quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O regime no banco dos réus

O verdadeiro responsável pelas agruras do presente não é o actual governo, mas os anteriores executivos que acumularam uma gigantesca factura que agora é preciso pagar


Uma das questões mais inquietantes do momento em que vivemos é verificar que demasiada gente – com responsabilidades – pensa que as medidas aplicadas pelo actual governo são da exclusiva responsabilidade deste executivo e da troika.

O que se passou nas últimas décadas até sermos empurrados para a troika parece que entrou num buraco negro de memória. É verdade que a profunda inépcia deste governo, e também a sua megalomania (“vamos para além da troika”), ajudou a criar aquela imagem, mas não é por isso que ela passa a ser verdadeira.

Há um grupo de privilegiados do regime que pretende que o povo se rebele, não para impor justiça, mas para que o actual governo caia na rua, em total contradição com os princípios da 3ª República.

Uma rebelião da turba tem todas as condições para agravar todos os males presentes. Sem um governo capaz de cumprir as condições dos nossos credores, terá que haver uma redução drástica do défice público, por manifesta incapacidade de financiamento. Poderemos mesmo ser expulsos do euro ou ser forçados a sair, sem qualquer garantia de ajuda, e então é que entraríamos num inferno.

Em termos económicos, seria uma desgraça; em termos políticos, teríamos o caminho aberto para todos os desmandos e injustiças e é bom não esquecer como as revoluções comem os seus próprios filhos; em termos de ordem pública, seria uma calamidade.

Mas temos uma alternativa, em moldes semelhantes aos da Islândia: colocar o regime no banco dos réus ou, no mínimo, colocar os últimos governos em tribunal. Porque, mais do que qualquer outra coisa, precisamos de uma tomada de consciência, para não voltarmos a repetir todos os erros do passado.

No entanto, começamos com um grave problema: o descrédito da justiça portuguesa. O risco de assistirmos a um descarado branqueamento dos últimos executivos é elevado.

Para escolhermos os acusados, temos que fazer um inquérito sobre os problemas mais graves.

Quais foram os governos que tomaram medidas de destruição da nossa competitividade e, com isso, deram uma machadada brutal no nosso potencial de crescimento? É importante recordar que até final dos anos 90 a economia portuguesa crescia a 3% ao ano, mas que na década seguinte não conseguiu nem um terço disso. Não há nada que mais tenha destruído a capacidade de Portugal ter um estado social forte do que isto.

Que governos estiveram omissos na degradação da nossa natalidade, outra valente causa do enfraquecimento do estado social?

Quais os governos que conduziram ao descalabro das contas públicas e explosão da dívida pública? Quais foram os governos que assinaram contratos de PPP, que são dívida pública escondida (só para enganar Bruxelas), com o dobro do custo? Em particular, quais os governos que se comprometeram com PPP, com cláusulas frontalmente contrárias ao interesse do Estado e dos contribuintes?

Que governos tomaram medidas eficazes para enfrentarmos a globalização e que governos assobiaram para o lado? Quais os governos que assistiram impávidos à explosão da dívida externa?

Mário Soares, no seu apelo a uma rebelião, esquece duas coisas. A primeira é que aquilo que o actual tem sido forçado a fazer é aquilo que, grosso modo, qualquer governo no momento presente teria que fazer, como consequência dos desmandos das últimas décadas.

A segunda coisa que Soares esquece é que a linha que separa o país não é entre a esquerda, que se continua a julgar dona do regime, por obséquio da constituição não democrática de 1976, e a direita; a linha que divide profundamente o país é a que separa a classe política da 3ª República, que se auto-atribuiu as mais luxuosas mordomias, e o resto do país.

Por isso, Soares está do lado errado e, se apelar muito à violência (que desaprovo completamente), corre bem o risco de ser uma das principais vítimas.

 


[Publicado no jornal “i”]

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