quarta-feira, 21 de maio de 2014

Um país desfocado

Parece que a troika é que é o problema e que não foram os nossos erros que nos obrigaram a pedir ajuda

Ao chegar ao fim o programa de resgate da troika, estamos perante um país profundamente desfocado.

Parece que para a maioria dos portugueses e, pior ainda, das “elites”, o principal problema do país são os estragos provocados pela troika. A votação do eleitorado, nas últimas décadas, em governos desastrosos, que nos atiraram para os braços da troika, não constitui o menor problema, o que é mesmo grave é a troika.

Toda a incompetência, irresponsabilidade e corrupção dos governos das últimas décadas é uma questão de somenos. Fizeram-se os mais ruinosos – e suspeitos –contratos públicos, mas o problema mesmo foi a troika. Em vez de enfrentarmos o dificílimo desafio da globalização, andámos a construir estradas sem tráfego e estádios de futebol, mas a Merkel é que é má.

Isto é o equivalente a uma pessoa que fumava três maços de cigarros por dia e que desenvolveu um cancro no pulmão culpar a quimioterapia pelo seu sofrimento. Como se a quimioterapia tivesse caído do céu, por puro sadismo médico, e houvesse uma óbvia alternativa indolor, talvez tomar uma chávena de chá esverdeado com raspas de limão ao pequeno-almoço, almoço e jantar. E já há quem defenda que devemos voltar a fumar dois ou três maços de tabaco por dia.

Em relação ao nosso – grave – problema de (falta de) crescimento, o desnorte não poderia ser maior. Há 15 anos que Portugal enfrenta um problema gravíssimo e raríssimo de fraco crescimento, que nos colocou numa trajectória de divergência estrutural da UE, apesar de estarmos a receber fundos comunitários, com o propósito de convergirmos. Apesar destes desastrosos resultados, parece que ainda ninguém colocou em causa o destino disparatado que tem sido dado a estes fundos, sempre na ânsia de inventar “investimentos” absurdos, para “aproveitar os fundos europeus”.

Parece que a falta de crescimento económico surgiu com a “malvada” troika e que antes disso vivíamos no paraíso, sem a necessidade da mais leve correcção. 

O capítulo das reformas estruturais da troika, que nos permitiriam – talvez – voltar a crescer de forma robusta, foi desvalorizado pelo governo e completamente ignorado e atacado por todas as corporações e interesses, empenhadas em permanecer as mais gulosas sanguessugas do Estado e dos contribuintes.

Nada é mais surreal do que isto. Em vez de sermos nós a preocuparmo-nos com a nossa saúde, são os nossos credores que, contra a “nossa” vontade, mais se preocupam com a nossa saúde. Eles bem tentam que deixemos de fumar, mas “nós” insistimos em voltar a fumar o máximo de cigarros possível. Parece que estamos empenhados em maximizar a cigarra em “nós” e em minimizar a formiga.

Os curandeiros nacionais, numa visão caricatural da teoria keynesiana, insistem em que o nosso problema de crescimento reside na falta de procura, apesar de o nosso crescimento miserável dos últimos 15 anos ter convivido, quase sempre, com um excesso de procura, obviamente visível nos nossos gigantescos défices externos, recentemente corrigidos.

É evidente que a austeridade teve o seu impacto recessivo, mas não é o fim da austeridade que nos vai trazer o crescimento de volta, porque o essencial desse problema é muito mais antigo e está do lado da oferta e não da procura.

Andam para aí umas discussões de mudar umas décimas à austeridade, como se isso mudasse alguma coisa de essencial, quando é uma questão completamente à margem do que é fundamental.

Para voltarmos a crescer a sério temos que nos tornar verdadeiramente atraentes para o investimento directo externo (IDE). Menos austeridade para gastar dinheiro em coisas que tornem Portugal mais atraente para o IDE faz todo o sentido. Menos austeridade para adiar reformas da despesa pública não faz sentido nenhum.

Parece que os portugueses não aprenderam nada com aquilo que nos levou à troika e que caminhamos, na maior das inconsciências, para o quarto resgate externo desde o 25 de Abril.

[Publicado no jornal “i”]

1 comentário:

Anónimo disse...

Já fui seu aluno, há uma série de anos, e já nada me choca. Tanta gente errada e só meia dúzia é que estão certos? Existe uma grande falta de ética na teoria económica actual.