segunda-feira, 16 de junho de 2014

O tratado de Piketty

Thomas Piketty escreveu um dos livros económicos mais importantes dos últimos anos, quanto mais não seja pela viva polémica (mesmo que nem sempre interessante) que este tem provocado.

Tentando arrefecer um pouco o tom exacerbado do debate em torno deste livro, saliento que o próprio autor assume, logo na introdução, que “as respostas contidas aqui são imperfeitas e incompletas. Mas são baseadas em dados históricos e comparados muito mais extensos do que os disponíveis a anteriores investigadores, cobrindo três séculos e mais de vinte países.”

O tema central do livro é a distribuição da riqueza (leia-se património) que, como este economista refere, já fazia parte das questões chave da economia política clássica, nascida nos finais do século XVIII.

Na primeira parte, Piketty apresenta conceitos básicos para a compreensão do resto do livro, revelando a preocupação do autor em o tornar acessível ao público mais vasto possível.

A segunda parte traça a evolução da riqueza desde o século XVIII e faz previsões para o século XXI. A extensão das bases empíricas é uma das mais óbvias mais-valias do livro e este percurso da riqueza apresenta um perfil muito interessante. Durante os séculos XVIII e XIX, o nível de riqueza manteve-se relativamente estável, na generalidade dos países estudados, em torno de seis a sete vezes o PIB contemporâneo. No século XX, as duas guerras mundiais conduziram a uma queda drástica da riqueza, para níveis de apenas dois ou três vezes o PIB. Numa nota pessoal, gostaria de sublinhar que este é um caso claro em que as perdas de uns não têm que corresponder a ganhos de outros. Retomando o livro, a partir do pós-guerra verificou-se uma subida continuada da riqueza, aproximando-se, hoje em dia, dos níveis registados em 1913.

Para além disso, devo acrescentar que estimo que o fim do euro, que poderá ocorrer nos próximos tempos, também deverá provocar uma substancial queda da riqueza em praticamente todos os países da zona do euro, inclusive na Alemanha.

Voltando ao livro, Piketty prevê que, devido ao baixo crescimento, sobretudo por via da demografia, o nível de riqueza suba para níveis iguais ou superior aos verificados num passado mais longínquo. É de facto impressionante como mesmo um ligeira redução de algumas décimas no crescimento faz aumentar de forma substancial o rácio de longo prazo entre a riqueza e o PIB.

A terceira parte ocupa-se da desigualdade, que o autor prevê que se agrave profundamente nas próximas décadas, se nada for feito para contrariar esta tendência, que decorre do facto de a taxa de juro real ser superior ao crescimento por habitante. Isto significa que os mais ricos, mesmo gastando uma fracção não negligenciável do seu rendimento, verão o seu património crescer mais do que o PIB. Desta forma, a riqueza herdada ir-se-á tornando cada vez mais predominante.

Em termos históricos, a taxa de juro tem sido quase sempre superior ao ritmo de crescimento, mas isso nem sempre conduziu ao aumento da desigualdade. A excepção foi o período das duas guerras mundiais, em que os mais ricos sofreram proporcionalmente mais, e o pós-guerra até aos anos 80, em que a intervenção pública também contribuiu para limitar a desigualdade. A partir daí, o liberalismo defendido por Thatcher e Reagan e amplamente copiado trouxe um grande aumento da desigualdade.

A última parte, de recomendação de política públicas para tentar minorar o agravamento da desigualdade previsto pelo autor é, naturalmente, a mais polémica. Piketty começa por propor uma “utopia útil”, um imposto mundial progressivo sobre o capital, para depois o restringir à escala europeia.

A principal ideia que deixo é que, dado que este fenómeno é relativamente lento, para além de incerto, é preferível aguardar pela eventual concretização das previsões de Piketty, antes de tomar medidas drásticas e de sucesso também ele arriscado.

No cômputo geral, considero este trabalho iniciador de uma nova abordagem, extremamente promissora, para além de contribuir para recentrar o debate público em torno do tema da desigualdade, a partir de um sólido estudo teórico e empírico.


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