quinta-feira, 5 de maio de 2011

Perda de soberania

Há duas ideias que parecem dominar o debate das eleições legislativas que se avizinham: a perda de soberania e “necessidade” de um governo alargado. Julgo que há uma clara contradição entre elas, mas comecemos a análise pela questão da perda de soberania.

Antes de mais convém recordar que a potencial perda de soberania ocorreu em Maio de 2010 e permito-me recordar o que então aqui escrevi: “Penso que Vasco Pulido Valente não exagera ao escrever: ‘ninguém reparou que o país sofreu a maior humilhação nacional deste último século’. Rui Ramos diz-nos que Portugal passou à condição de protectorado a 10 de Maio de 2010 (uma data a colocar a par do ‘5 de Outubro, 28 de Maio e 25 de Abril’) e que ‘perante o mau governo dos últimos 15 anos, talvez seja de dizer: ainda bem’. Campos e Cunha não tem dúvidas: ‘uma vez que não nos sabemos governar, é melhor aceitar a tutela.’”

Há um ano sofremos uma potencial perda de soberania, mas que se concretizou da forma mais gravosa possível, por três razões. Em primeiro lugar, o governo não tomou consciência do que nos aconteceu há um ano, não percebeu que a execução orçamental de 2010 tinha que ser irrepreensível e, para espanto de todos, desde os investidores internacionais até a Vítor Constâncio, não cumpriu nem um quarto da consolidação orçamental com que se comprometeu junto dos nossos parceiros europeus. Como é óbvio, o incompreensível comportamento do défice público de 2010 tinha que gerar uma desconfiança brutal junto dos investidores, traduzindo-se em crescentes taxas de juro.

O governo cometeu o segundo erro ao não antecipar (um padrão excessivamente repetitivo) que a perda de credibilidade associada ao descalabro orçamental do ano passado iria forçar o país a pedir ajuda externa e adiou o pedido até ao último minuto possível. Aliás, ainda fomos brindados com uma novela, com o ministro das Finanças a forçar o pedido de ajuda, contra a vontade do primeiro-ministro, o que levou este a castigar aquele de várias formas. Como é óbvio, o protelamento do pedido de auxílio fez com que Portugal enfrentasse a “troika” negociadora numa posição de especial fragilidade, muito superior à que teria ocorrido se tivesse feito o pedido há seis meses, como muitos parceiros europeus o recomendaram.

O terceiro erro é partilhado, mas não em partes iguais, entre o PSD e o PS. O PSD cometeu a imprudência de chumbar o chamado PECIV, quando poderia, no mínimo, ter colocado como condição de aprovação a convocação de eleições antecipadas. Depois o governo, sabendo perfeitamente que o pedido de ajuda externa estava iminente, apresentou a sua demissão, o que só poderia ter apressado ainda mais o pedido de auxílio. Esta irresponsabilidade do governo levou à concretização do pior cenário possível: a “negociação” de um pacote duríssimo, tendo como contraparte do lado nacional um governo de gestão, com uma credibilidade orçamental pelas ruas da amargura.

Em resumo, há um ano sofremos uma potencial perda de soberania, que acabou por se concretizar da pior forma possível, devido sobretudo à actuação do actual governo.

Mas, e aqui volto à ideia de contradição inicial, se a perda de soberania ocorreu de forma tão brutal, isto implica que a margem de manobra do próximo governo é estreitíssima. Implica também que os principais partidos vão ser obrigados a aprovar essas medidas antes das eleições, como condição para o país receber ajuda externa.

Daqui se retira que o programa de acção do próximo governo é quase indiferente e o que importa mais são as pessoas e a facilidade que têm ou não de trabalhar em conjunto.

Se a direita não tiver maioria absoluta, é quase inevitável que o PS vá para o governo, pelo que o cenário que interessa analisar é outro, o caso em que a direita tenha maioria absoluta. Neste caso, o PS já terá dado apoio às medidas da troika antes das eleições, pelo que a sua presença no governo não será necessária. Quanto à contestação nas ruas, é importante lembrar que o governo passará a ser avaliado trimestralmente e se não tiver introduzido as reformas acordadas no calendário definido, cessa a ajuda. Ou seja, a contestação inorgânica muito dificilmente terá resultados práticos.

Em conclusão, é evidente que a perda de soberania se concretizou da pior forma possível, mas isso não implica, antes dispensa, um governo de coligação alargada.


[O meu artigo deste mês no Jornal de Negócios.]

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