quarta-feira, 9 de abril de 2014

Intolerância ao erro

Em Portugal, a intolerância ao erro é, paradoxalmente, uma enorme fonte de bandalheira

Os erros são a coisa mais natural da vida, não têm absolutamente nada de anormal. O que já não é normal, nem desejável, é a intolerância ao erro. Claro que não se defende a bandalheira mas, paradoxalmente, a forma de intolerância ao erro que existe em Portugal é a maior fonte de laxismo.

A intolerância ao erro faz com que seja dificílimo, quer em termos pessoais, quer em termos institucionais, assumir um erro. É quase impossível encontrar uma instituição portuguesa que tenha assumido um erro. Em vez disso, encobrem-se as mais graves incompetências e corrupções, recorrendo-se ao discurso mais despudorado, incluindo frases ocas como “cumprimos a lei”, “fizemos o melhor possível” e outras afirmações de puro branqueamento de responsabilidades.

Onde se encontra também muito presente a intolerância ao erro é no meio empresarial. Um empresário que lance um projecto que falhe fica logo estigmatizado, ainda que o “direito ao erro” seja essencial para criar mais empresas e mais emprego.

É interessante contrastar esta atitude com outra semelhante existente nos países do norte da Europa. Em certo sentido, pode dizer-se que nestes Estados a intolerância ao erro seria superior à existente em Portugal, onde é frequente ministros pedirem a demissão, por razões que a nós nos parecem secundárias, quase risíveis em alguns casos. Mas nesses países, onde domina a ética protestante, há um claro foco na responsabilidade, fomentando uma elevada exigência cívica. Por seu turno, esta exigência cívica limita a demagogia dos políticos e produz instituições públicas que se responsabilizam pelos seus erros, os assumem e os corrigem.

De tudo isto, parece poder concluir-se que o tipo de intolerância ao erro vigente em Portugal conduz ao pior dos dois mundos. Por um lado, constitui uma barreira social a muitos comportamentos que nos poderiam ser benéficos. Por outro, e de uma forma extremamente paradoxal, que é impossível de sobrevalorizar, conduz a uma degradação ética, em clara oposição ao que se passa no Norte da Europa. Enquanto aí, em que a responsabilidade domina, a intolerância ao erro eleva a ética social, em Portugal, bem como em outros países do Sul da Europa, onde a responsabilidade é substituída por uma culpa pesada e ingerível, de forte inspiração católica, a intolerância ao erro gera um abafamento generalizado de erros e responsabilidades, degradando de forma muito profunda a ética social.

Parece que a intolerância ao erro tem, entre nós, uma dimensão tendencialmente hierárquica. Os países do Norte da Europa são genericamente menos hierárquicos do que os Estados mais a Sul. Por isso, naqueles, um deslize, ainda que mínimo, de um superior hierárquico, como um ministro, recebe uma forte sanção social. Nos países a Sul, como Portugal, é muito fácil criticar violentamente um subordinado ou um igual, mas já é muito complicado colocar em causa um chefe directo.

Vejam-se, por exemplo, os graves erros do Banco de Portugal, quer a nível de recomendação da gestão macroeconómica (a conversa delirante de Constâncio sobre a suposta irrelevância do desequilíbrio externo dentro do euro), quer a nível da supervisão bancária (quando o BPN teve graves problemas com os auditores já sobre o exercício de 2002). Como é possível que uma instituição com um dos maiores números de doutorados fora das universidades se tenha subjugado a um dos seus piores líderes? Como é possível que uma instituição das mais prestigiadas do país tenha assistido – toda ela –, silenciosa e reverente, à destruição desse prestígio às mãos do pior chefe que jamais teve? Este é um dos maiores dramas nacionais: a forma como milhares de trabalhadores altamente qualificados assistem, impávidos, à destruição do prestígio de uma instituição por um chefe para lá de inconcebível.

Em relação aos chefes indirectos, como deputados e ministros, há uma contestação, espalhafatosa e inconsequente, que se aceita, na verdade, que não tenha quaisquer efeitos práticos. Este é mesmo um dos piores defeitos do país: a contestação inconsequente que, por isso, se torna irrelevante.


[Publicado no jornal “i”]

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