quarta-feira, 26 de março de 2014

“À deriva”

Precisamos de assumir colectivamente uma estratégia para o país, sob pena de continuarmos à deriva, com fracos comandantes

Como dizia o saudoso Ernâni Lopes (1942-2010), Portugal está “à deriva” desde 1995, usando uma expressão náutica, em homenagem ao seu passado na marinha.

Desde então o país tem sido governado com base, ou na espuma dos dias que surge nos telejornais das 20 horas, ou dominado pela urgência de conter os défices públicos.

Apesar de estarmos com um grave problema de contas públicas desde, pelo menos, 2000, parece que cada novo governo acorda para a necessidade de diminuir o défice orçamental no dia em que toma posse, revelando-se cada novo executivo mais impreparado do que o anterior para fazer face a este desafio. O mais que conseguem é aumentar impostos e fazer cortes cegos na despesa. Muitos já terão esquecido, mas convém lembrar que a subida da taxa normal do IVA, em 2002, de 17% para 19%, foi apresentada como uma medida “temporária”, que seria revertida quando as contas públicas voltassem a estar controladas.

É extraordinário que, quase três anos após o programa da troika, ainda não esteja concluído um programa de reforma estrutural da despesa pública, devidamente estudado, operacionalizado e consensualizado, quanto mais minimamente iniciada a sua concretização.

Ainda que seja obviamente necessário um programa de redução estrutural da despesa pública, que coloque um ponto final nesta crise das contas públicas, que já dura há quase uma década e meia, isso nunca passará de um trabalho de casa mínimo que é necessário realizar, mas que não constitui – de maneira nenhuma – uma estratégia para o país para as próximas décadas.

Portugal precisa de deixar de ser um país “à deriva”, as nossas políticas públicas têm de deixar de ser um amontoado esquizofrénico de remendos.

Passe o pleonasmo, mas entendo que devemos ter como objectivo estratégico a definição de uma estratégia para o país para os próximos 20 anos. Não vou definir aqui muito de uma possível estratégia, por duas razões. Em primeiro lugar, porque, honestamente, não tenho ideias suficientemente detalhadas sobre qual deva ser essa estratégia. Em segundo lugar, porque considero que não pode ser o iluminado A, B ou C a definir esse caminho. Tem que ser uma resposta assumida colectivamente, devidamente consensualizada.

A este respeito gostaria de acrescentar dois pontos. Em primeiro lugar, entristece-me que as universidades se tenham demitido de pensar o país numa lógica prospectiva, quando estes deveriam ser os centros privilegiados de reflexão do país. Em segundo lugar, parece-me que a concertação social tem graves problemas de representatividade, para além de parecer ser um centro de disputa dos interesses actuais e, até hoje, sem capacidade de pensar o futuro.

Definir uma estratégia hoje é ainda mais importante, porque já se percebeu que nas próximas décadas vai haver muito pouco dinheiro. Mas há uma série de medidas que não custam dinheiro e até o poupam, como é o caso de reduzir regulamentação.

Temos, urgentemente, de deixar de pensar que resolver problemas é deitar dinheiro em cima de problemas, com a esperança – quimérica – de que estes se resolvem por si.

Se é evidente que queremos crescer e gerar emprego, deveremos também procurar fazê-lo no sector transaccionável, não só porque acumulámos uma enorme divida externa, mas também porque aqui se encontram geralmente os mais rápidos crescimentos da produtividade.

Uma estratégia para o país tem que ir para além da economia. Precisamos também de tomar consciência das atitudes cívicas que temos vindo a promover, como sociedade, e assumir a necessidade de alterações. Neste domínio, entendo que nos devemos afastar de todas as políticas públicas que promovam a infantilização e a irresponsabilidade, bem como precisamos de reequilibrar o eixo entre direitos e deveres, actualmente demasiado próximo dos primeiros.

Uma sociedade de pessoas mais autónomas e responsáveis parece constituir um bem em si mesmo, mas a muito limitada capacidade financeira que o Estado português terá nas próximas décadas também forçará a uma menor dependência do Estado.


[Publicado no jornal “i”]

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