É irónico que aqueles
que ficam mais horrorizados com a vitória de Trump seja aqueles que mais
contribuíram para criar as condições para o seu sucesso.
Trump está muito longe de ser um fenómeno isolado: teve o
Brexit como antecedente e deverá ter novas manifestações no próximo ano. Na
Primavera, teremos as eleições presidenciais francesas, em que Marine Le Pen
tem, pelo menos, boas condições de passar à segunda volta. No Outono, terão
lugar eleições legislativas na Alemanha onde, se se repetir o resultado de
algumas eleições estaduais, os democratas-cristãos poderão ser ultrapassados
pela Alternativa para a Alemanha, com um discurso anti-euro e anti-imigração.
Para lidarmos com esta realidade, o caminho não será
certamente gritar horrorizado, porque isso não resolve nada. Mil vezes mais
útil será perceber o que nos conduziu aqui, para limitar danos e conseguir, na
medida do possível, impedir a sua expansão.
Reconhecendo a complexidade do fenómeno, parece seguro
destacar o divórcio crescente entre o comum dos mortais e as elites culturais,
com um discurso anti-ocidente, culpado de todos os males do mundo, com uma
agenda assumidamente fracturante. Queriam uma fractura? Pois aqui a têm.
Dentro das elites culturais, há que destacar o papel da
comunicação social, como produtora e veiculadora de mensagem fracturante e de
uma absurda inversão de valores, em que um cão chega a valer mais do que uma
criança. Dentro da inversão de valores cabe também essa estranha valorização de
culturas de imigrantes contrárias a valores ocidentais essenciais, tais como os
direitos das mulheres. Transpondo para a realidade nacional, diríamos que Trump
seria o candidato do Correio da Manhã, com uma tiragem superior a todos os
outros somados.
Uma das coisas mais irónicas é que os eleitores de Trump,
com pouca instrução e baixos rendimentos, foram tradicionalmente acarinhados
pelos principais partidos, quer pelo seu número, quer pela relativa fragilidade
da sua situação, que justificava apoios.
O predomínio do politicamente correcto levou ao desvio de
apoios para novas minorias e, mais do que o problema económico, houve o
problema dos valores e do discurso. Os pobres tradicionais foram ostracizados e
alvo de grande intolerância, por não aderirem a um discurso demasiadas vezes
completamente hipócrita.
A esta raiva de décadas contra a elite cultural, juntou-se
mais recentemente o ressentimento contra a elite económica, sobretudo contra a
impunidade da banca em relação aos seus erros passados e a chuva de ajudas
públicas, mas também o fosso de desigualdade que se tem criado.
Nos EUA até se tem sentido uma quase recuperação económica
da crise de 2008/2009, com o desemprego a cair já para 5%, mas na Europa isso
ainda não aconteceu, pelo que se pode esperar ainda mais revolta.
Infelizmente, dadas as raízes culturais e ideológicas do
actual fosso entre intolerâncias é difícil estar optimista sobre um
apaziguamento próximo.
[Publicado no jornal online ECO]
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