A falta de
fiscalização tem gerado um sentimento de impunidade, que poderá estar a mudar
Os últimos tempos têm sido pródigos em revelar vários podres
do Estado português. Tivemos responsáveis da segurança social envolvidos em
declarações falsas, grandes nebulosas em torno dos vistos Gold, um
ex-primeiro-ministro em prisão preventiva e agora a lista VIP das finanças.
Entre estes casos e outros que me terão escapado parece
pairar no ar a sensação de inédito, pese embora a fraquíssima memória no espaço
público e a minha própria falta de memória.
É como se, até há alguns anos houvesse uma combinação
infeliz de factores. Por um lado, uma fiscalização mínima, que fazia com que a
probabilidade de ser apanhado fosse muito baixa. Para agravar este facto, as
sanções disciplinares eram levíssimas e incluíam essa extraordinária “sanção”,
a da aposentação compulsiva. Nunca consegui compreender como é que uma reforma
antecipada sem qualquer tipo de penalização podia ser considerada uma sanção. Os
culpados ficavam ganhar o mesmo do que os inocentes, mas com o “castigo” de já
não precisarem de trabalhar. Parece que só no absurdo que é o Estado português
é que uma coisa destas poderia acontecer.
Esta combinação de uma baixa probabilidade de penalização
associada a uma penalização mínima é o caldo indicado para promover a corrupção
e, o pior de tudo, o sentimento de impunidade pelos potenciais prevaricadores.
Note-se que não estou a lançar nenhum manto de suspeita
generalizado sobre o sector público, mas apenas a chamar a atenção para os
resultados que se devem esperar de diferentes conjuntos de incentivos. Se
houver um sistema de fiscalização forte, que detecta desvios com elevada
probabilidade, associado a um sistema de penalizações duras, é muito provável
que a percentagem dos que, mesmo assim, são tentados a prevaricar, seja muito
reduzida, digamos, apenas 1% do total.
Se, em contrapartida, o sistema fechar os olhos a quase tudo
e, nos raríssimos casos em detecta um erro, a sanção é mínima, é muito mais
provável que a percentagem dos que desrespeitam as regras seja muito mais
elevada, de, digamos, 20%.
Reparem que em ambos os casos, a percentagem de
prevaricadores é claramente minoritária, sendo ambos compatíveis com
funcionários públicos maioritariamente respeitadores da lei. Só que o caso do
1% deve ser o que se verifica na Suécia e em Portugal a percentagem será
certamente maior, por ambas as razões apontadas.
Estes casos que têm vindo a lume em Portugal parecem apontar
para uma fiscalização que acordou e que está agora a analisar uma série de
departamentos em que se tinha instalado um sentimento profundo de impunidade.
Considero o caso mais flagrante deste sentimento de
impunidade o de José Sócrates, pela forma como passou a exibir “sinais
exteriores de riqueza”. Estes sinais não residiam apenas no novo-riquismo
constrangedor, como revelavam uma profunda insensibilidade social (um
ex-primeiro-ministro que condena o país a uma duríssima austeridade ir esbanjar
dinheiro para Paris), como estavam em profunda contradição com todas as suas
declarações de rendimento e de património. Ficamos com a nítida sensação que
ele, e muitos dos seus correligionários, nunca imaginou que “eles” se
“atrevessem” a tocar-lhe.
Já há imensos anos que dizia que a prisão de José Sócrates
era uma coisa que faria mais pelo combate à corrupção em Portugal do que mil
leis e discursos.
Espera-se também que haja uma clara tomada de consciência da
necessidade de fiscalizar muito mais o Estado. O que, ironicamente, deverá
revelar ao princípio muitos casos, aqueles que foram cometidos no tempo do
sentimento de impunidade. À medida que começar a ser interiorizado o sentimento
de que isto agora mudou, agora a fiscalização é a sério, é provável pressentirmos
uma redução da prevaricação, embora isso seja uma variável não observável.
Em relação à lista VIP das finanças, é possível que ela
tenha sido criada por uma razão semi-boa: para proteger as figuras mais
mediáticas da bisbilhotice dos funcionários dos impostos. No entanto, todos nós
devíamos estar protegidos pelo sigilo fiscal e não apenas um pequeno número.
[Publicado no jornal “i”]
1 comentário:
Caro PBT:
E a irracionalidade de um funcionário público se reformado com mais 10% do que ganhava no activo (deixava de pagar à CGA) e com uma taxa de IRS de 13% enquanto no activo pagava 19%?
Estou a falar de 2003 e de mim, que sempre me manifestei publicamente contra esta irracionalidade.
Quando se necessita de menos para viver, era quando se ganhava mais.
E isto foi tolerado por todos os governos, da Esquerda à Direita.
Até houve um que incentivou a aposentação voluntária com mais 20% de bónus e permitiu a compra de tempo de serviço (fictícia, tantas vezes, pois não correspondia a tempo de serviço efectivamente prestado, mas não registado, nem tendo sido sujeito a descontos).
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