactado, indirectamente, para
ser perito num tribunal num caso de litígio entre um banco e um cliente. Fiquei
espantadíssimo com o dossier que recebi: a) omisso em relação à acusação ou
queixa; b) o documento da defesa era especialmente confuso, mal escrito, e sem
a menor proposta de solução, dos piores exemplos de litigância, com uma péssima
atitude, só protesto, sem o menor vestígio de tentativa de resolver o assunto;
c) omisso também em relação às questões concretas em que o juiz gostaria que
eu, na qualidade de perito, desse a minha opinião.
Presumi que o juiz estava tão baralhado com o caso, que esperava
que fosse o perito a explicá-lo. Decidi recusar o caso, porque me pareceu que,
pelo menos o juiz e o advogado de defesa, ou não parecia que tivessem ideias
claras sobre o assunto ou não tinham uma atitude minimamente razoável. O inacreditável
dossier que recebi também revelava uma grande incompetência por parte do juiz.
Neste caso, o juiz era ignorante de questões financeiras e bancárias,
mas tinha consciência da sua própria ignorância, tendo tido o bom senso de
pedir um perito, embora depois não tivesse a capacidade suficiente para sequer saber
que perguntas lhe colocar.
Nos casos de violência doméstica temos tido, com maior
frequência do que seria desejável e com consequências muito mais graves (mortais
por vezes) do que meras dívidas, juízes que: a) são ignorantes de teoria
psicológica básica sobre violência doméstica; b) ignoram que são ignorantes
destas matérias e não pedem qualquer tipo de auxílio técnico externo. É esta
dupla ignorância que é letal, por vezes literalmente.
Tem-se
visto vários juízes partirem da premissa falsa “uma mulher autónoma e
moderna não se sujeita a violência doméstica” para não aceitarem como
verdadeiras as declarações de uma mulher com estas características. Pode ser
muito difícil para um juiz perceber como esta situação possa ocorrer, mas a sua
ignorância da complexidade psicológica desta matéria não o pode levar a negar a
realidade.
Há uma outra situação muito preocupante, de desvalorização
de uma denúncia de violência quando esta decorre há muitos anos. Se, só ao fim
de tanto tempo, há uma queixa, é altamente provável que o agressor tenha
atravessado uma linha vermelha e que a violência tenha passado para um patamar
muito mais perigoso.
Em relação à pergunta (psicologicamente ignorante) “porque
não se queixou antes?”, desejo contar mais um caso pessoal, que não demonstra
nada, mas ilustra como as coisas se passam, mesmo em Lisboa. Há tempos,
roubaram-me o carro e fui reportar o caso à polícia. Fui tão mal recebido que
fiquei com a nítida sensação que, se fosse uma mulher a queixar-me de violência
doméstica, o polícia me tinha expulsado da esquadra, sem anotar a queixa.
Quantas pessoas tentaram apresentar queixa e esta tentativa nem sequer ficou
registada?
Para tentar colmatar o problema expostos, sugiro que a Ordem
dos Psicólogos crie uma bolsa de voluntários para assessorar juízes em casos de
violência doméstica, para que se torne um hábito. Posteriormente, deixará de
ser necessário trabalharem “pro bono”, porque os juízes terão interiorizado a
necessidade de assessoria técnica na área da psicologia.
O que se impõe é mudar o actual estado de coisas. É
inaceitável que, num país que aboliu a pena de morte há tanto tempo, haja
juízes que, por pura ignorância, estejam a condenar tantas pessoas à morte.
[Publicado na CapitalMagazine]
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