Ricardo Salgado nega que tenha conhecimento, desde 2008, das
dívidas escondidas no Grupo Espírito Santo, ao contrário do que diz o
ex-contabilista. Olhemos para este diferendo na perspectiva que Hercule Poirot
teria, usando as “celulazinhas cinzentas”.
No verão de 2007, rebentou a crise do sub-prime nos EUA, que
não afectou directamente os bancos portugueses, não devido a qualquer superior
sagacidade dos nossos banqueiros, mas simplesmente porque o sistema bancário
português sofria de um enorme défice de recursos, colmatado no exterior, não
sobrando fundos para investimentos mais criativos.
Aquela crise provocou estragos profundos no sistema
financeiro mundial, tendo levado quase à falência do até então prestigiado
banco de investimento Bear Sterns, salvo em Março de 2008. Em Setembro desse
mesmo ano, não foi possível evitar a falência de outro banco importante, o
Lehman Brothers. A partir daí, a crise passou do sistema bancário para a
economia, gerando-se a mais grave crise económica mundial desde o crash de 1929.
Os mercados monetários paralisaram, com todos os bancos a
desconfiarem de que todos os outros também poderiam estar falidos. Neste
contexto, é totalmente improvável que tenha havido um único banqueiro no mundo
que não tenha reavaliado, de fio a pavio, todos os seus activos e passivos,
para se inteirar da verdadeira situação do seu próprio banco e de todos os
outros com quem mantinha relações comerciais.
A brusca queda de liquidez nos mais variados mercados,
colocou o risco de fortíssimas desvalorizações de activos, sobretudo dos menos
padronizados, e foi necessário definir cenários de cotações a partir das quais
os bancos entrariam em situação de falência técnica.
É do domínio da mais risível implausibilidade imaginar que,
em 2008, sob o espectro da falência, o BES e todas as empresas do grupo não
tenham sido submetidas a um excepcional e exigentíssimo exame contabilístico.
Em contrapartida se, por absurdo, Ricardo Salgado, não tiver realizado esta
verificação, isto seria razão – mais do que suficiente – para o declarar como o
mais irresponsável e incompetente banqueiro português e a ser banido, para o
resto da vida, pelo Banco de Portugal, de exercer qualquer cargo num banco
português.
Mas regressemos a Poirot e à sua pergunta chave: “qual o
motivo?”. Que teria o contabilista a ganhar se escondesse à administração do
grupo BES a verdadeira situação do grupo? Todos conhecemos casos de
contabilistas que “embelezaram” as contas para se apropriarem indevidamente de
dinheiro. Neste caso, o contabilista não é acusado de desviar um único euro.
Não se descortina nenhum motivo que poderia ter levado o contabilista a agir
isoladamente, porque não teria nenhum ganho significativo com isso.
Em contrapartida, o que teria Ricardo Salgado a ganhar de
esconder a verdadeira situação do grupo? Tudo. Manteria o beneplácito dos
accionistas do GES; manteria a supremacia dentro da família (verificamos como
tem sido duramente contestada); ganharia muito mais exibindo lucros em vez de
prejuízos; manteria clientes do BES, entre outros benefícios. Repare-se o que o
grupo foi agora obrigado a fazer, inclusive perder o controlo do BES, para se
perceber o gigantismo da motivação do banqueiro.
De tudo isto, podemos concluir que a probabilidade de o
contabilista estar a dizer a verdade é mil vezes superior à de o mesmo se
passar com o banqueiro.
É preciso ser totalmente destituído de “celulazinhas
cinzentas”, ou, em alternativa, ser patologicamente ingénuo para acreditar na mais
do que inverosímil versão de Ricardo Salgado.
Para além de tudo isto, devemos lembrar que em inúmeros
casos de corrupção que têm vindo a lume, tivemos quase sempre o envolvimento do
BES, para além de um esquecimento de Ricardo Salgado de declarar rendimentos ao
fisco, “distracção” que foi alvo de uma benevolência surpreendente.
[Publicado no Observador]
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