O programa do PS assemelha-se a um gigantesco ataque de
amnésia sobre o que se passou no país nos últimos vinte anos.
Em 1995, iniciou-se a produção da AutoEuropa, o último (!)
grande investimento produtivo e exportador, ano em que as contas externas
estavam equilibradas e em que a dívida externa era negligenciável, inferior a
8% do PIB. A AutoEuropa também pode ser encarada como a última grande resposta
nacional ao desafio da globalização, em particular à concorrência dos países do
Leste Europeu, quando Portugal era um dos países para quem este desafio era
mais delicado.
A partir de Outubro desse ano, com a vitória de Guterres,
houve uma clara mudança de “modelo” económico. O desafio da globalização passou
a ser olimpicamente ignorado e a economia virou-se completamente sobre si
própria. O bónus da descida das taxas de juro foi desbaratado, sobreaquecendo a
economia e destruindo competitividade, criando uma prosperidade totalmente
fictícia no sector não transaccionável, em particular na construção e na banca,
e esmagando as condições de sobrevivência do sector transaccionável.
Os resultados de tão desastrada política não se fizeram
esperar. O país passou a ter défices externos gigantescos, acumulou uma dívida
externa que chegou a exceder os 110% do PIB, a economia praticamente estagnou e
o desemprego começou a subir.
À fragilidade desta situação, claramente ampliada por
Sócrates, veio juntar-se uma gestão irresponsável da crise do euro, que obrigou
ao pedido de ajuda à troika, adiado
muito para lá do que o bom senso obrigaria.
Como é evidente, um dos objectivos da troika era o de que a economia passasse por profundas reformas que,
em particular, corrigisse o seu foco, que deveria passar a estar no sector
transaccionável e não no sector não transaccionável. Apesar de todos os seus
reveses, este foi claramente o maior sucesso do programa de ajustamento, que
aumentou o peso das exportações no PIB para um máximo histórico, acima de 40%
do PIB.
O que nos revela o programa do PS? Que os socialistas não só
não estão arrependidos dos erros do passado, como se preparam para repetir tudo
de novo, não se sabendo ainda se também estão a pensar em pedir novo resgate
internacional.
Como primeira medida para relançar a economia, pretende-se
aumentar o rendimento disponível das famílias (pp. 11-12), reduzindo impostos,
aumentando salários na função pública e baixando a TSU paga pelos
trabalhadores. Basicamente, trata-se de expandir a procura e a produção de bens
não transaccionáveis, ignorando os erros das duas últimas décadas. Esta redução
da TSU é particularmente irresponsável, porque é equivalente a dizer “gaste já
a sua reforma e depois viva do ar”. Considero que esta redução deve ser
facultativa, porque haverá muita gente sensata que a quererá poupar (imagina-se
já bancos a criarem contas especiais para facilitar isso), do qual resultaria
um aumento do défice público, sem qualquer estímulo da procura, um absurdo.
As promessas de subida do salário mínimo, numa altura em que
o desemprego está tão elevado, parecem claramente prematuras e com claro risco
de fazer voltar os défices externos, que tanto esforço nos custou a eliminar.
No mercado de trabalho, recuou-se na proposta de um novo
tipo de contrato, preferindo-se apostar em mais fiscalização dos falsos recibos
verdes (pp. 15-16). Não se contesta a necessidade de desincentivar a
precaridade laboral, mas atacar as formas de escapar à rigidez dos actuais
contratos de trabalho, sem proporcionar uma alternativa minimamente aliciante
às empresas, pode bem vir a traduzir-se na destruição de postos de trabalho.
No plano orçamental esperam-se vários milagres, quer nos
défices, quer na dívida, que é quase certo que não acontecerão, o que poderá
deixar o país em sérias dificuldades de financiamento, em particular se se
tornar cada vez mais claro que a Grécia sairá do euro e que Portugal passará a
ser o elo mais fraco seguinte. É justamente a fragilidade da crise da zona do
euro que torna este o pior momento para fazer experiências a contar com o ovo
nas entranhas da galinha.
Em resumo, este é um programa eleitoral que repete os piores
erros das duas últimas décadas, em que se pretende crescer com base na procura
interna, inchada por estímulos orçamentais, para os quais não há margem. A
experiência já mostrou que uma economia fechada sobre si própria não é a
solução, sobretudo num mundo em que, quer queiramos quer não, a globalização
permanece um desafio muito difícil para nós.
[Publicado no Observador]
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