domingo, 21 de fevereiro de 2016

Companheiros ocultos do amor

Muitas crianças “aprendem” que amor sem violência não é verdadeiro amor

Na infância, muitas vezes o amor dos pais não é apenas amor, antes vem indissociavelmente associado a outras propriedades negativas, tais como a agressão, o abandono ou a invasão. Estas outras propriedades ficam tão coladas à experiência de “amor”, que podem ser encaradas como companheiros ocultos do amor, na expressão feliz da terapeuta Fátima Marques (comoverse.blogspot.pt).

Na idade adulta, estas pessoas procuram um amor que também tenha aqueles companheiros ocultos, porque caso não os tenha lhes parece incompleto. Uma famosa e talentosa actriz americana dizia que era capaz de entrar numa festa com duzentas pessoas e, infalivelmente, aproximar-se de um homem desconhecido, do qual acabaria por ser vítima de violência doméstica.

Para além disso, quem na infância foi vítima dos abusos referidos acima, quer emocionais quer físicos, habitualmente desenvolve também sentimentos de culpa e de “desamparo aprendido”.

Mas culpa de quê? Como muitas vezes a agressão ocorria sem qualquer razão, apenas porque os pais descarregavam as suas frustrações na criatura mais fraca à disposição, isso gerou nestas crianças um sentimento de culpa omnipresente, que não precisava sequer de pretexto para se manifestar.

O “desamparo aprendido” consiste no sentimento de incapacidade de controlar as situações, que se prolonga no tempo, muito para lá do momento em que fazia sentido. Uma criança sente-se incapaz de controlar a extrema violência dos pais mas, se essa marca for suficientemente incapacitante, poderá carregar esse mesmo sentimento para a vida adulta, mesmo perante situações em que, do ponto de vista estritamente objectivo, isso não se verificaria.

Está aqui desenhado um quadro que ajuda a comprrender porque é extremamente comum que as vítimas de violência doméstica o sejam durante muitíssimos anos. Em primeiro lugar, a procura – inconsciente, sublinhe-se – de parceiros abusivos. Em segundo lugar, o sentimento omnipresente de culpa, que as leva a aceitar muita da violência como expiação daquela culpa. Finalmente, o “desamparo aprendido”, que as leva a sentirem-se impotentes para saírem do buraco em que estão pelos seus próprios meios.

Para além disso, poderá haver ainda outras razões a dificultar a libertação do ciclo de violência doméstica, tais como o não querer afastar os filhos dos pais (mesmo quando os filhos também são vítimas de violência); a pressão social contra o divórcio (em declínio, mas ainda presente em algumas regiões); a vergonha de assumir publicamente a violência (até pelo desejo de poupar o cônjuge a isso); a carência de meios económicos para uma sobrevivência independente.

Para que fique claríssimo, não estou – de maneira alguma! – a fazer qualquer tipo de acusação sobre as vítimas de violência doméstica, muito contrário, estou a salientar a extrema fragilidade em que a maior parte delas se encontra, justificando os maiores cuidados.

Vem isto a propósito do julgamento de Manuel Maria Carrilho, acusado de violência doméstica pela mulher Bárbara Guimarães, em que a juíza (ainda por cima uma mulher!) desconsiderou a vítima e pretendeu fazer análises sobre o casamento deles, com base em fotografias da boda, para além de muitos outros aspectos que não tenho espaço para comentar. Como se as fotografias de um casamento não fossem o império da “máscara”… Para além de o conhecimento científico afirmar que só ao fim de, pelo menos, dois anos os cônjuges se revelam mutuamente.

O comportamento desta juíza revela dois factos preocupantes: uma profunda ignorância e incompreensão da temática que está a julgar; pior, uma total inconsciência dessa mesma ignorância. Como é possível um julgamento minimamente justo e sensato nestas condições? É esta a justiça que temos? São estes juízes que se julgam no direito a mil regalias?


[Publicado no jornal “i”]

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