sexta-feira, 24 de maio de 2013

Pedido ao BCE

O BCE tem um mandato muito estrito, a estabilidade de preços, mas tem feito uma leitura excessivamente restritiva do seu papel. É certo que não tem que se preocupar – explicitamente – com o pleno emprego, como a Reserva Federal dos EUA, mas não poderia fazer mais pela retoma europeia?
Dado o enorme desfasamento da política monetária, não se compreende o adiamento sucessivo da descida das taxas de juro de referência.
Para além daquilo que o BCE pode fazer directamente, há também aquilo que poderia fazer em termos de aconselhamento aos actores políticos, em dois planos, o conjuntural e o da arquitectura do euro. O euro está em risco em ambos estes planos e não parece exagerado pedir ao BCE que ajude a garantir as condições de sobrevivência da moeda da qual é emissor.
O clima recessivo que se vive na zona do euro tem todas as condições para criar graves problemas nos países periféricos, que podem desencadear um efeito dominó de consequências catastróficas. Os níveis elevados e crescentes de desemprego arriscam-se a ter não só consequências económicas, mas também políticas.
No plano conjuntural, o BCE poderia instar os países com condições para isso, em particular a Alemanha, a adoptar políticas orçamentais expansionistas, que poderiam melhorar as condições económicas em toda a área do euro.
No plano da arquitectura do euro, esta moeda está longíssimo de preencher os requisitos de uma área monetária óptima e, por isso mesmo, corre sérios riscos de não sobreviver a prazo.
Neste plano, o BCE deveria ser um advogado muito mais vigoroso da criação das condições de transformação do euro numa área monetária óptima. Em particular deveria pugnar pela melhoria dos mercados de trabalho e pela criação de um verdadeiro orçamento federal.
Em termos do mercado de trabalho, é necessária maior flexibilidade dentro de cada país e uma maior mobilidade dentro do conjunto da zona do euro.
Em termos de um verdadeiro orçamento federal, é necessário caminhar, quer se queira quer não, para uma união de transferências.
Dir-me-ão que os pedidos que faço são irrealistas, ideia com a qual concordo. Mas se o BCE colocar, de forma claríssima, em cima da mesa, as condições de sobrevivência do euro e estas se revelarem totalmente impraticáveis, então isso obriga a passar o debate para outro plano.
Se criar as condições de sucesso do euro é politicamente impossível, então o seu fim é inevitável a prazo e devemos deixar-mo-nos de “paninhos quentes” e passar a discutir as condições de desagregação ordenada do euro.

Se o BCE confrontar os líderes políticos com as suas responsabilidades ainda poderemos ter algumas surpresas positivas. De outro modo, caminharemos inexoravelmente para a catástrofe final, desencadeando um tsunami financeiro de proporções bíblicas, com gravíssimas consequências políticas, a nível da própria UE.

 [publicado no Jornal de Negócios, a 18 Abril 2013]

Herança liberal

Ainda que não o desejasse, Thatcher ajudou a criar as bases da actual crise global

A ideologia sobre as políticas públicas tende a oscilar entre dois polos: o Estado e o mercado. A partir dos anos 30 do século passado, o pêndulo estava claramente do lado do Estado, com uma clara preferência por políticas intervencionistas.
Nos anos 70 deu-se uma clara alteração deste estado de coisas, primeiro com os fracassos económicos do intervencionismo, com o surgimento da estagflação: inflação e desemprego elevados; depois com a valorização dos teóricos liberais, como Hayek e Friedman, prémios Nobel da economia em 1974 e 1976, respectivamente; e, finalmente, com a ascensão ao poder de políticos liberais, como Thatcher e Reagan, em 1979 e 1981, respectivamente.
Thatcher lançou um programa de liberalização da economia, com privatizações maciças, que acabaram por contagiar a generalidade dos países, para além do contributo para a liberalização política, nomeadamente para a queda dos regimes comunistas.
Julgo que se deve elogiar a inovação empresarial versus uma demasiado frequente inércia burocrática do Estado. Por outro lado, se as empresas se desviam do bem comum, que nem é o seu propósito central, é também vulgar isso acontecer no Estado, onde o bem estar geral deveria ser acautelado.
Mas a vitória política – relativa – liberal, dos mercados sobre o Estado, encerra em si uma dura ironia.
É que há várias estruturas de mercado possíveis, desde o extremo da concorrência perfeita, passando pelos oligopólios (mercados com poucas empresas, com poder de influenciar os preços), até ao outro extremo, o monopólio, onde o poder de mercado é máximo.
Do ponto de vista teórico, os mercados de concorrência perfeita apresentam vantagens admiráveis, por produzirem os resultados mais eficientes e por serem os mais equitativos. Já os mercados em oligopólio e monopólio são muito menos interessantes, por produzirem ineficiências e graves problemas de equidade.
Ou seja, a defesa do “mercado” só faz verdadeiramente sentido quando falamos de mercados de concorrência perfeita ou perto disso, já que nos outros casos é necessária uma forte intervenção do Estado (que só em teoria é que funciona bem), para minorar as sérias deficiências que as outras estruturas de mercado encerram.
Há aqui dois problemas. Por um lado, a sofisticação das economias e dos produtos afasta-nos cada vez mais do paradigma da concorrência perfeita. Por outro, deixadas a si próprias, as empresas farão tudo para se desviarem da concorrência perfeita, onde os lucros são mínimos.
Assim, deixados a si próprios, os mercados tenderão, naturalmente, a produzir os piores resultados, o mais afastados possível do caso em que os mercados produzem as consequências socialmente mais interessantes (em concorrência perfeita).
Gerou-se então um grave equívoco, que designei de “dura ironia”, em que, quanto mais se defende a liberdade dos mercados (a menor intervenção pública possível), mais nos afastamos das vantagens dos mercados.
O cúmulo desta “dura ironia” ocorreu com a liberalização financeira da primeira década do século XXI. Ao permitir a criação de um sistema financeiro e bancário “sombra”, sujeito a uma regulamentação mínima, permitiram-se os maiores desmandos, que deram origem à crise financeira iniciada em 2007, que colocou o mundo na mais grave crise económica desde a Grande Depressão, iniciada em 1929.
O sucesso político do liberalismo não só trouxe esta grande crise, como trouxe mudanças profundas em termos sociais, com uma profunda alteração dos valores sociais. Uma das mais graves foi a transformação da ganância numa virtude, uma das novidades mais lamentáveis.
O mundo não pára e, havendo muitos aspectos interessantes a reter do liberalismo, há também muitas correcções a fazer. 

[publicado no i, a 17 Abril 2013]

Ajustamento “temporário”?

Todos os orçamentos das próximas décadas podem-se dividir em duas categorias: os quase impossíveis e os dificílimos

Os tribunais comuns e mesmo os especializados precisam de assessoria sobre matérias não jurídicas mas, infelizmente, é raro recorrerem a elas. O Tribunal Constitucional (TC), perante a avaliação do orçamento de 2013, também deveria ter pedido auxílio sobre economia e contas públicas, para decidir melhor.
O TC pareceu estar alheado do enquadramento económico e financeiro em que o país está, mas teve o cuidado de anunciar a sua decisão, na sexta-feira ao final da tarde, depois dos mercados financeiros terem fechado. Esta escolha revelou-se duplamente sensata. Por um lado, salvou o tribunal de ser o responsável por uma subida imediata das taxas de juro, o que tornaria evidente para todos as consequências das suas decisões. Por outro, deu tempo ao governo para reagir, que este aproveitou.
Ou seja, a reacção de segunda-feira nos mercados já foi um misto da novidade do acórdão do TC, com a resposta do governo de encontrar alternativas sem recorrer à subida de impostos. Atendendo à subida moderada das taxas de juro da dívida portuguesa pode-se dizer que, para já, o governo mantém a confiança dos mercados, aguardando-se que medidas concretas irá propor e como estas serão avaliadas pela troika.
Deve dizer-se que o TC parece não se dar bem com cortes dos salários nominais. Mas cortes de salários reais muitíssimo maiores foram perfeitamente constitucionais em 1978 e 1983 quando Portugal teve de recorrer ao FMI. Portanto parece que a nossa Constituição só se dá bem em períodos com a inflação elevada. Parece que não podemos corrigir as nossas contas públicas sem inflação e dento do euro. As medidas que foram constitucionais em 1978 e 1983 agora não o são. Só serão constitucionais se Portugal sair do euro? Portanto, em certo sentido, o risco é o de que se não conseguirmos reduzir as contas públicas e cumprir o Memorando vamos entrar em bancarrota e ser forçados a sair do euro, o que seria perfeitamente conforme a Constituição.
Uma das ideias do TC que mais choca é a ideia, repetida, de que os cortes podem ser temporários, devendo o executivo procurar alternativas entretanto. Mas que alternativas? Despedimentos em massa na função pública?
Em relação a esta fantasia de que estamos perante um problema temporário, é preciso salientar, em primeiro lugar, que ainda faltam muitos anos até conseguirmos baixar o défice para níveis claramente inferiores a 3% do PIB. A experiência recente, de sucessivos adiamentos desta meta, sugere que ainda haverá novos adiamentos, não só devido à conjuntura portuguesa, mas também devido às dificuldades da economia europeia, destino destacado das nossas exportações.
Em segundo lugar, o nível elevadíssimo de dívida pública que acumulámos até aqui (mais de 120% do PIB) vai colocar uma pressão brutal sobre as contas públicas durante as próximas décadas, em que qualquer desvio, infelizmente demasiado provável, corre o risco de a tornar insustentável.
Em terceiro lugar, os compromissos com as PPP constituem uma dívida pública “sombra”, a somar à dívida directa, agravando os riscos já referidos.
Em quarto lugar, Portugal está a sofrer um dos mais rápidos processos de envelhecimento da população, fenómeno que não tem fim à vista. Este envelhecimento coloca uma pressão esmagadora sobre as contas públicas por duas vias: pelos encargos com a saúde, agravados pelos progressos tecnológicos; e pelos encargos com as pensões, que terão que sofrer reformas profundas e drásticas.

Assim, todos os orçamentos das próximas décadas podem-se dividir em duas categorias: os quase impossíveis e os dificílimos. É favor acabar com a fantasia de que estamos a passar por uma dificuldade temporária.

[publicado no i, a 10 Abril 2013]

O poder natural da Alemanha

A Alemanha foi forçada a aderir ao euro e adquiriu imenso poder, quase contra a sua vontade

A UE foi construída para garantir a paz na Europa, mas também para conter a Alemanha, que iniciou as duas guerras mundiais. Com a queda do muro de Berlim em 1989, abriu-se o caminho para a reunificação alemã, que teve lugar no ano seguinte.
No entanto, aquele processo de engrandecimento veio gerar uma enorme preocupação junto dos seus parceiros comunitários, que quase o tentaram impedir. A forma de contornar a questão foi forçar a Alemanha a aceitar ceder o marco alemão e trocá-lo pelo euro.
Dada a evolução histórica, em que a Alemanha passou a dominar decisivamente o euro e, em grande medida, a UE, já muita gente esqueceu o início deste processo. Há imensa gente que está firmemente convencida que o euro foi uma ideia germânica, para dominar a Europa. Mas a origem da moeda única é exactamente a oposta: o euro foi criado para impedir que a Alemanha ficasse com demasiado poder e foi dificílimo conseguir que o eleitorado alemão prescindisse do seu marco, um símbolo decisivo do pós-guerra germânico.
Mas então, o que fez que a Alemanha adquirisse tanto poder dentro da UE e do euro?
Ainda antes da reunificação, a Alemanha já tinha a maior economia da UE. Com a reunificação, distanciou-se ainda mais da dimensão dos maiores países da UE.
A Alemanha é o maior contribuinte líquido para o orçamento comunitário por duas razões. Desde logo por ser a maior economia e fazer parte do grupo dos mais ricos. Por outro lado, por não ter nenhuma especificidade que a leve a diminuir esta contribuição.
O Reino Unido, desde o tempo de Margaret Thatcher, negociou receber de volta o “cheque britânico”, que lhe limita claramente a contribuição. A França, é o maior beneficiário da Política Agrícola Comum (PAC), a cuja reforma se tem oposto de forma escandalosa. A Alemanha, muito provavelmente devido à sua má consciência em relação à II Guerra Mundial, não tem regateado a sua generosa contribuição financeira para as contas comunitárias.
De novo por força da sua dimensão económica, a Alemanha é também o maior contribuinte para o financiamento dos resgates a todos os países que já solicitaram ajuda durante o período da crise do euro. Como já alguém disse “quem paga, manda”.
Uma das imagens de marca do “milagre alemão” do pós-guerra é o seu sucesso exportador, que gerou continuados superavits externos. Esta característica foi interrompida nos anos 90, fruto da enorme despesa realizada com a reunificação, mas foi recuperada no início do século XXI.
Dentro do euro, este superavit externo fez com que o Bundesbank passasse a ser o grande credor dos bancos centrais dos países periféricos, quase todos eles com graves défices de contas externas.
A condição de grande credor confere-lhe, obviamente, não só um grande interesse como um grande poder sobre os países devedores, que foram acumulando dívidas externas gigantescas, com destaque para o caso da Grécia e de Portugal.
Um dos mais claros sucessos da Alemanha do pós-guerra foi a sua capacidade de gerar, em simultâneo, uma das inflações mais baixas da Europa e superavits externos significativos e continuados.
Este sucesso produziu uma sustentada apreciação do marco alemão face à generalidade das moedas europeias durante todo o pós-guerra e uma enorme credibilidade monetária deste Estado.
Em resultado de tudo isto, a Alemanha conquistou o estatuto de “país refúgio” dentro da zona do euro. Isto criou uma procura extraordinária de activos alemães, em particular de dívida pública, que este país chegou a conseguir colocar a taxas de juro nominais negativas.

Todas estas razões conferem à Alemanha um poder natural dentro do euro. Para além deste poder natural existem mais duas razões, de outra natureza, que aumentam o poder germânico. A primeira é que este país foi forçado a aderir ao euro e exigiu como contrapartida que a nova moeda fosse desenhada à imagem e semelhança do marco alemão. Assim, qualquer desvio do traçado inicial conhecerá uma fortíssima oposição alemã. A segunda razão é que ao eleitorado alemão foi garantido que nunca teriam que pagar as dívidas de outros e é isto que justifica muita da intransigência de Merkel.

[publicado no i, a 3 Abril 2013]

sexta-feira, 29 de março de 2013

Chipre e Portugal



As lições mais imediatas de Chipre para Portugal prendem-se com as recomendações que fiz aqui, a 1 de Fevereiro do ano passado, sobre os riscos de fim do euro.

Sugeri que as pessoas tivessem em casa o equivalente a entre 15 dias e um mês de rendimento e que acumulassem na sua habitação também alguma comida para um período semelhante.

É importante salientar que, apesar de Chipre não ter saído do euro, o acesso ao Multibanco local foi bloqueado no dia em que os problemas começaram. Foi decretado feriado bancário e as pessoas não puderam levantar nenhum dinheiro dos bancos. Alguns dias depois começou a ser possível levantar algum dinheiro do Multibanco, mas de forma muito restrita. Se Chipre tivesse saído do euro, estes levantamentos limitados não poderiam ter lugar, simplesmente porque não haveria notas da nova moeda para distribuir.

Uma outra questão importante é que neste estado deixou de haver liberdade de circulação de capitais, e isso não deverá ser reposto tão cedo, apesar das promessas das autoridades europeias. Em certo sentido, um euro em Chipre já não é a mesma coisa que um euro nos outros países da moeda única.

Não há, para já, notícias de interrupção de fornecimentos de alimentação em Chipre, mas, de novo, é imperioso advertir que a crise neste país é, apesar de tudo, limitada porque este estado ainda permanece no euro. A partir do momento em que sair tudo se irá tornar muito mais complicado.

Aproveito, assim, para reiterar as recomendações que fiz há cerca de um ano, agora que a experiência de Chipre as tornou muitíssimo mais plausíveis.

Chipre e o fim do euro


Lições de demagogia