sábado, 21 de fevereiro de 2015

Saída ordeira

Hoje alguns gostariam que o euro tivesse incluído uma “cláusula de saída ordeira”, mas isso seria impossível

Num artigo publicado a dois deste mês, no Público, João Carlos Espada escreve: “o euro deveria desde o início ter previsto uma cláusula de saída ordeira. A disciplina orçamental a ele — justamente — associada devia desde o início ter sido apresentada como facultativa. Os países cujos Parlamentos não quisessem seguir aquela disciplina poderiam sair do euro.”

A ideia é atraente, mas apresenta vários problemas. A primeira questão é que os países que não quisessem seguir a disciplina orçamental nem sequer seriam admitidos no clube.

Infelizmente, em vez de fazer do euro um clube restrito, pretendeu-se alargá-lo o mais possível, tendo sido favorecida a entrada daqueles que iludiram descaradamente as exigências orçamentais, como os gregos, como aqueles que as desrespeitaram com mais recato, usando a contabilidade criativa das PPP, como foi o caso de Guterres.

Para além disso, uma “cláusula de saída ordeira” definiria os termos em que os contratos seriam transformados aquando de uma saída, pelo que, na prática, os contratos nunca seriam realizados em euros mas, em última análise, na nova moeda nacional de cada país membro do que seria uma muito estranha união monetária.

Até à crise do euro, que eclodiu no final de 2009, havia um único mercado monetário do euro, que entretanto se fragmentou em mercados nacionais. Ora, se houvesse a tal cláusula de saída nunca teria chegado a haver um verdadeiro mercado único do euro, porque os credores saberiam que, a qualquer momento, os seus créditos poderiam passar a estar denominados em novos dracmas (ou outra qualquer moeda).

Mas, muito curiosamente, se uma tal cláusula existisse, muitos dos erros cometidos jamais poderiam ter tido lugar. As taxas de juro de longo prazo entre a Grécia e a Alemanha nunca se teriam estreitado tanto, não permitindo uma folga orçamental que os gregos desbarataram.

Para alem disso, a disparatadíssima tese de Constâncio, de que o conceito de défice externo tinha deixado de fazer sentido, jamais poderia ter circulado, nem alguma vez seria tolerada a absurda acumulação de dívida externa por Portugal, em larga medida fruto da cegueira de Constâncio.

Ou seja, por mais atraente que possa parecer, a posteriori, uma cláusula de saída do euro nunca poderia ter feito parte do pacote inicial, porque constituiria a negação da própria moeda única.

Ainda que essa cláusula não tenha existido inicialmente, será concebível que haja uma saída ordeira neste momento? Como é evidente, esta não é uma questão ociosa, já que fontes do governo alemão já equacionaram a saída da Grécia e consideram mesmo que não seria nada de preocupante.

A primeira questão que era útil resolver era permitir que um país saísse do euro sem sair da UE, o que actualmente não é possível. Mas, na verdade, a criação desta cláusula neste momento jamais poderia ser lida como uma norma abstracta, antes feita a pensar na Grécia e em Chipre, podendo mesmo apressar uma eventual saída, ao provocar uma fuga generalizada de depósitos.

Para além disso, uma saída ordeira exige duas questões que é quase impossível conseguir em simultâneo, devido aos diferentes planos temporais que envolvem. Por um lado, é necessário tratar de toda a parte logística, de imprimir novas notas e cunhar novas moedas, adaptar sistemas de pagamento automático, etc. Por outro, é necessária a negociação da transição dos contratos entre o euro e a nova moeda, provavelmente diferente no caso de residentes e no caso de não residentes, como lidar com as dívidas externas e do banco central envolvido, etc.

Enquanto o primeiro tema exige um trabalho que demorará alguns meses, o segundo tema terá que ficar solucionado, no máximo, num fim-de-semana alargado. Há quem possa pensar que se poderia arrancar com as questões logísticas previamente, mas isso é impraticável, porque exigiria um nível de segredo difícil de garantir. A partir do momento que começassem a ser impressas notas de novos dracmas, seria (quase) impossível impedir a difusão de tal notícia.


 [Publicado no jornal“i”]

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