Será que uma teoria
política baseada na dificuldade em lidar com a realidade pode ser um bom guia
para intervir sobre a realidade?
Pedro Luzes, um dos introdutores da psicanálise em Portugal,
publicou em 2001 uma biografia de Eça de Queiroz (Sob o manto diáfano do
realismo. Psicanálise de Eça de Queirós). Nela cita Marthe Robert que, em Roman
des origines et origines du roman (1972), vê nos “romances das
origens” a origem do romance. Haveria dois romances das origens: 1) o da
criança abandonada ou enjeitada, que duvida de ambos os pais; 2) o da criança
ilegítima, que não duvida da mãe, mas só do pai.
No primeiro caso, temos: “Defoe conta a história de Robinson
Crusoe, que rejeitando os pais foge de casa, para na sua ilha se tornar o
solitário absoluto, o órfão absoluto capaz de refazer a sua vida, de renascer,
das suas ‘obras’, sem auxílio de ninguém.”
“Aquele que é levado a rejeitar pai e mãe, ao virar-se para
o romance (como autor? como leitor?) para tornar aceitável uma vida impossível
é muitas vezes levado a criar uma vida nova, diferente, para si, para os seus
progenitores, para a sociedade em que vive. Não há aqui compromisso possível.”
Este tipo de autor tem uma grande dificuldade em lidar com a realidade, tende
para o escapismo, o fantástico.
O segundo tipo de autor, a criança ilegítima, “parece já ter
aprendido acerca das “realidades” do nascimento”. “A história da criança ‘bastarda’
(…) conduz ao romance realista em que o bastardo luta contra a sociedade
patriarcal, contra a ‘lei do pai’” para impor o seu valor (…). Há aqui um
compromisso entre as realidades sociais e o desejo.” (pp. 21-22).
Eça de Queiroz, apesar de ser do primeiro tipo, “deu a
volta”, embora muitos dos seus protagonistas sejam órfãos, como ele se sentia.
A quem estiver interessado em seguir as implicações literárias disto recomendo
a leitura das primeiras páginas do livro citado.
O que me interessa é discutir um pouco as implicações
políticas desta análise. Julgo que poucos terão dificuldades em identificar
estes dois tipos de figuras na política. Por um lado, os políticos que, tendo
uma predisposição contra a ordem estabelecida, não desdenham em lutar para
conquistar o poder, ainda que se sintam mais à-vontade quando estão na oposição
do que quando estão no governo. Uma vez ocupado o poder, têm por vezes
dificuldade em usar a autoridade do Estado de uma forma eficaz e tendem a ser
mais irresponsáveis, sobretudo em termos financeiros. Dispenso-me de dar
exemplos, já que todos terão dificuldade em os identificar.
Por outro lado, temos os políticos que falam de utopias
delirantes e que se recusam a fazer parte do poder. Com base nisto, penso que é
legítimo questionar sobre se alguns dos idealismos políticos não terão eles
também na sua origem uma figura enjeitada, cuja principal característica não é
este sofrimento inicial, mas sim a sua dificuldade em lidar com a realidade.
Será que uma teoria política baseada na dificuldade em lidar com a realidade
pode ser um bom guia para intervir sobre a realidade?
Uma utopia que desrespeita a lei da gravidade não é um
“sonho que comanda a vida”, é uma alienação da realidade em que o próprio é o
primeiro a ser enganado e ilude mais muitos outros.
O Syriza parece estar claramente neste segundo grupo e a sua
ascensão ao poder foi quase contra-natura. Mas nota-se – de forma claríssima –
a sua incapacidade para lidar com a realidade, pela forma incompreensível como
têm gerido as negociações com os seus credores, quando o país está à beira do
abismo.
Há também, julgo que em ambos estes grupos, os políticos do
protesto, que vêm problemas em todo o lado e bloqueiam toda e qualquer solução,
porque isso os deixaria sem motivos para se indignarem.
O turismo é das coisas que tem funcionado bem em Portugal e
que está com crescente apreciação internacional. Pois já surgiu um grupo de
“protestadores” contra o turismo, como se nos pudéssemos dar ao luxo de
dispensar todas as receitas e empregos gerados neste sector.
[Publicado no jornal“i”]
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