sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Paz e integração

A UE está numa encruzilhada difícil e insisto em afirmar que nas últimas décadas se instalou um grave equívoco, em que se esqueceu que o objectivo último da “Europa” era a paz e não a integração, muito menos a integração forçada.

Pode-se defender que a integração serve a paz, a prosperidade, a segurança, etc., mas tem que se perceber que a integração é sempre um instrumento e que os verdadeiros objectivos são a paz, a prosperidade, a segurança, etc.

 Inverter a hierarquia entre objectivos e instrumentos já gerou problemas gravíssimos no passado, sendo que o maior deles foi o euro, em que a integração monetária se revelou contrária à paz e a prosperidade. Pior ainda, ao ter-se pretendido uma integração forçada criaram-se ainda mais anti-corpos.

É necessário recordar que se pretendeu obrigar o Reino Unido a entrar no euro e que este país teve que lutar muito para não ser arrastado para o erro épico que foi a constituição do euro.

Uma das razões do Brexit estará, justamente, neste episódio, em que a concessão da cláusula de excepção britânica foi concedida com relutância e gerando ressentimentos de parte a parte. Mas com legitimidades muito diferentes. É evidente que o Reino Unido tem todo o direito em ficar ressentido de o quererem forçar a entrar numa integração com a qual não concordava. Repare-se que a atitude britânica não era dizer que o euro não se devia fazer, mas simplesmente que o fizessem sem o Reino Unido. Isto tem-se repetido: os britânicos não querem obrigar os outros países a participar num modelo único, mas são – e ainda bem – extremamente ciosos da sua liberdade.

Já o ressentimento comunitário é ilegítimo, não só porque é abusivo pretender uma integração forçada, como porque o euro se revelou um projecto com gravíssimas falhas, tendo o tempo reforçado essa avaliação.

Pior ainda, Bruxelas pretendeu que o Reino Unido contribuísse para resolver os problemas do euro. Isto é francamente demais. Primeiro, avançam com um projecto que os britânicos achavam repleto de problemas e, agora, quando estes se revelaram ainda piores do que o esperado, quer em termos políticos, quer económicos, exigem dinheiro britânico para lidar com uma asneira em que estes, em boa hora, se recusaram a participar.

Há uma questão que se impõe: quando é que os parceiros comunitários pediram publicamente desculpa ao Reino Unido por os terem forçado a integrar o desastre do euro?

Como é evidente, este pedido de desculpas deveria ajudar a perceber que, demasiadas vezes, apesar de extremamente minoritária, a posição britânica era a correcta. Isto também deveria levar a rever o ressentimento passado com o Reino Unido, por estes se oporem a certos projectos europeus, que mais valia que não se tivessem realizado. Também deveria contribuir para adoptar uma atitude muito mais amistosa nas negociações do Brexit.

Infelizmente, tenho muito poucas expectativas de que os líderes europeus saibam arrepiar caminho. Estou mesmo convicto de que os historiadores do futuro encararão o euro como o principal responsável pela morte da UE.

Aliás, houve ainda recentemente uma reunião, entre Merkel, Hollande e Renzi, que revela tudo o que está errada na “Europa”. Por um lado, a opção por um directório extremamente restrito, em que nem sequer países grandes como a Espanha e a Polónia têm assento e, por outro, a ideia que os problemas se resolvem com mais integração. Tentar resolver o excesso de integração com ainda mais integração só pode trazer o desastre. É que a UE podia dissolver-se de forma pacífica e planeada, mas tudo indica que se irá decompondo com o máximo de ressentimentos e de forma desorganizada.

[Publicado no jornal “i”]

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Fracasso económico e orçamental

A estratégia económica deste governo está duplamente errada e já está a produzir os piores resultados. O primeiro erro foi ter colocado a ênfase na procura interna, em detrimento das exportações, enquanto o segundo erro consiste em, dentro da procura interna, preferir o consumo privado ao investimento.

O primeiro erro foi ter colocado a ênfase na procura interna, em detrimento das exportações, uma via já experimentada no passado, com os piores resultados possíveis: a pior estagnação dos últimos 100 anos; um endividamento externo galopante (de menos de 10% do PIB em 1995 para mais de 100% do PIB a partir de 2009); a necessidade de pedir ajuda à troika.

Como é possível não se ter aprendido a lição e repetir exactamente os mesmos erros? Pode-se criticar as opções do anterior executivo e da troika, propondo uma terceira via, mas o que não é admissível é o regresso ao passado, porque não há quaisquer dúvidas que foi péssimo.

O segundo erro estratégico consiste em, dentro da procura interna, dar primazia ao consumo privado em vez de o conferir ao investimento, quando é exactamente o oposto do que o país necessita.

No orçamento para 2016 e, sobretudo, na sua execução há uma escolha política e económica totalmente inaceitável. O governo escolheu repor os mais altos vencimentos dos funcionários públicos, estimulando o consumo privado e as importações, já que é nestes escalões de rendimento que se concentra a compra de bens de consumo duradouro, cuja componente importada é de 90%.

Como a receita fiscal está muito abaixo do orçamentado, o executivo recorreu ao estratagema de cortar o investimento público em 20%, quando este, de acordo com a versão final do orçamento, deveria crescer 12%. Do ponto de vista económico, isto não podia ser mais calamitoso porque é exactamente o oposto do que necessitamos. Do ponto de vista político, é absolutamente escandaloso que o governo prejudique o interesse geral (em princípio beneficiado pelo investimento público), em benefício dos que usufruem os mais altos salários na função pública.

Ser de esquerda hoje em Portugal já não é preocupar-se com os mais necessitados, mas antes estar ao serviço das corporações públicas? Não têm vergonha?

Pois a catastrófica política económica do governo já está a produzir péssimos resultados, como é patente nos dados do PIB do 1º semestre, a crescer apenas 0,8%, muito abaixo da média da zona euro (1,5%). O investimento está em queda assinalável, directamente por acção do executivo.

A procura interna cresceu zero no 2º trimestre, o que é extraordinário para um governo que tinha como estratégia basear-se nela. A estratégia em si não podia ser mais errada, mas o seu fracasso é (quase) total.

Há uma área, o emprego, em que os números ainda não são preocupantes, porque esta variável costuma estar desfasada 2 ou 3 trimestres do ciclo económico. Mas é altamente provável que no 3º ou 4º trimestre se assista, infelizmente, a uma subida do desemprego, o que deve ser dinamite política para o governo e deverá constituir a reprovação final da sua desastrosa política económica.

Como a política económica está errada e a abrandar a economia, é evidente que isso vai ter implicações orçamentais, num orçamento que se caracterizou sempre, desde o Esboço até ao documento final, por ser muito fantasioso.

Vamos ver até onde irá o desastre, havendo fundadas suspeitas de que a meta orçamental de 2016 não será alcançada.


[Publicado no jornal “i”]

domingo, 14 de agosto de 2016

Galpgate e Kamovgate

O Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, que “não acautelou o interesse público” no caso dos helicópteros Kamov, fará o mesmo no diferendo fiscal com a Galp?

A Galp ofereceu viagens para o Euro 2016 a vários membros do governo e autarcas, do PS e da CDU, provavelmente não com o objectivo de obter vantagens directas e imediatas disso, mas para “olear” o caminho para necessidades futuras.

Parece imprescindível que a Galp seja obrigada a divulgar a lista de todos os que aceitaram o convite, como castigo imediato à empresa e a todos os beneficiados, mas também como profilaxia de ofertas futuras, desta e de outras empresas. É possível que a ameaça da divulgação futura de uma lista negra seja o suficiente para colocar um mínimo de bom senso e pudor em algumas cabecinhas.

Fernando Rocha Andrade, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais envolvido no Galpgate, tem uma longa e infeliz história de funções públicas. Entre 2005 e 2008 foi subsecretário de Estado da Administração Interna, tendo sido uma personagem central do estranho caso dos helicópteros Kamov, que foram entregues muito fora de prazo, para além de inúmeros problemas de funcionamento. Nessa altura, de acordo com auditoria do Tribunal de Contas, de 2014, o então secretário de Estado “não acautelou o interesse público de exigência do cumprimento integral dos contratos de fornecimento, tendo, ao invés e numa altura de incumprimento contratual, que não podia desconhecer, aligeirado os requisitos de entrega das aeronaves e flexibilizado as condições de fornecimento e de pagamento.”

Estão em causa milhões de euros de indemnização a que o Estado tinha direito e que foram simplesmente “perdoados”. Este gesto de Rocha Andrade, não sendo necessariamente corrupto, levanta uma forte suspeição. O que fez o Ministério Público, que recebeu o parecer do Tribunal de Contas através do representante da Procuradora-Geral da República junto do Tribunal? Não é público ou, pelo menos, não tenho conhecimento de nada. Caso não tenha feito nada, tem que se dizer que a sua omissão é, ela própria, muito pouco tranquilizante.

Em 2016, nas suas novas funções no fisco, Rocha Andrade conseguiu gerir da forma mais inábil possível a revisão da forma de cálculo do IMI, revelando a sua enorme falta de tacto político. Infelizmente, a reforma essencial que o IMI necessita ficou esquecida. A fórmula de avaliação de imóveis usada pela Autoridade Tributária consegue esse prodígio de ignorância e incompetência de NÃO usar o valor da renda recebida pelo imóvel.

Isto cria situações loucamente absurdas e injustas em que dois andares em tudo o resto iguais, mas em que um tem uma renda antiga mínima e outro uma renda actual são considerados como valendo o mesmo. Pior ainda, o senhorio das rendas antigas, que já paga um imposto implícito brutal pelo subsídio de rendas que é obrigado a fazer, porque o Estado não assume as suas responsabilidades, é ainda obrigado a pagar tanto IMI como se recebesse uma renda de mercado.

Passado pouco tempo deste infeliz episódio, eis que Rocha Andrade nos brinda com uma nova demonstração da sua inadequação ao cargo que ocupa, aceitando um convite da Galp que, por mera coincidência, tem o Estado em tribunal por cerca de 200 milhões de euros que a empresa não quer pagar de imposto.

Vários membros do governo já deram o caso por “encerrado” mas, em primeiro lugar, não o pode fazer porque todos os dias há novos desenvolvimentos e a revelação de novos convidados. Em seguida, porque ainda não ouvimos a opinião do Presidente da República. Cheira-me que Rocha Andrade só vai sair quando a sua saída já não ajudar nada o governo e só o prejudicar.


[Publicado no jornal “i”]

domingo, 7 de agosto de 2016

Onde está o nosso dinheiro?

No 1º semestre desapareceram 3 mil milhões de euros dos depósitos das administrações públicas (excluindo a administração central) e não há explicações claras sobre isto, pelo que é legitimo perguntar onde está o nosso dinheiro?

No 1º semestre do ano, o défice público registado foi de 1,6% do PIB, o que nos colocaria a caminho de termos um défice excessivo de novo em 2016, se na segunda metade do ano as contas públicas se comportassem de forma semelhantes à verificada até agora. Infelizmente, há três grupos de razões que nos levam a pensar que no 2º semestre as coisas piorarão.

Em primeiro lugar, porque as contas divulgadas até agora envolvem atrasos nos pagamentos a fornecedores e transferências para a UE, que terão que ser revertidos em breve. Em segundo lugar, porque o governo resolveu criar três problemas para as contas públicas, com a reposição de salários da função pública, a diminuição do IVA na restauração e a semana das 35 horas. Finalmente, porque há fundadas suspeitas de que a contabilidade do 1º semestre está fortemente maquilhada e que há gastos escondidos e receitas empoladas, sobretudo no IRS, onde o governo nos quer fazer acreditar que os reembolsos estão a crescer 10%, contra todas as evidências.

Insisto neste ponto, que já referi aqui na semana passada, por duas razões: porque é muito importante e porque parece ter sido olimpicamente ignorado por quase todos os que se deveriam preocupar com ele, incluindo a oposição política ao governo.

No 1º semestre as necessidades de financiamento do Estado foram de 4,7% do PIB, o triplo do défice público, quando deveriam ser próximas deste. Com os dados entretanto divulgados pelo Banco de Portugal, ficámos a saber que houve um aumento considerável dos depósitos do Estado, provavelmente para poder amortizar a OT a 10 anos, cujo prazo termina em Outubro, mas que isso foi feito diminuindo os depósitos dos outros subsectores públicos, sem que haja pormenores sobre estes.

Mais concretamente faltam 3 mil milhões de euros, sobre os quais não temos informação. Há duas explicações extremas para isto, sendo que a primeira, a mais benigna, é a de que teriam sido utilizados para comprar obrigações, acções ou imobiliário, pelo que este património não teria desaparecido, apenas teria mudado de roupagens, assumindo que aqueles activos teriam sido comprados a valores razoáveis.

A segunda hipótese, a mais negra, é a de estes fundos, menos escrutinados, teriam sido usados para pagar despesas não contabilizadas nos números oficiais, de modo a enganar Bruxelas. A verdade poderá estar algures entre estes dois extremos mas, se se confirmarem as suspeitas de que o executivo está a tentar esconder o verdadeiro estado das nossas finanças, Portugal pagará fortes sanções por isso.

A primeira sanção será sob a forma de menos investimento estrangeiro (e correspondente menos emprego), porque os investidores detestam aplicar o seu dinheiro num país em que nem sequer no governo se pode confiar. A segunda penalização virá dos mercados financeiros, que exigirão mais para nos emprestar dinheiro, quer por desconfiança, quer porque as nossas contas afinal estavam pior do que aparentavam. Só depois virão as sanções de Bruxelas, que serão aplicadas com a maior dureza, porque os nossos parceiros odiarão terem sido enganados.


[Publicado no jornal “i”]