domingo, 15 de fevereiro de 2015

Pressionar Merkel

O governo português deveria aliar-se à Comissão Europeia e ao FMI e pressionar a Alemanha a reduzir o seu excedente externo.

Por estas semanas, o novo governo grego tem feito as pressões mais desastradas sobre os seus parceiros europeus, parecendo mais empenhado em conquistar o maior número de inimigos do que em maximizar o número de aliados. Supostamente, pretendiam recuperar soberania, mas é óbvio que não se prepararam devidamente para tão exigente tarefa, tendo vindo a acumular uma extraordinária sucessão de tiros no pé, cujo resultado é incerto.

O governo irlandês, apesar de mostrar um enorme cepticismo em relação às exigências helénicas, já avisou que exige que qualquer tipo de concessão à Grécia terá que ser estendida ao seu país. No extremo oposto, o governo português tem-se caracterizado por uma total e excessiva subserviência aos ditames de Berlim.

Por coincidência (ou talvez não), Vítor Bento publicou esta semana um artigo muito importante no “Observador”, que merecia muito mais destaque do que recebeu. Temo que estejamos mais uma vez perante aquela desgraça nacional que José Gil identificou como “não inscrição”, que se caracteriza pelo facto de as coisas importantes não deixarem marca. Esta “não inscrição”, mais do que um problema de falta de inteligência, de incapacidade de distinguir o essencial do acessório, parece constituir um problema emocional, de recalcamento e não resolução das emoções passadas.

O referido artigo de Vítor Bento intitula-se “Eurocrise: uma outra perspectiva” e analisa (muito bem) a crise do euro, não como uma crise de finanças públicas, mas como uma crise de “balança de pagamentos num regime de câmbios fixos”. Quase desde o início do euro, os países que hoje estão em crise registaram elevadíssimos défices externos, enquanto a generalidade dos países do Norte registou elevados excedentes.

Quando a crise rebentou, os países com elevados défices externos foram obrigados a corrigir estes défices indirectamente, através da austeridade, enquanto ao segundo grupo de países nada foi exigido. Como o autor bem identifica, este é um problema clássico de assimetria na correcção de desequilíbrios externos, em que a pressão para a diminuição dos desequilíbrios está toda do lado dos deficitários. No entanto, um défice externo só pode existir porque há superavits noutros países, porque o saldo externo do mundo como um todo é necessariamente zero.

A partir daqui, distancio-me do artigo de Vítor Bento, quando ele entra nas propostas de solução, porque defende um tipo de solução federal, de criação de um orçamento federal. Não concordo com uma solução federal por duas razões: por um lado, porque discordo de uma maior transferência de soberania, defendo mesmo que deveria haver um recuo ao que já foi transferido; por outro, porque me parece politicamente impraticável, já que a integração europeia já cria anti-corpos há vários anos e porque os países do Norte jamais aceitarão uma tal solução.

Dito isto, aquele artigo dá argumentos a Portugal, factuais e sólidos, para pressionar a Alemanha a ajudar o ajustamento do Sul. O superavit externo alemão, de 7% do PIB, é absurdamente elevado, tendo mesmo ultrapassado o excedente externo chinês em 2014 (em termos nominais). Enquanto este país reduziu o seu superavit de 10% do PIB em 2007 para pouco mais de 2% do PIB, a Alemanha continua sem o ajustar.

Este elevadíssimo excedente externo alemão é mau para a zona do euro, que sofre de um défice de procura interna e também é mau para a economia mundial, que sofre de um mal semelhante.

Por isso, não será difícil formar uma coligação alargada de aliados nesta pressão sobre a Alemanha, quer dentro da zona do euro, incluindo a França e a Comissão Europeia, quer fora, incluindo o FMI.

Pede-se aos países com elevados excedentes externos (mas sem dívidas externas significativas) que os reduzam, deixando-lhes liberdade sobre ao forma como o pretendem alcançar, respeitando a sua soberania, mas exigindo o seu contributo para políticas macroeconómicas coordenadas e sustentáveis para o conjunto a zona do euro.


 [Publicado no jornal“i”]

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