“A” esquerda só deve
derrubar o governo depois de os seus acordos passarem o teste de uma discussão
pública alargada
Um dos defeitos da nossa constituição é ter sido feita com
demasiado medo do regresso ao Estado Novo, o que, quarenta anos depois, deveria
ser um argumento de revisão constitucional, para limpar todos os resquícios
decorrentes disso.
Um dos exemplos daquele defeito, foi o medo de governos de
maioria absoluta, que foram dificultados pela escolha do sistema eleitoral (art.
149º da constituição). Felizmente, houve a prudência de assumir as
consequências disto e facilitar a sobrevivência de executivos de maioria
relativa, já que o programa de governo é apenas submetido a uma “apreciação”
pelo parlamento (art. 192º). Neste artigo (alínea 3) se define que “O debate
[do programa de governo] não pode exceder três dias e até ao seu encerramento
pode qualquer grupo parlamentar propor a rejeição do programa ou o Governo
solicitar a aprovação de um voto de confiança.” Sublinhe-se que nenhuma destas
acções é obrigatória, apenas “podem” ocorrer.
Mas, uma vez sobrevivendo a este obstáculo mínimo, que pode
não envolver qualquer tipo de votação, um executivo minoritário pode sempre ser
deposto se uma maioria de deputados aprovar uma moção de censura “sobre a
execução do (…) programa [de governo] ou assunto relevante de interesse
nacional” (art. 194º).
Considero que, da forma como têm vindo a decorrer as
negociações à esquerda, deveria haver calma na oposição e não apresentar uma
moção de censura quando o governo apresentar o seu programa na AR. Dentro em
breve poderão deitar abaixo o executivo, usando como “assunto relevante de
interesse nacional” as linhas gerais da proposta orçamental para 2016 que até
já deveriam ter sido enviadas a Bruxelas e que as esquerdas não terão qualquer
dificuldade em criticar.
A minha insistência no adiamento de uma eventual moção de
censura é porque há sérias dúvidas sobre a consistência do resultado das
negociações à esquerda, com uma extraordinária multiplicação de declarações
contraditórias, como a de Jerónimo de Sousa, de que o PCP nunca respeitará o
Tratado Orçamental.
Penso que há algumas questões que seria útil ponderar. Em
primeiro lugar, “a” esquerda deve perder a pressa de derrubar o governo, o que
poderá sempre fazer algumas semanas depois.
Em segundo lugar, talvez seja necessário mais algum tempo
até que “a” esquerda chegue a um acordo e, sem o limite da apreciação do
programa de governo, haverá mais oportunidades de diálogo. Este ponto é uma
mera possibilidade, já que a disponibilidade de mais tempo também pode arrastar
negociações muito difíceis.
Em terceiro lugar, os acordos a que conseguirem chegar devem
ser colocados em apreciação pública durante, digamos, duas semanas.
Dadas todas ambiguidades a que temos assistido, não é – de
todo – de excluir que os textos acordados sejam objecto de leituras
completamente díspares por parte dos signatários. No limite, até se pode chegar
ao ponto de haver tantos desmentidos de parte a parte, que um dos partidos (provavelmente
o PCP) desista do acordo. Mesmo que não se chegue a um tal extremo, é provável
que se torne evidente, sobretudo para António Costa, das enormes fragilidades
que unem a maioria de esquerda.
Se se revelarem demasiadas divergências, julgo que será
preferível, sobretudo para o PS (mas não para António Costa), não tentar
construir um governo numa base tão pouco segura.
Este adiamento que proponho de uma eventual moção de censura
ao governo não será, de modo algum, uma “perda de tempo”, já que um executivo
de esquerda rapidamente abortado seria a mais grave perda de tempo – e dinheiro
– para o país.
[Publicado no jornal “i”]
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