O verdadeiro responsável pelas agruras do presente
não é o actual governo, mas os anteriores executivos que acumularam uma
gigantesca factura que agora é preciso pagar
Uma das questões mais inquietantes do momento em que vivemos
é verificar que demasiada gente – com responsabilidades – pensa que as medidas
aplicadas pelo actual governo são da exclusiva responsabilidade deste executivo
e da troika.
O que se passou nas últimas décadas até sermos empurrados
para a troika parece que entrou num
buraco negro de memória. É verdade que a profunda inépcia deste governo, e
também a sua megalomania (“vamos para além da troika”), ajudou a criar aquela
imagem, mas não é por isso que ela passa a ser verdadeira.
Há um grupo de privilegiados do regime que pretende que o
povo se rebele, não para impor justiça, mas para que o actual governo caia na
rua, em total contradição com os princípios da 3ª República.
Uma rebelião da turba tem todas as condições para agravar
todos os males presentes. Sem um governo capaz de cumprir as condições dos
nossos credores, terá que haver uma redução drástica do défice público, por
manifesta incapacidade de financiamento. Poderemos mesmo ser expulsos do euro
ou ser forçados a sair, sem qualquer garantia de ajuda, e então é que
entraríamos num inferno.
Em termos económicos, seria uma desgraça; em termos
políticos, teríamos o caminho aberto para todos os desmandos e injustiças e é
bom não esquecer como as revoluções comem os seus próprios filhos; em termos de
ordem pública, seria uma calamidade.
Mas temos uma alternativa, em moldes semelhantes aos da
Islândia: colocar o regime no banco dos réus ou, no mínimo, colocar os últimos
governos em tribunal. Porque, mais do que qualquer outra coisa, precisamos de
uma tomada de consciência, para não voltarmos a repetir todos os erros do
passado.
No entanto, começamos com um grave problema: o descrédito da
justiça portuguesa. O risco de assistirmos a um descarado branqueamento dos
últimos executivos é elevado.
Para escolhermos os acusados, temos que fazer um inquérito
sobre os problemas mais graves.
Quais foram os governos que tomaram medidas de destruição da
nossa competitividade e, com isso, deram uma machadada brutal no nosso
potencial de crescimento? É importante recordar que até final dos anos 90 a
economia portuguesa crescia a 3% ao ano, mas que na década seguinte não
conseguiu nem um terço disso. Não há nada que mais tenha destruído a capacidade
de Portugal ter um estado social forte do que isto.
Que governos estiveram omissos na degradação da nossa
natalidade, outra valente causa do enfraquecimento do estado social?
Quais os governos que conduziram ao descalabro das contas
públicas e explosão da dívida pública? Quais foram os governos que assinaram
contratos de PPP, que são dívida pública escondida (só para enganar Bruxelas),
com o dobro do custo? Em particular, quais os governos que se comprometeram com
PPP, com cláusulas frontalmente contrárias ao interesse do Estado e dos
contribuintes?
Que governos tomaram medidas eficazes para enfrentarmos a
globalização e que governos assobiaram para o lado? Quais os governos que
assistiram impávidos à explosão da dívida externa?
Mário Soares, no seu apelo a uma rebelião, esquece duas
coisas. A primeira é que aquilo que o actual tem sido forçado a fazer é aquilo
que, grosso modo, qualquer governo no momento presente teria que fazer, como
consequência dos desmandos das últimas décadas.
A segunda coisa que Soares esquece é que a linha que separa
o país não é entre a esquerda, que se continua a julgar dona do regime, por
obséquio da constituição não democrática de 1976, e a direita; a linha que
divide profundamente o país é a que separa a classe política da 3ª República,
que se auto-atribuiu as mais luxuosas mordomias, e o resto do país.
Por isso, Soares está do lado errado e, se apelar muito à
violência (que desaprovo completamente), corre bem o risco de ser uma das
principais vítimas.
[Publicado no jornal “i”]
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