sábado, 28 de setembro de 2013

Demissão cívica

Chegámos ao buraco em que estamos também devido a uma gigantesca demissão cívica, individual e colectiva

Se é verdade que chegámos ao buraco em que estamos devido a péssimas decisões dos políticos que nos governaram nas últimas décadas, também temos que reconhecer que permitimos que isso acontecesse.

Em primeiro lugar, porque fomos nós que elegemos esses políticos. Em segundo lugar porque, pior ainda, fomos nós que pressionámos os políticos a fazer algumas das asneiras. O despesismo populista funciona em Portugal, porque faz ganhar votos. Ainda agora, temos inúmeras câmaras a fazer despesa mesmo em cima das eleições autárquicas, para ganharem mais uns votos. Já repararam como isto é absurdo? Políticos a gastarem o nosso dinheiro, que tanto nos custa ter de entregar ao Estado, para nos enganarem.

Em terceiro lugar, nós, colectivamente, não fiscalizámos os nossos políticos para lá das eleições. Os raros que levantaram a voz, com sabedoria e coragem, como o falecido Ernâni Lopes e Medina Carreira, não receberam da nossa parte o apoio que mereciam e que lhes devíamos ter dado para nosso próprio bem, para não nos encontrarmos agora no estado lastimoso em que estamos.

Na verdade, chegámos aqui devido a uma dose gigantesca de demissão cívica, quer a nível individual, quer sobretudo a nível colectivo. Olhámos para o Estado como para o Pai Natal, a quem nós, quais crianças, pedimos tudo e mais um par de botas.

Há reformados a dizer que os cortes nas pensões que estão a ser actualmente aplicados são uma enorme surpresa e que desrespeitam as suas expectativas. Sei perfeitamente que se trata de algo extremamente desagradável por, em muitos casos, não haver oportunidade corrigir isso por outras vias.

Mas não é razoável argumentar que as suas expectativas eram realistas. Há mais de três décadas que a taxa de natalidade desceu abaixo do nível de sustentabilidade e tem-se deteriorado sempre desde então. Este problema até surgiu em Portugal mais tarde do que em muitos outros países europeus, com a diferença que em muitos deles já foram tomadas medidas – com resultados positivos. Como é que alguém pode ter pensado que o problema da queda da natalidade não iria ter – fatalmente – um impacto sobre as pensões? Há décadas que se fala, na Europa e em Portugal, no problema da bomba-relógio da segurança social e os nossos actuais reformados nunca tinham ouvido falar em tal coisa?

Quando é que nos levantámos, colectivamente, para exigir aos políticos que tratassem do problema da natalidade?

Ainda em relação aos reformados, sobretudo no sector público, como é que se pode considerar realista a expectativa de ter uma pensão que ignora – por completo – a totalidade da carreira contributiva e se baseia apenas no último vencimento? Pensar que as expectativas vão ser cumpridas só porque um político assinou uma lei para comprar votos, sem procurar garantir as condições materiais de cumprimento das promessas é também uma forma de demissão cívica.

O colapso do comunismo na Europa de Leste fez chegar a globalização muito perto da nossa porta, com países com forças de trabalho muito mais qualificadas do que a nossa e salários muito inferiores. Como é que respondemos a este desafio brutal? Construindo auto-estradas que ficaram quase vazias e estádios de futebol.

Quando é que, colectivamente, confrontámos os nossos políticos com a pura irresponsabilidade das suas escolhas? Por acaso, um dos raros momentos em que isso aconteceu, foi ao impedir a construção de um aeroporto na Ota. Mas em relação ao desafio da globalização, demitimo-nos colectivamente.

Se queremos, verdadeiramente, mudar de vida, a primeira coisa que temos que fazer, individual e colectivamente, é assumir a nossa quota-parte de responsabilidade pelo estado a que chegámos. Assumir responsabilidade é a primeira forma de deixarmos esta demissão cívica e não assumir responsabilidade é a continuação da demissão cívica.


PS. A facilidade com que Rui Machete, depois de mentir aos nossos representantes, fica (?) como ministro será mais um sinal da nossa demissão cívica. Vamos continuar a tolerar isto?

[Publicado no jornal i]

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