sábado, 29 de agosto de 2015

Escândalo total

A corrupção vive do sentimento de impunidade que decorre do silêncio de todos, a começar pelas instituições

Um ano depois do concurso público para a concessão das duas empresas de transportes colectivos do Porto (metro e STCP) ter sido um fracasso, o governo anunciou um ajuste directo com um prazo de 12 dias para a entrega de propostas.

Esta decisão, ainda por cima tomada em Agosto e a poucas semanas do final do mandato do executivo, constitui um escândalo total. Isto é tão estranho, que legitima as piores suspeitas.

Infelizmente, a repercussão pública disto foi mínima, talvez em parte por reflectir a macrocefalia do país, em que quase tudo o que se passa fora de Lisboa recebe muito pouca atenção.

Começando pelo Zé Povinho, que hoje poderá em parte ser aferido pelas redes sociais, não parece ter havido nenhum movimento “viral”, ao contrário de tantas indignações, onde os critérios de relevância parecem altamente trocados.

Entre os comentadores, correndo o risco de cometer alguma injustiça, só dei pela pena inspirada e indignada do João Miguel Tavares, no Público, que escreveu: “Fazer uma moscambilha desta dimensão em véspera de legislativas é de tal forma arriscado e eleitoralmente imprudente que os interesses por detrás do negócio devem dar para encher a Avenida dos Aliados.”

Passando para os partidos políticos, começa-se por estranhar o silêncio do PCP e BE, contrários, por princípio, a qualquer tipo de privatização ou concessão a privados. Mas o mais surpreendente, ou talvez não, é a forma como o PS nem se referiu ao assunto, ainda por cima estando nós em campanha eleitoral, que tem corrido muito mal aos socialistas, por um conjunto de amadorismos indesculpáveis. Será que o PS tem assim tantos rabos-de-palha nas concessões a privados para não querer levantar a lebre sobre este, incomparavelmente menor do que aqueles que os socialistas aprovaram?

No entanto, considero que o silêncio mais ensurdecedor é o das instituições públicas, directa ou indirectamente relacionadas com esta matéria. Não me venham com conversas legalistas que minimizam as responsabilidades de cada instituição, quando o “óbvio ululante” se passa nas nossas barbas. É que há, no mínimo, a responsabilidade de uma intervenção de “persuasão moral” que, no limite dos limites, até pode ser apenas feita em termos pessoais.

Gostaria muito que a PGR tivesse algumas palavras sobre este assunto, que me parece óbvio que exige uma investigação imediata, em vez de, daqui a vários anos, nos vir dizer que já não pode fazer nada porque o caso já prescreveu. Também dispensamos que o Tribunal de Contas se lembre de criticar, dentro de três anos, a forma como o processo foi conduzido. Era agora que queríamos ouvir a sua voz.

Apreciaríamos muitíssimo que o Banco de Portugal dissesse alguma coisa, mesmo que na forma elíptica que é apanágio de todos os bancos centrais. Se não fosse pedir muito, o Conselho de Finanças Públicas também poderia fazer uma referência, mais ou menos indirecta a este caso.

Estaria louco se pedisse isso hoje, mas quando passarmos a ter uma administração pública independente, esperarei que haja um conjunto de altos funcionários ao ministério das Finanças que se pronuncie sobre uma situação análoga.

Se, em vez do actual mutismo, tivéssemos todas as diferentes declarações que sugeri, parece-me que o governo seria forçado a recuar. Mais do que isso, se fosse comum haver estas tomadas de posição, o executivo nem sequer teria o descaramento de avançar com este ajuste directo.

É este silêncio colectivo que cria um sentimento de impunidade por parte dos poderosos, que permite os nossos elevadíssimos níveis de corrupção.

Neste momento, Sócrates está em vias de ser acusado por aquilo que me parece ser menos de 10% das malfeitorias que perpetrou, muitas das quais à frente de todos. Se tivessem havido mais vozes de protesto (a propósito, por andava Sampaio da Nóvoa nessa altura?), ele nunca se teria atrevido a tanto.

Se, como sociedade, não somos capazes de parar acções danosas feitas na praça pública, como nos poderemos defender do que se passa nos bastidores?


[Publicado no jornal “i”]

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