A Alemanha encontra-se
na situação paradoxal de pretender uma Europa alemã e ser uma potência
relutante
A queda do muro de Berlim, há 25 anos, abriu caminho para a
reunificação alemã, que teve lugar no ano seguinte. Esta reunificação teve
várias consequências, que interessa analisar. Em primeiro lugar, foi sentido
pelos alemães como uma normalização do seu estatuto, colocando um fim à menorização
e culpabilização que sentiam pelo seu papel na II Guerra Mundial. Até aí, a
Alemanha pagava, sem exigir muito em troca, umas “reparações de guerra”
voluntárias. O poder político deste país cresceu, assim, por duas vias: porque
passou a ser maior e porque deixou de ter vergonha de assumir a sua força
natural.
Em segundo lugar, esta normalização e o elevado custo que
teve que suportar com a reunificação tornou-a também duplamente menos
disponível para contribuir para os outros. Por um lado, porque sentia que o
castigo já tinha chegado ao fim e, por outro, porque tinha já uma enorme
despesa com a Alemanha de Leste.
Em terceiro lugar, houve uma certa apreensão de alguns
parceiros comunitários em relação a este Estado reunificado e (santa
ingenuidade!) exigiram-lhe a participação na moeda única. A esmagadora maioria
do eleitorado alemão, bem como o Bundesbank, não queria, de forma alguma, ceder
o Deutsche Mark. Com base nessa relutância, o chanceler Helmut Kohl impôs
condições duríssimas para participar no que viria a ser o euro, na expectativa
de elas serem rejeitadas e toda essa ideia abandonada. Para seu grande espanto,
as condições germânicas foram aceites e a nova moeda europeia foi criada à
imagem e semelhança do marco.
Isto é tão extraordinário e espantoso que tem que ser
sublinhado: o euro deu um poder desmedido à Alemanha, de mandar sobre os
orçamentos dos outros países, que nunca teria se se tivessem mantido as moedas
nacionais. No entanto, a Alemanha foi forçada a adoptar o euro, para que o seu
poder fosse contido. Pior era impossível.
Hoje em dia, a Alemanha é acusada, em simultâneo, de querer
uma Europa alemã e, contraditoriamente, de ser uma potência relutante.
O que seria uma Europa alemã? Podemos encarar duas
respostas: i) uma Europa subjugada aos interesses alemães; ii) uma Europa
forçada a imitar os valores alemães.
Ambas estas vertentes fazem sentido. Ao exportar para o Sul
da Europa e o resto do mundo, com um euro mais fraco do que seria o marco
alemão, a Alemanha teria beneficiado com o euro (se ignorarmos que o Sul pode
não vir a pagar as suas dívidas).
Por outro lado, o desejo alemão de cumprimento de estritas
regras orçamentais poderá ser encarado como a forma mais evidente de pretender
transformar toda a Europa numa ampliação da Alemanha. No entanto, se
analisarmos bem este “desejo” o que está verdadeiramente na sua base é uma
enorme relutância em pagar qualquer tipo de consequência da falta de rectidão
orçamental dos outros países. E é impossível não associar esta relutância ao cansaço
de contribuição para o alargamento da Alemanha.
Há aqui outra questão, que tem a ver com o facto de a
palavra germânica para “dívida” (Schuld) ser a mesma para “culpa”. Ou seja, há
uma identificação profunda entre indisciplina orçamental e erros moralmente
muito reprováveis. Daí também uma dificuldade germânica em ter uma visão
racional sobre a política económica na zona do euro, esmagada pela avaliação ética,
ainda por cima agravada por uma rigidez moral de raiz protestante, dominante no
Norte da Europa.
Também se pode dizer que há um elemento de potência
relutante no facto de a Alemanha não ter nem se preocupar em ter uma genuína
solução para a zona do euro, que vai andando sem grande rumo, até aquilo que
presumo venha a ser a implosão final, aquando da próxima crise internacional. A
relutância em liderar é tão grande que a Alemanha nem sequer aproveita a
circunstância de ser o único Estado europeu que poderia liderar um pacote
orçamental expansionista. Isto quando há queixas generalizadas sobre o estado
das infra-estruturas neste país, inclusive algumas essenciais para a exportação
de mercadorias, e este Estado conseguir financiar-se a uma taxa de juro real
nula (!) a dez anos.
[Publicado no jornal“i”]