Em Portugal, a
intolerância ao erro é, paradoxalmente, uma enorme fonte de bandalheira
Os erros são a coisa mais natural da vida, não têm
absolutamente nada de anormal. O que já não é normal, nem desejável, é a
intolerância ao erro. Claro que não se defende a bandalheira mas,
paradoxalmente, a forma de intolerância ao erro que existe em Portugal é a
maior fonte de laxismo.
A intolerância ao erro faz com que seja dificílimo, quer em
termos pessoais, quer em termos institucionais, assumir um erro. É quase
impossível encontrar uma instituição portuguesa que tenha assumido um erro. Em
vez disso, encobrem-se as mais graves incompetências e corrupções,
recorrendo-se ao discurso mais despudorado, incluindo frases ocas como
“cumprimos a lei”, “fizemos o melhor possível” e outras afirmações de puro
branqueamento de responsabilidades.
Onde se encontra também muito presente a intolerância ao
erro é no meio empresarial. Um empresário que lance um projecto que falhe fica
logo estigmatizado, ainda que o “direito ao erro” seja essencial para criar
mais empresas e mais emprego.
É interessante contrastar esta atitude com outra semelhante
existente nos países do norte da Europa. Em certo sentido, pode dizer-se que
nestes Estados a intolerância ao erro seria superior à existente em Portugal,
onde é frequente ministros pedirem a demissão, por razões que a nós nos parecem
secundárias, quase risíveis em alguns casos. Mas nesses países, onde domina a
ética protestante, há um claro foco na responsabilidade, fomentando uma elevada
exigência cívica. Por seu turno, esta exigência cívica limita a demagogia dos
políticos e produz instituições públicas que se responsabilizam pelos seus
erros, os assumem e os corrigem.
De tudo isto, parece poder concluir-se que o tipo de
intolerância ao erro vigente em Portugal conduz ao pior dos dois mundos. Por um
lado, constitui uma barreira social a muitos comportamentos que nos poderiam
ser benéficos. Por outro, e de uma forma extremamente paradoxal, que é
impossível de sobrevalorizar, conduz a uma degradação ética, em clara oposição
ao que se passa no Norte da Europa. Enquanto aí, em que a responsabilidade
domina, a intolerância ao erro eleva a ética social, em Portugal, bem como em
outros países do Sul da Europa, onde a responsabilidade é substituída por uma
culpa pesada e ingerível, de forte inspiração católica, a intolerância ao erro
gera um abafamento generalizado de erros e responsabilidades, degradando de
forma muito profunda a ética social.
Parece que a intolerância ao erro tem, entre nós, uma dimensão
tendencialmente hierárquica. Os países do Norte da Europa são genericamente
menos hierárquicos do que os Estados mais a Sul. Por isso, naqueles, um
deslize, ainda que mínimo, de um superior hierárquico, como um ministro, recebe
uma forte sanção social. Nos países a Sul, como Portugal, é muito fácil
criticar violentamente um subordinado ou um igual, mas já é muito complicado
colocar em causa um chefe directo.
Vejam-se, por exemplo, os graves erros do Banco de Portugal,
quer a nível de recomendação da gestão macroeconómica (a conversa delirante de
Constâncio sobre a suposta irrelevância do desequilíbrio externo dentro do
euro), quer a nível da supervisão bancária (quando o BPN teve graves problemas
com os auditores já sobre o exercício de 2002). Como é possível que uma
instituição com um dos maiores números de doutorados fora das universidades se
tenha subjugado a um dos seus piores líderes? Como é possível que uma
instituição das mais prestigiadas do país tenha assistido – toda ela –,
silenciosa e reverente, à destruição desse prestígio às mãos do pior chefe que
jamais teve? Este é um dos maiores dramas nacionais: a forma como milhares de
trabalhadores altamente qualificados assistem, impávidos, à destruição do
prestígio de uma instituição por um chefe para lá de inconcebível.
Em relação aos chefes indirectos, como deputados e
ministros, há uma contestação, espalhafatosa e inconsequente, que se aceita, na
verdade, que não tenha quaisquer efeitos práticos. Este é mesmo um dos piores
defeitos do país: a contestação inconsequente que, por isso, se torna
irrelevante.
[Publicado no jornal “i”]
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