sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Culpa e responsabilidade

A culpa católica gera impotência e um fardo pesadíssimo, enquanto a responsabilidade protestante confere poder pessoal

Na tradição judaico-cristã a culpa ocupa um lugar proeminente. Logo nos primeiros capítulos do Génesis, texto sagrado comum àquelas duas religiões, Adão e Eva cometem o “pecado original” e, por isso, são expulsos do Paraíso. Ou seja, a história do homem começa com uma culpa, de desobediência a Deus.

No judaísmo, quando um homem comete uma má acção contra outro homem, passa a carregar uma culpa. No entanto, para expiar esta culpa, de nada serve pedir perdão a Deus. Para que a culpa seja limpa, é necessário pedir desculpa àquele a quem se causou dano. Julgo que este preceito é extremamente avisado, já que permitirá uma efectiva limpeza da culpa.

Já na tradição católica (ignoremos, por agora, as outras igrejas cristãs), os pecados podem ser perdoados mediante a confissão a um sacerdote e o cumprimento da penitência correspondente, geralmente relativamente leve, composta por algumas orações. Este preceito terá três consequências principais.
Em primeiro lugar, desincentiva o pedido de desculpas directo a quem se prejudicou. No entanto, pedir desculpa tem um efeito altamente curativo nas relações pessoais. Se pedir desculpa em privado é bom, fazê-lo em público é ainda muito mais potente.

Existe um preconceito na classe política portuguesa de que não se deve reconhecer erros nem pedir desculpa. Tenho a certeza que um político que o faça será muito mais considerado por isso e gozará de muito maior confiança, como alguém que tem a coragem de emendar a mão. Mas – atenção! –, o pedido de desculpa tem que ser de uma enorme clareza, quer na assunção da responsabilidade pessoal, quer no pedido de desculpas. Uma vaga e redonda assunção de responsabilidade, remetendo isso, ainda por cima, para muitas outras pessoas, vale pouco.

Em segundo lugar, a confissão atribui uma autoridade desmesurada aos sacerdotes, enfraquecendo brutalmente o poder pessoal dos fiéis. Poder-se-ia pedir perdão directamente, mas não é esse o caso. Assim, existe uma enorme transferência de poder, do indivíduo para as autoridades religiosas, debilitando o estatuto de cada católico. Isto só pode ter os resultados mais nefastos.

Em terceiro lugar, e esta parece-me ser uma das consequências mais negligenciadas, cria-se a ilusão de uma aparente resolução da culpa, que não é verdadeira. Muitos poderão pensar que os católicos inventaram uma forma facílima de resolver a culpa, mas julgo que isso não passa de uma tremenda ilusão. Enquanto, à superfície, a receita católica limpa a culpa com a confissão e penitência, penso que, nos católicos, a culpa permanece, quase intacta, na sombra.

Os católicos sofrerão, assim, por esta via, de dois problemas. Por um lado, de uma drástica redução do poder pessoal, de impotência. Por outro, de um fardo crescente de culpa, mantida no subconsciente, e nunca verdadeiramente resolvida.

Confrontado a solução judaica com a católica, em relação à culpa, vemos que aquela apresenta uma verdadeira solução, enquanto esta mascara o problema.

Nos países católicos, como Portugal, não pensem que pelo facto de não estarem oficialmente filiados na igreja vos coloca a salvo desta formatação.

A revolta protestante (a Reforma), no século XVI, contra o poder e prepotência de Roma, vieram devolver o poder pessoal aos protestantes. Por isso, as tradições protestantes atribuem muito maior importância à responsabilidade do que à culpa. Aliás, os textos sagrados seguidos pelos protestantes resumem-se ao Novo Testamento, que lêem “religiosamente”, não incluindo o Génesis.

Pergunto-vos: onde deverá haver maior realização pessoal? Nos países onde as pessoas são infantilizadas ou onde são tratadas como adultos? E onde deverá ser maior a realização colectiva, que também se pode designar como desenvolvimento a todos os níveis?


Se esta marca da culpa é tão antiga e está tão enraizada, poderá parece fútil sequer tentar mudá-la. No entanto, acredito que a tomada de consciência poderá ajudar a modificar alguma coisa. E, se não se pode transformar tudo de repente, em algum lado e em algum momento é necessário começar. 

[Publicado no jornal i]

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