A corrupção vive do
sentimento de impunidade que decorre do silêncio de todos, a começar pelas
instituições
Um ano depois do concurso público para a concessão das duas
empresas de transportes colectivos do Porto (metro e STCP) ter sido um
fracasso, o governo anunciou um ajuste directo com um prazo de 12 dias para a
entrega de propostas.
Esta decisão, ainda por cima tomada em Agosto e a poucas
semanas do final do mandato do executivo, constitui um escândalo total. Isto é
tão estranho, que legitima as piores suspeitas.
Infelizmente, a repercussão pública disto foi mínima, talvez
em parte por reflectir a macrocefalia do país, em que quase tudo o que se passa
fora de Lisboa recebe muito pouca atenção.
Começando pelo Zé Povinho, que hoje poderá em parte ser
aferido pelas redes sociais, não parece ter havido nenhum movimento “viral”, ao
contrário de tantas indignações, onde os critérios de relevância parecem
altamente trocados.
Entre os comentadores, correndo o risco de cometer alguma
injustiça, só dei pela pena inspirada e indignada do João Miguel Tavares, no Público, que escreveu: “Fazer uma
moscambilha desta dimensão em véspera de legislativas é de tal forma arriscado
e eleitoralmente imprudente que os interesses por detrás do negócio devem dar
para encher a Avenida dos Aliados.”
Passando para os partidos políticos, começa-se por estranhar
o silêncio do PCP e BE, contrários, por princípio, a qualquer tipo de
privatização ou concessão a privados. Mas o mais surpreendente, ou talvez não,
é a forma como o PS nem se referiu ao assunto, ainda por cima estando nós em
campanha eleitoral, que tem corrido muito mal aos socialistas, por um conjunto
de amadorismos indesculpáveis. Será que o PS tem assim tantos rabos-de-palha
nas concessões a privados para não querer levantar a lebre sobre este,
incomparavelmente menor do que aqueles que os socialistas aprovaram?
No entanto, considero que o silêncio mais ensurdecedor é o
das instituições públicas, directa ou indirectamente relacionadas com esta
matéria. Não me venham com conversas legalistas que minimizam as
responsabilidades de cada instituição, quando o “óbvio ululante” se passa nas
nossas barbas. É que há, no mínimo, a responsabilidade de uma intervenção de
“persuasão moral” que, no limite dos limites, até pode ser apenas feita em
termos pessoais.
Gostaria muito que a PGR tivesse algumas palavras sobre este
assunto, que me parece óbvio que exige uma investigação imediata, em vez de,
daqui a vários anos, nos vir dizer que já não pode fazer nada porque o caso já
prescreveu. Também dispensamos que o Tribunal de Contas se lembre de criticar,
dentro de três anos, a forma como o processo foi conduzido. Era agora que
queríamos ouvir a sua voz.
Apreciaríamos muitíssimo que o Banco de Portugal dissesse
alguma coisa, mesmo que na forma elíptica que é apanágio de todos os bancos
centrais. Se não fosse pedir muito, o Conselho de Finanças Públicas também
poderia fazer uma referência, mais ou menos indirecta a este caso.
Estaria louco se pedisse isso hoje, mas quando passarmos a
ter uma administração pública independente, esperarei que haja um conjunto de
altos funcionários ao ministério das Finanças que se pronuncie sobre uma
situação análoga.
Se, em vez do actual mutismo, tivéssemos todas as diferentes
declarações que sugeri, parece-me que o governo seria forçado a recuar. Mais do
que isso, se fosse comum haver estas tomadas de posição, o executivo nem sequer
teria o descaramento de avançar com este ajuste directo.
É este silêncio colectivo que cria um sentimento de
impunidade por parte dos poderosos, que permite os nossos elevadíssimos níveis
de corrupção.
Neste momento, Sócrates está em vias de ser acusado por
aquilo que me parece ser menos de 10% das malfeitorias que perpetrou, muitas
das quais à frente de todos. Se tivessem havido mais vozes de protesto (a
propósito, por andava Sampaio da Nóvoa nessa altura?), ele nunca se teria
atrevido a tanto.
Se, como sociedade, não somos capazes de parar acções
danosas feitas na praça pública, como nos poderemos defender do que se passa
nos bastidores?
[Publicado no jornal “i”]
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