A culpa católica gera
impotência e um fardo pesadíssimo, enquanto a responsabilidade protestante
confere poder pessoal
Na tradição judaico-cristã a culpa ocupa um lugar
proeminente. Logo nos primeiros capítulos do Génesis, texto sagrado comum
àquelas duas religiões, Adão e Eva cometem o “pecado original” e, por isso, são
expulsos do Paraíso. Ou seja, a história do homem começa com uma culpa, de
desobediência a Deus.
No judaísmo, quando um homem comete uma má acção contra
outro homem, passa a carregar uma culpa. No entanto, para expiar esta culpa, de
nada serve pedir perdão a Deus. Para que a culpa seja limpa, é necessário pedir
desculpa àquele a quem se causou dano. Julgo que este preceito é extremamente
avisado, já que permitirá uma efectiva limpeza da culpa.
Já na tradição católica (ignoremos, por agora, as outras
igrejas cristãs), os pecados podem ser perdoados mediante a confissão a um
sacerdote e o cumprimento da penitência correspondente, geralmente
relativamente leve, composta por algumas orações. Este preceito terá três
consequências principais.
Em primeiro lugar, desincentiva o pedido de desculpas
directo a quem se prejudicou. No entanto, pedir desculpa tem um efeito
altamente curativo nas relações pessoais. Se pedir desculpa em privado é bom,
fazê-lo em público é ainda muito mais potente.
Existe um preconceito na classe política portuguesa de que
não se deve reconhecer erros nem pedir desculpa. Tenho a certeza que um
político que o faça será muito mais considerado por isso e gozará de muito
maior confiança, como alguém que tem a coragem de emendar a mão. Mas – atenção!
–, o pedido de desculpa tem que ser de uma enorme clareza, quer na assunção da
responsabilidade pessoal, quer no pedido de desculpas. Uma vaga e redonda
assunção de responsabilidade, remetendo isso, ainda por cima, para muitas
outras pessoas, vale pouco.
Em segundo lugar, a confissão atribui uma autoridade
desmesurada aos sacerdotes, enfraquecendo brutalmente o poder pessoal dos
fiéis. Poder-se-ia pedir perdão directamente, mas não é esse o caso. Assim,
existe uma enorme transferência de poder, do indivíduo para as autoridades
religiosas, debilitando o estatuto de cada católico. Isto só pode ter os
resultados mais nefastos.
Em terceiro lugar, e esta parece-me ser uma das
consequências mais negligenciadas, cria-se a ilusão de uma aparente resolução
da culpa, que não é verdadeira. Muitos poderão pensar que os católicos
inventaram uma forma facílima de resolver a culpa, mas julgo que isso não passa
de uma tremenda ilusão. Enquanto, à superfície, a receita católica limpa a
culpa com a confissão e penitência, penso que, nos católicos, a culpa
permanece, quase intacta, na sombra.
Os católicos sofrerão, assim, por esta via, de dois
problemas. Por um lado, de uma drástica redução do poder pessoal, de
impotência. Por outro, de um fardo crescente de culpa, mantida no
subconsciente, e nunca verdadeiramente resolvida.
Confrontado a solução judaica com a católica, em relação à
culpa, vemos que aquela apresenta uma verdadeira solução, enquanto esta mascara
o problema.
Nos países católicos, como Portugal, não pensem que pelo
facto de não estarem oficialmente filiados na igreja vos coloca a salvo desta
formatação.
A revolta protestante (a Reforma), no século XVI, contra o
poder e prepotência de Roma, vieram devolver o poder pessoal aos protestantes.
Por isso, as tradições protestantes atribuem muito maior importância à
responsabilidade do que à culpa. Aliás, os textos sagrados seguidos pelos
protestantes resumem-se ao Novo Testamento, que lêem “religiosamente”, não
incluindo o Génesis.
Pergunto-vos: onde deverá haver maior realização pessoal?
Nos países onde as pessoas são infantilizadas ou onde são tratadas como
adultos? E onde deverá ser maior a realização colectiva, que também se pode
designar como desenvolvimento a todos os níveis?
Se esta marca da culpa é tão antiga e está tão enraizada,
poderá parece fútil sequer tentar mudá-la. No entanto, acredito que a tomada de
consciência poderá ajudar a modificar alguma coisa. E, se não se pode
transformar tudo de repente, em algum lado e em algum momento é necessário
começar.
[Publicado no jornal i]
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