quarta-feira, 29 de outubro de 2014

O mistério GES/BES

O que se passou no GES/BES? Quem agiu? Porque agiu assim?

Com base na informação conhecida até agora, reconhecidamente incompleta, vou tentar esboçar uma resposta muito preliminar ao mistério do GES/BES, tentando responder a três questões: O que se passou no GES/BES? Quem agiu? Porque agiu assim?

Julgo que é importante olhar para o grupo GES salientando alguns dos aspectos essenciais que ajudam a explicar o seu actual descalabro. Em primeiro lugar, era um grupo excepcionalmente endividado (alavancado, em linguagem financeira). Porquê uma dívida tão elevada? Pelo excesso de ambição. Se o Grupo não tivesse querido expandir-se tanto, em tantas áreas, não precisaria de tanta dívida e poderia ter sobrevivido.

Em segundo lugar, baseava-se num “modelo de negócio” em que mais importante do que a capacidade empreendedora ou a capacidade de gestão, era a capacidade de abrir portas, demasiadas vezes recorrendo a métodos pouco limpos. Vejam-se a quantidade impressionante de casos de polícia em que o Grupo esteve envolvido. Para além disso, era proverbial o nepotismo dentro do grupo, em que as ligações familiares eram mais importantes do que a capacidade profissional.

A terceira característica do grupo é a ausência de uma verdadeira estratégia de médio prazo e gravíssimos problemas de governação e honestidade. A dispersão por demasiados sectores, muitos dos quais onde não se vislumbravam vantagens competitivas, é equivalente a uma ausência de estratégia, que não seja crescer sem critério nem qualidade.

Julgo que a surpresa dos diferentes ramos da família sobre o rumo que as coisas estavam a levar é genuína e que isso revela um problema gravíssimo de governação. O amadorismo que tudo isto revela numa organização desta dimensão é assustador.

Com todos estes ingredientes (excesso de endividamento, fraca gestão e péssimo sistema de governação) chegámos à crise internacional de 2008, a maior das últimas oito décadas. Como todos os outros, o GES sofreu perdas brutais. Os lucros (tornados até em prejuízos) deixem de ser capazes de pagar os juros do endividamento, necessariamente crescente. No entanto, foi decidido esconder parte dessas perdas. Quem o fez? Há muito poucas dúvidas que tenha sido Ricardo Salgado a tomar essa decisão.

Há quem considere praticamente impossível que Ricardo Salgado tenha feito o que fez sozinho, com a possível excepção de alguns subordinados, que teriam apenas cumprido ordens. Pois considero que é impossível que tenha feito isto com conhecimento dos seus pares. Em geral, a confiança é algo de absolutamente essencial no negócio bancário e foi com base na confiança que suscitava que o grupo se conseguiu reerguer, apesar de completamente descapitalizado, a seguir às nacionalizações de 1975. É altamente improvável que os outros ramos da família assistissem impávidos à destruição de um valor essencial ao sucesso de uma dinastia já na quarta geração.

Uma questão que a todos intriga é: qual a verdadeira motivação de Ricardo Salgado? Julgo que era a ambição de poder, manchada pela incapacidade de pensamento estratégico ou a médio prazo.

No final de 2009, já no início da crise do euro, Ricardo Salgado ainda defendia o TGV, ignorando todas as graves consequências de médio prazo para a banca e o BES, de continuar a apostar no endividamento externo.

Em 2012, o GES já estava com graves problemas de endividamento excessivo e ele cometeu a dupla loucura de se endividar mais para controlar a Semapa e, pior ainda, comprar uma guerra com Pedro Queiroz Pereira. Selou aí a sua sentença, na maior das inconsciências. O industrial reuniu num volumoso todas as provas contra Ricardo Salgado, que entregou ao Banco de Portugal, no Outono de 2013, o que desmascarou o banqueiro.

Em 2014, quando tudo já estava a arder e o Banco de Portugal ditou o fim das ligações entre o GES e o BES, Ricardo Salgado ainda conseguiu tomar novas decisões que destruíram ainda mais tudo o que sobrava. Só uma pessoa totalmente incapaz de pensar a prazo é que poderia cometer tantos erros.


[Publicado no jornal “i”]

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Constituições de facção

Portugal precisa de mudar de regime e de constituição, que deve deixar de ser de facção para passar a ser verdadeiramente nacional

O orçamento de 2015 não vai mais longe, em parte devido à constituição, em outra parte devido à forma abusiva como o Tribunal Constitucional a tem interpretado e em parte também devido às eleições do próximo ano, que seriam sempre um travão, qualquer que fosse o governo.

Um dos traços comuns – e o mais infeliz – das constituições portuguesas é o facto de se poderem encarar como constituições de uma facção e não de todo o país. Pior ainda, em alguns casos, de uma parte minoritária contra o resto do país.

As constituições de 1822 e de 1911 eram de facções particularmente minoritárias e talvez também por isso tenham durado tão pouco tempo. Focando-nos apenas nas constituições do século XX, tivemos a tal constituição de 1911, de uma minoria republicana, urbana e anticlerical, contra um país esmagadoramente rural e católico.

A constituição de 1933, corporativa, excluía todos os outros: republicanos, monárquicos, democratas e comunistas.

A constituição de 1976 é um texto de esquerda, contra a direita, não é uma constituição verdadeiramente nacional, porque não é inclusiva, é de uma parte contra a outra.

Para além disso, impôs abusivas restrições nos limites materiais de revisão constitucional. Como Saldanha Sanches (1944-2010) muito bem formulou, quem escreveu esta lamentável constituição quis ser “dono do futuro”.

Que regimes não democráticos tenham constituições de facção é algo não deve surpreender, dada a natureza desses regimes. Mas que isso aconteça num regime democrático é um contra-senso e um profundo desrespeito pelo próprio ideal democrático. Conseguem imaginar a constituição alemã a dizer que se destina a “abrir caminho para uma sociedade democrata-cristã”? Não seria isso profundamente chocante e antidemocrático? E não é isso que temos no nosso país?

Portugal precisa de mudar de regime e de constituição, que deve deixar de ser de facção para passar a ser verdadeiramente nacional.

A 3ª república é um regime que já está podre há vários anos e que deveria terminar. São múltiplas (demasiadas!) as instituições do regime que lançam um cheiro fétido por todo o lado. Infelizmente, ainda que os sucessivos regimes portugueses tenham caído de podre, essa putrefacção durou longos anos.

No entanto, julgo que os próximos tempos são propícios para a destruição final do regime. O fraquíssimo governo de coligação que temos tido teve a utilíssima função de descredibilizar o PSD e o CDS, que deverão sofrer um forte castigo nas próximas eleições.

Mesmo assim, é duvidoso que António Costa consiga alcançar a maioria absoluta, porque em algum momento dos próximos 12 meses vai ter que começar a ser mais concreto no que pretende fazer no governo. Se optar por nunca se comprometer, também assim não alcançará a maioria absoluta, porque o tempo dos cheques em branco já passou.

Assim sendo, será forçado a um governo de bloco central, provavelmente sem o CDS, que não tem absolutamente nenhum interesse em se queimar ainda mais. Esse governo de bloco central, provavelmente sem Passos Coelho, será obrigado a continuar a austeridade dos últimos anos. A profunda desilusão que isso constituirá não fará mal apenas aos membros do governo, mas descredibilizará ainda mais os próprios partidos e o regime.

Para além de tudo isto, que não é pouco, julgo que aquilo que dará a estocada final no regime será o julgamento de Ricardo Salgado. Como a ponta do iceberg sugere, parece que terá feito de tudo e com todos. Como bem diz o ditado: “zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades”. Parece que é isso que virá a acontecer naquele que se deve transformar no mais mediático caso de sempre da justiça portuguesa, com episódios diários, todos eles contribuindo para o generalizado descrédito do regime e dos seus principais protagonistas. 

Este julgamento tem todo o potencial para ser o equivalente ao caso “Mãos limpas” em Itália, que destruiu todo o sistema partidário do pós-guerra. Deus queira que sim e que se crie um novo regime baseado numa constituição verdadeiramente nacional.


[Publicado no jornal “i”]

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Eleições à espreita

O (previsível) chumbo de Bruxelas à proposta de orçamento francês para 2015 pode bem liquidar o programa político de António Costa

Passos Coelho escolheu, inexplicavelmente, defender que o governo iria para além da troika. Se queria mesmo fazer isso, teria sido mais inteligente fazê-lo sem o alardear. Assim, conseguiu dar desculpas ao PS que, perante a afirmação genérica e pouco sensata do primeiro-ministro, até se conseguiu eximir aos termos do acordo da troika, que os socialistas assinaram. Para além disso, criou muitíssimo mais resistências, que dificultaram o sucesso do programa de ajustamento. Ainda hoje estou para perceber a lógica de tentar ser ainda mais impopular do que a troika.

Mais recentemente, as más explicações dadas sobre o caso Tecnoforma lançaram a suspeita inapagável de que não havia boas explicações. Outro mistério (ou talvez nem tanto) é a falta de inteligência política de manter o ministro da Educação, num sector que movimenta o maior número de funcionários do Estado, milhares de alunos e de famílias. Pior ainda, manter o secretário de Estado que, após os incompreensíveis prejuízos provocados em inúmeros professores, teve o supino descaramento de sugerir que estes se queixassem em tribunal.

Logo agora, que os tribunais estão num caos, atempadamente previsto pelo ex-chefe de gabinete da ministra da Justiça. O que leva um ministro a ignorar avisos dos seus mais próximos colaboradores, que se demitem muito antes da bronca estoirar? A ministra não percebeu a mensagem fortíssima dessa demissão? O que leva um primeiro-ministro a manter uma ministra que, todos os dias, destrói a credibilidade de um executivo já em apuros?

A própria coligação não está de boa saúde, como, aliás, nunca esteve. No final do mandato, Paulo Portas lembrou-se, tardia e inconsequentemente, que era o líder do “partido dos contribuintes”. O vice-primeiro-ministro conseguiu apresentar dez razões para baixar o IRS, nenhuma das quais inclui a redução da despesa pública, o que é mirabolante e revela o mundo de fantasia em que vive. Aliás, nem podia prever descida da despesa do Estado, porque Portas falhou rotundamente na sua reforma.

É verdade que ainda falta muito tempo para as eleições, uma eternidade em política, mas a coligação deverá apresentar-se em más condições aquando desse sufrágio.

Do lado do PS, só aparentemente as coisas estão melhores. Ferro Rodrigues, novo líder parlamentar do PS, veio pedir eleições antecipadas, sem oferecer absolutamente nada em troca. Isto é extraordinário, embora não exactamente surpreendente. Quando, há alguns meses, várias “personalidades”, sobretudo de esquerda, assinaram o manifesto de restruturação da dívida, também se propunham fazer esta proposta à “Europa”, sem que revelassem a menor sombra de uma contrapartida.

Esta forma de fazer política é um misto de arrogância, irrealismo e infantilismo. Desejar uma coisa e passar logo a sentir o direito de a receber. Como é possível imaginar que alguém, quem quer que seja, lhes vai dar o querem sem receber nada em troca? Poderiam ter o irrealismo de propor um negócio em que pedem 100 e estão dispostos a dar 10, mas é muito pior do que isso: oferecem zero em troca.

Uma das questões mais importantes dos próximos tempos será a avaliação europeia do orçamento francês. O (previsível) chumbo de Bruxelas à proposta de orçamento francês para 2015 pode bem liquidar o programa político de António Costa.

Mesmo que o orçamento gaulês não suscite objecções, toda a gente sabe que, na UE, a França e a Alemanha “são mais iguais do que os outros”. Por isso, faz todo o sentido esperar que Bruxelas se “vingue” nos pequenos países, em particular em Portugal, que deve imenso aos nossos parceiros, para que fique a imagem de que tem mesmo poder.

Bem pode António Costa defender uma leitura “inteligente” do Tratado Orçamental, quando o nosso país nem sequer cumpre o Tratado de Maastricht. É provável que a meta orçamental para 2015 (a ser divulgada hoje) seja de 2,9% do PIB, mas é ainda mais provável que o défice final fique acima dos 3%.

Aliás, se continuam estas inacreditáveis inundações em Lisboa, Costa pode ir perdendo gás nas sondagens.


[Publicado no jornal “i”]

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Aos pequenos accionistas do BES

É do interesse dos pequenos accionistas do BES desistir de acções judiciais que possam reduzir o valor do Novo Banco

Já me tinha constado que nos processos de falências e similares grassava uma irracionalidade extrema entre os vários intervenientes, que todos acabava por prejudicar. Os tribunais não deveriam dar gás aos impulsos auto-destrutivos dos envolvidos nestes processos, mas os atrasos proverbiais só destroem valor, agravando o que já não era favorável.

Um conjunto de pequenos accionistas do BES colocou uma acção para impedir a venda dos activos do Novo Banco, entre outras coisas. Isto parece-me um grande equívoco. Em primeiro lugar, estes accionistas esquecem que eles ainda são donos do Novo Banco, no sentido em que aquilo que sobejar da venda deste banco reverte para o BES.

É assim, do seu máximo interesse, que o processo de saneamento do Novo Banco decorra com a maior normalidade possível e que não haja a menor ameaça de litigância, que só serve para diminuir o valor daquela venda, reduzindo a probabilidade de virem a receber qualquer tipo de valor.

Em segundo lugar, mesmo que o BES não tivesse sido dividido em dois, é mais do que óbvio que estaria hoje a vender os activos cuja transacção está em curso, para obter liquidez e realizar capital. Por isso, nem sequer pode estar em causa a oportunidade do momento da venda, porque haveria sempre urgência em fazê-lo. Mesmo aqueles que defendem que neste momento não é a melhor altura para vender estão meramente a especular, porque não é possível afirmar isso. Temos actualmente tantos pontos de fragilidade (Ucrânia, Estado Islâmico, riscos de deflação na zona do euro, etc.) que ninguém pode assegurar que daqui a um ano estaremos melhor do que agora.

É, aliás, muito duvidoso qual o tipo de benefício que esperam obter desta acção judicial. Na verdade, os pequenos accionistas deveriam fazer como nos EUA: só pagar honorários aos advogados se estes conseguirem produzir resultados palpáveis em tempo útil. Deveriam pagar uma certa percentagem das indemnizações obtidas, se elas chegarem até 24 meses, contados a partir da primeira hora. A partir daí essa percentagem iria decaindo até zero, ao fim de 60 meses. Se os advogados recusarem uma proposta desse teor, isso deve esclarecer estes accionistas sobre a (falta de) utilidade desta acção.

Devo acrescentar que considero que os advogados que vivem de conflitos e não de soluções deveriam ser penalizados pelos tribunais.

Se tivéssemos um sistema de justiça decente, recomendaria que processassem Ricardo Salgado, pela gestão incrivelmente danosa e contrária aos interesses dos pequenos accionistas (e também do país, porque os custos reputacionais para todos nós são gigantescos). Como temos esta tristeza de justiça, não recomendo nada, deixo isso para os vossos advogados.


Tudo isto me recorda uma história sobre a justiça do rei Salomão (Bíblia, I Reis, 3:16-28). Duas mulheres disputavam a posse da mesma criança e foram pedir justiça ao rei. Como não se entendiam, “disse o rei: Dividi em duas partes o menino vivo; e dai metade a uma, e metade a outra”. Logo a verdadeira mãe exclamou: “Ah! senhor meu, dai-lhe o menino vivo, e de modo nenhum o mateis. Porém a outra dizia: Nem teu nem meu seja; dividi-o, antes.”. Face a isto, Salomão não teve dúvidas em dar o filho à primeira mulher. “E todo o Israel ouviu a sentença que dera o rei, e temeu ao rei; porque viram que havia nele a sabedoria de Deus, para fazer justiça.”

Infelizmente, a acção judicial interposta pelos pequenos accionistas do BES é um acto em tudo semelhante à da mulher que preferia ver a criança morta, do que viva.

 Têm aqui uma oportunidade de ouro de dar uma bofetada de luva branca a todos os que se portaram mal convosco, tendo um gesto da maior dignidade, da maior responsabilidade – e, em simultâneo, protegendo os vossos interesses – ao terem a nobreza e a elevação moral de desistirem desta vossa acção judicial.


[Publicado no jornal “i”]

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Salário mínimo

O acordo de subida extraordinária do salário mínimo, assinado em 2007, ocorreu quando Portugal registava um elevadíssimo défice externo. Se ainda tivéssemos o escudo, teríamos sido forçados a desvalorizar fortemente a moeda e haveria uma significativa queda dos salários reais. Ou seja, aquele acordo ocorreu na pior altura possível e terá sido um dos responsáveis pelos actuais níveis de desemprego e pela chegada da troika.

O governo de Sócrates avançou com aquele erro porque antes tinha substituído o salário mínimo pelo IAS (indexante de apoios sociais). Refira-se que o IAS está congelado desde 2009 em 419€. A partir daí, como o salário mínimo deixou de ter custos para o Estado, instalou-se a total irresponsabilidade. Por isso, entendo que a primeira medida que se impõe é a abolição do IAS.

Em 2014, com o aumento exponencial de pessoas a receber a remuneração mínima e o ainda muito elevado desemprego, subir este patamar é um grande risco para os desempregados com menos experiência e mais baixas qualificações.

O salário mínimo, como os outros salários, depende da produtividade e, se queremos aumentar aquele referencial, é essencial tomar medidas que ajudem ao aumento da produtividade, e os parceiros sociais deveriam fazer pressão para o governo eliminar toda a regulamentação cujo único objectivo parece ser infernizar a vida das empresas e impedir a melhoria da produtividade.

Entendo que deveríamos passar a ter uma visão de mais longo prazo e o foco deveria passar do “salário mínimo” para o “poder de compra do salário mínimo”. Esta distinção é importante, por três razões.

Em primeiro lugar, é essencial agir para reduzir o preço de alguns bens, em particular o da habitação, um dos mercados mais distorcidos do país (todo um capítulo que não vou desenvolver agora). Na energia e telecomunicações há certamente a necessidade de intervenção no sentido de aumentar a concorrência e diminuir os impostos específicos (na energia).

Em segundo lugar, devido à dificuldade e tempo que demora a aumentar a produtividade, era importante a criação de um escalão negativo no IRS para os rendimentos mais baixos. Nestes casos, em vez de se pagar imposto, passava-se a receber um subsídio.

Finalmente, para aumentar o poder de compra do salário mínimo era importante diminuir o IVA e outros impostos. Recordo que, quando a taxa normal do IVA foi aumentada, de 17% para 19%, em 2002, este aumento foi anunciado como transitório. Todos sabemos o que se passou entretanto.


Como puderam notar, uma das formas mais evidentes de aumentar o poder de compra de todos os salários é a diminuição de impostos. Mas para que isso seja possível, é essencial que o Estado reduza a sua despesa. Ou seja, espera-se que os maiores defensores da subida do poder de compra do salário mínimo sejam – também – os mais defensores da redução da despesa pública.

[Publicado no DiárioEconómico]

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Educação e consumismo

O consumismo é uma das maiores ameaças de longo prazo ao nosso planeta, que vamos deixar aos nossos filhos.

Apesar dos ajustamentos realizados durante o programa da troika, Portugal continua a exibir um nível de consumo excessivo (em percentagem do PIB), muito acima da média da zona do euro. Se mantivermos o actual nível de consumo, quando o investimento começar a recuperar, como precisamos desesperadamente que aconteça (o actual nível de investimento é insuficiente para repor o stock de capital), voltaremos aos défices externos. Isto seria colocar em causa um dos maiores sucessos do nosso ajustamento e a principal razão porque fomos forçados a pedir ajuda à troika.

Assim, precisamos de consumir menos e poupar mais, para podermos financiar, sem problemas, o investimento de que precisamos para voltar a crescer, o desígnio unânime de todos os partidos políticos.

Olhando a mais longo prazo, é evidente que o consumismo, sobretudo de bens materiais, está a fazer uma pressão terrível sobre o planeta e já estamos numa trajectória insustentável.

Em resumo, há razões de longo e de curto prazo que recomendam – fortemente – que reduzamos o nosso consumo e aumentemos a poupança.

Por tudo isto, precisamos de conduzir campanhas anti-consumismo nas nossas escolas. É escandaloso que, sendo as crianças e os jovens as maiores vítimas potenciais do nosso actual e futuro consumismo, elas sejam estimuladas a participar naquilo que tem mais condições de deteriorar o mundo que vão herdar.

Com a ajuda dos professores de ciências da natureza e ambiente, é urgente instalar nas escolas um ambiente anti-consumismo. Em geral, sou contra obrigações e proibições, preferindo incentivos e desincentivos, que respeitam mais a liberdade, sem (em geral) grandes estragos na eficácia das políticas. Mas, neste caso, em que o que está em causa é a própria sobrevivência do homem no planeta, defendo – excepcionalmente – que sejam introduzidas proibições e obrigações.

Deve passar a ser proibido levar para os estabelecimentos de ensino o último e mais caro modelo de telemóvel e outros gadgets. No caso da roupa sou mais flexível: em vez de proibição, sugiro o pagamento de uma taxa de luxo sobre a roupa de marca mais cara. Deve-se promover a reciclagem de todo o material escolar, como se passa no Norte da Europa. É absurdo que, sendo nós mais pobres, façamos vida de ricos.

Na verdade, o consumismo português tem raízes históricas muito antigas. Já no século XVI Gil Vicente expunha o caso típico do nobre que passava fome, para poder exibir roupas vistosas. No século XVII, foram introduzidas várias leis contra o luxo (as “pragmáticas”), sem grande sucesso. No século XVIII, aquilo que hoje designamos por redistribuição do rendimento era feito ao contrário do que é actualmente: eram as mais importantes famílias nobres, que recebiam as maiores transferências do Estado. Mesmo assim, para prover à “decente sustentação” dos Grandes, quase todas elas tinham as suas finanças em muito mau estado.

Para além de tudo isto, o consumismo português tem uma agravante: a baixa auto-estima nacional gera uma terrível atracção pelos bens importados, de países que encaramos como “melhores” do que nós.

Parece-me útil salientar que esta baixa auto-estima, que começa como uma predisposição subjectiva, acaba por ter consequências objectivas, que reforçam aquela. A nossa baixa auto-estima desencadeia – com demasiada facilidade – mecanismos de auto-sabotagem, que nos conduz a ficarmos aquém do nosso potencial. Ao produzirmos algo que é objectivamente fraco, reforçamos a baixa auto-estima, que aumenta a auto-sabotagem, que produz baixa qualidade, num ciclo interminável.

Para terminar, gostaria de chamar à atenção para uma questão, que pode ser olhada como uma forma encapotada de proteccionismo, mas que coloco no plano ambiental. Prende-se com a pegada ecológica do transporte dos produtos. Da forma mais bem-intencionada, comprei recentemente feijão biológico. Só depois reparei que tinha origem na China e tinha sido embalado na Alemanha. Provavelmente, passou ao largo na costa portuguesa, para depois voltar de camião TIR da Alemanha, um absurdo.


[Publicado no jornal “i”]