Chegámos ao buraco em
que estamos também devido a uma gigantesca demissão cívica, individual e
colectiva
Se é verdade que chegámos ao buraco em que estamos devido a
péssimas decisões dos políticos que nos governaram nas últimas décadas, também
temos que reconhecer que permitimos que isso acontecesse.
Em primeiro lugar, porque fomos nós que elegemos esses
políticos. Em segundo lugar porque, pior ainda, fomos nós que pressionámos os
políticos a fazer algumas das asneiras. O despesismo populista funciona em
Portugal, porque faz ganhar votos. Ainda agora, temos inúmeras câmaras a fazer
despesa mesmo em cima das eleições autárquicas, para ganharem mais uns votos.
Já repararam como isto é absurdo? Políticos a gastarem o nosso dinheiro, que
tanto nos custa ter de entregar ao Estado, para nos enganarem.
Em terceiro lugar, nós, colectivamente, não fiscalizámos os
nossos políticos para lá das eleições. Os raros que levantaram a voz, com
sabedoria e coragem, como o falecido Ernâni Lopes e Medina Carreira, não
receberam da nossa parte o apoio que mereciam e que lhes devíamos ter dado para
nosso próprio bem, para não nos encontrarmos agora no estado lastimoso em que
estamos.
Na verdade, chegámos aqui devido a uma dose gigantesca de
demissão cívica, quer a nível individual, quer sobretudo a nível colectivo.
Olhámos para o Estado como para o Pai Natal, a quem nós, quais crianças,
pedimos tudo e mais um par de botas.
Há reformados a dizer que os cortes nas pensões que estão a
ser actualmente aplicados são uma enorme surpresa e que desrespeitam as suas
expectativas. Sei perfeitamente que se trata de algo extremamente desagradável
por, em muitos casos, não haver oportunidade corrigir isso por outras vias.
Mas não é razoável argumentar que as suas expectativas eram
realistas. Há mais de três décadas que a taxa de natalidade desceu abaixo do
nível de sustentabilidade e tem-se deteriorado sempre desde então. Este
problema até surgiu em Portugal mais tarde do que em muitos outros países
europeus, com a diferença que em muitos deles já foram tomadas medidas – com
resultados positivos. Como é que alguém pode ter pensado que o problema da
queda da natalidade não iria ter – fatalmente – um impacto sobre as pensões? Há
décadas que se fala, na Europa e em Portugal, no problema da bomba-relógio da
segurança social e os nossos actuais reformados nunca tinham ouvido falar em
tal coisa?
Quando é que nos levantámos, colectivamente, para exigir aos
políticos que tratassem do problema da natalidade?
Ainda em relação aos reformados, sobretudo no sector
público, como é que se pode considerar realista a expectativa de ter uma pensão
que ignora – por completo – a totalidade da carreira contributiva e se baseia
apenas no último vencimento? Pensar que as expectativas vão ser cumpridas só
porque um político assinou uma lei para comprar votos, sem procurar garantir as
condições materiais de cumprimento das promessas é também uma forma de demissão
cívica.
O colapso do comunismo na Europa de Leste fez chegar a
globalização muito perto da nossa porta, com países com forças de trabalho
muito mais qualificadas do que a nossa e salários muito inferiores. Como é que
respondemos a este desafio brutal? Construindo auto-estradas que ficaram quase
vazias e estádios de futebol.
Quando é que, colectivamente, confrontámos os nossos
políticos com a pura irresponsabilidade das suas escolhas? Por acaso, um dos
raros momentos em que isso aconteceu, foi ao impedir a construção de um
aeroporto na Ota. Mas em relação ao desafio da globalização, demitimo-nos colectivamente.
Se queremos, verdadeiramente, mudar de vida, a primeira
coisa que temos que fazer, individual e colectivamente, é assumir a nossa
quota-parte de responsabilidade pelo estado a que chegámos. Assumir
responsabilidade é a primeira forma de deixarmos esta demissão cívica e não
assumir responsabilidade é a continuação da demissão cívica.
PS. A facilidade com que Rui Machete, depois de mentir aos
nossos representantes, fica (?) como ministro será mais um sinal da nossa
demissão cívica. Vamos continuar a tolerar isto?
[Publicado no jornal i]
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