Muitas crianças “aprendem”
que amor sem violência não é verdadeiro amor
Na infância, muitas vezes o amor dos pais não é apenas amor,
antes vem indissociavelmente associado a outras propriedades negativas, tais
como a agressão, o abandono ou a invasão. Estas outras propriedades ficam tão
coladas à experiência de “amor”, que podem ser encaradas como companheiros
ocultos do amor, na expressão feliz da terapeuta Fátima Marques
(comoverse.blogspot.pt).
Na idade adulta, estas pessoas procuram um amor que também
tenha aqueles companheiros ocultos, porque caso não os tenha lhes parece
incompleto. Uma famosa e talentosa actriz americana dizia que era capaz de
entrar numa festa com duzentas pessoas e, infalivelmente, aproximar-se de um
homem desconhecido, do qual acabaria por ser vítima de violência doméstica.
Para além disso, quem na infância foi vítima dos abusos
referidos acima, quer emocionais quer físicos, habitualmente desenvolve também
sentimentos de culpa e de “desamparo aprendido”.
Mas culpa de quê? Como muitas vezes a agressão ocorria sem
qualquer razão, apenas porque os pais descarregavam as suas frustrações na
criatura mais fraca à disposição, isso gerou nestas crianças um sentimento de
culpa omnipresente, que não precisava sequer de pretexto para se manifestar.
O “desamparo aprendido” consiste no sentimento de
incapacidade de controlar as situações, que se prolonga no tempo, muito para lá
do momento em que fazia sentido. Uma criança sente-se incapaz de controlar a
extrema violência dos pais mas, se essa marca for suficientemente
incapacitante, poderá carregar esse mesmo sentimento para a vida adulta, mesmo
perante situações em que, do ponto de vista estritamente objectivo, isso não se
verificaria.
Está aqui desenhado um quadro que ajuda a comprrender porque
é extremamente comum que as vítimas de violência doméstica o sejam durante
muitíssimos anos. Em primeiro lugar, a procura – inconsciente, sublinhe-se – de
parceiros abusivos. Em segundo lugar, o sentimento omnipresente de culpa, que
as leva a aceitar muita da violência como expiação daquela culpa. Finalmente, o
“desamparo aprendido”, que as leva a sentirem-se impotentes para saírem do
buraco em que estão pelos seus próprios meios.
Para além disso, poderá haver ainda outras razões a
dificultar a libertação do ciclo de violência doméstica, tais como o não querer
afastar os filhos dos pais (mesmo quando os filhos também são vítimas de
violência); a pressão social contra o divórcio (em declínio, mas ainda presente
em algumas regiões); a vergonha de assumir publicamente a violência (até pelo
desejo de poupar o cônjuge a isso); a carência de meios económicos para uma
sobrevivência independente.
Para que fique claríssimo, não estou – de maneira alguma! –
a fazer qualquer tipo de acusação sobre as vítimas de violência doméstica, muito
contrário, estou a salientar a extrema fragilidade em que a maior parte delas
se encontra, justificando os maiores cuidados.
Vem isto a propósito do julgamento de Manuel Maria Carrilho,
acusado de violência doméstica pela mulher Bárbara Guimarães, em que a juíza
(ainda por cima uma mulher!) desconsiderou a vítima e pretendeu fazer análises
sobre o casamento deles, com base em fotografias da boda, para além de muitos
outros aspectos que não tenho espaço para comentar. Como se as fotografias de
um casamento não fossem o império da “máscara”… Para além de o conhecimento
científico afirmar que só ao fim de, pelo menos, dois anos os cônjuges se revelam
mutuamente.
O comportamento desta juíza revela dois factos preocupantes:
uma profunda ignorância e incompreensão da temática que está a julgar; pior, uma
total inconsciência dessa mesma ignorância. Como é possível um julgamento
minimamente justo e sensato nestas condições? É esta a justiça que temos? São
estes juízes que se julgam no direito a mil regalias?
[Publicado no jornal “i”]
Sem comentários:
Enviar um comentário