A proposta de Louçã de
restruturação da dívida é catastrófica, recheada de equívocos e com obstáculos
provavelmente intransponíveis
Francisco Louçã mais três economistas, entre os quais Pedro Nuno
Santos, apoiante destacado de António Costa, divulgaram uma proposta de
restruturação da dívida pública e externa de Portugal, uma concretização algo
extrema do manifesto dos 74. Desde logo se saúda a coragem desta proposta
concreta, para que todos possam perceber que uma restruturação da dívida não é
uma receita indolor, antes pode trazer elevadíssimos custos.
A avaliação que faço desta proposta é que ela é
catastrófica, recheada de equívocos e com obstáculos provavelmente
intransponíveis. É catastrófica porque prevê a falência (técnica) de todos os bancos
portugueses e posterior nacionalização, bem como perdas fortíssimas para os
detentores de obrigações dos bancos portugueses, bem como perdas significativas
para os depositantes com mais de 100 mil euros e outras ainda para os
possuidores de certificados de aforro.
O primeiro equívoco é que ela se destina, em primeiro lugar,
a recuperar soberania nacional. Mas, após a restruturação, Portugal continuaria
condicionado pelo espartilho do Tratado Orçamental e sem qualquer tipo de autonomia
da política monetária e cambial. Em contrapartida, a saída do euro teria
efeitos catastróficos com grandes semelhanças com esta proposta, mas com a
vantagem de libertar a política orçamental e recuperar a soberania monetária e
cambial. Fora do euro, o foco das atenções passaria do défice público para o
défice externo, com recurso a uma solução tecnocrática, a desvalorização, em
vez de submetido a uma ditadura sobre as matérias orçamentais, políticas na sua
essência.
O segundo grave equívoco é o de o problema essencial de crescimento
português residir num défice de procura interna, em especial num défice de
despesa pública. Segundo esta proposta, uma redução na despesa com juros
permitiria subir a despesa pública, que traria o crescimento de volta. É
difícil de imaginar uma ideia mais absurda. O nosso problema de falta de
crescimento tem 15 anos, é muito anterior à austeridade e durante a maior parte
desse período Portugal registou um forte excesso de procura interna (espelhada
em elevados défices externos) e significativos excessos de despesa pública,
traduzida em défices públicos excessivos.
O terceiro equívoco é o de que com restruturação da dívida e
juros mais baixos, já não seria necessário reduzir a despesa pública. Mas,
passando o país a ver totalmente vedado o acesso ao financiamento externo, o
défice público teria que ser completamente eliminado no imediato e mantido aí
durante as décadas seguintes.
Passando ao capítulo dos obstáculos, esta proposta depende –
vitalmente – do acordo dos credores, que deveriam perder mais de metade dos
seus créditos. Para aceitar um contrato completamente leonino seria necessário
oferecer aos credores contrapartidas extremamente generosas. Muito
estranhamente, esta proposta é totalmente omissa sobre essas contrapartidas que
fariam os credores aceitar os termos desta proposta. Não damos nada em troca,
nem as Berlengas?
Como é possível imaginar que qualquer investidor pudesse,
algum dia, aceitar esta proposta tão gravosa? Como a Argentina tem sobejamente
demonstrado, não basta o acordo, sequer, da maioria dos credores, é essencial
garantir que a esmagadora maioria dos credores aceita estas condições.
Os subscritores deste documento sugerem também que se
poderia dispensar o acordo dos credores. Mas, como Vital Moreira já explicou,
isso seria confisco, que é inconstitucional.
Imaginem também que o governo português apresentava esta
proposta aos credores, fixando um prazo, ainda assim curto, de 30 dias para
chegar a acordo. Durante esse período, teríamos subidas vertiginosas das taxas
de juro da dívida portuguesa, o colapso da bolsa, a começar pelas acções dos
bancos, fuga generalizada de depósitos para o exterior ou para debaixo do
colchão, levantamento maciço de certificados de aforro. A partir de dada
altura, os bancos e o próprio Estado deixariam de poder fazer pagamentos. No
meio deste caos, os autores deste documento ainda conseguem a maior piada do
texto (p. 69): “o país pode reestruturar a sua banca nacional sem necessitar da
ajuda do BCE”.
[Publicado no jornal “i”]
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